domingo, 4 de Julho de 2010
O Ensino da Fraude
Em comentário, o leitor Gil Fonseca enviou-nos o link de um artigo de que é co-autor. Nesse artigo, com quase uma década, está patente a visão de muitos professores, independentemente do nível de ensino em que se situem. Dele deixamos algumas passagens:
"O presente artigo foi escrito em 2000/2001 por dois professores, ligados ao ensino secundário e superior (...). Destina-se a alertar a sociedade Portuguesa relativamente ao estado catastrófico em que o sistema de ensino se tem vindo a encontrar, e das razões que justificam essa situação. Se na leitura do mesmo ocorrer uma sensação de ter estado a dormir durante as últimas décadas, será então a altura de acordar. Este assunto diz-nos respeito a todos, e as consequências desta fraude politicamente correcta a que continuamos a chamar ensino serão irremediáveis."
"Muito se tem discutido, nos últimos anos, acerca da qualidade do ensino em Portugal. Não é segredo para ninguém que, após o 25 de Abril, o sistema de ensino sofreu profundas remodelações e que a própria filosofia do sistema de ensino se tenha modificado de uma maneira irreversível (...). Essencialmente, a política demagógica dos últimos governos está a transformar o ensino numa espécie de fábrica de diplomas, onde são observadas como determinantes as estatísticas de progressão e de aprovação dos alunos, sem que haja a preocupação com a qualidade do ensino, onde a autonomia e o poder dos professores é reduzida ao mínimo, de modo a que possa haver o máximo controle destes por parte do estado; onde são aprovadas leis que dão ao ensino uma imagem de pseudo-democracia e pseudo-humanismo, à custa da transferência das responsabilidade de pais e de alunos para professores e de poderes de professores para pais e para alunos, mas onde em vez de se promover a autonomia, a criatividade e a qualidade dos alunos, se procura neles integrar, de uma maneira medíocre, uma filosofia de aceitação, de seguidismo, de estupidez intelectual, sem que haja a mínima preocupação com a qualidade dos conhecimentos que adquiriram ou desenvolveram.
Sem que haja, de nossa parte, um particular esforço em inventar expressões politicamente-correctas para descrever o estado de profunda catástrofe em que este e anteriores governos mergulharam o ensino, a expressão «fábrica de diplomas» adequa-se de uma forma perfeita aquilo que é hoje o ensino em Portugal; essencialmente, uma ferramenta política, manipulada pela mesquinhez de políticos desonestos de modo a satisfazer as primeiras necessidades dos eleitores, e onde os professores são cada vez mais transformados, de facto, em impressores de diplomas (...).
Urge então perguntar porquê o sucesso da manipulação estúpida de argumentos estatísticos? Uma escola é considerada bem sucedida quando a percentagem de aprovações é elevada, mesmo que à custa do facilitismo descarado que o sistema impõe aos professores e que professores mais acomodados incutem nos mais novos. A resposta é que é fácil. De facto, é mais simples implementar uma política vergonhosa de facilitismo e aumentar artificialmente a quantidade de alunos com o diploma do 9.º ano do que melhorar a qualidade do ensino. É mais fácil aumentar o número de vagas no ensino superior do que criar condições justas para que as pessoas possam aprender ou exercer uma profissão após finalizarem os estudos. É mais fácil, também, diminuir o grau de dificuldade dos exames do 12.º ano, de modo a que as estatísticas «demonstrem» que os alunos são bem preparados...
"A minha experiência no ensino está essencialmente ligada às engenharias e às ciências. No entanto, penso que a minha descrição também é válida nas áreas das artes, letras, gestões, medicinas e outras. Isto porque todas as áreas do ensino pressupõem o mesmo desejo de aprender, melhorar, escapar à mediocridade e atingir a excelência. Ora é precisamente neste aspecto que reside o engano. Actualmente, ter um curso superior já não traduz uma competência superior. Diria até que ter um curso superior é mau sinal. Na grande maioria dos casos (actuais) significa apenas que não se arranjou nada melhor para fazer. É provável que ache incrível uma afirmação destas. Nunca encontrei ninguém que não ficasse espantado ao ouvi-la. Perguntam-me:
- Uma pessoa que queira aprender, para onde vai, então?
- Se aprender é realmente aquilo que quer fazer então, está bem, deve ir para a universidade mas, cuidado, você vai sentir-se muito sózinho. Actualmente, um diploma de curso superior não significa sucesso na aprendizagem mas sim sucesso na ultrapassagem dos exames, em que "ultrapassagem" contém todos os respectivos sentidos perjorativos incluindo o de ser dolosamente permitida. Claro que há excepções mas enquanto que há uns anos atrás era difícil encontrar um curso que não valesse a pena, hoje é difícil encontrar um que valha. A grande maioria dos estudantes não tem acesso aos poucos cursos superiores que ainda valem a pena. Apenas os privilegiados que estudaram em colégios particulares é que lá chegam. Por isso, se quiser preparar-se para a vida profissional então o melhor é empregar-se. Ao fim de cinco anos terá muito mais competência que um recém-licenciado. Se, por outro lado, o seu objectivo é obter um "canudo" ou fazer a vontade aos seus pais então a universidade é mesmo o melhor caminho. Neste caso prefira uma universidade pública pois nessas sai muito mais barato.
- O que me diz!!? Conheço vários licenciados que estão em empregos muito bons!
-Acredito que sim mas em quantos desses é que confia? Em quantos médicos é que confia? Por quantos é que passou antes de encontrar esses? Faço a mesma pergunta para engenheiros, arquitectos, advogados, gestores, tradutores, etc. Algum é licenciado há menos de cinco anos?
- Olhe, lá na firma está agora um rapaz muito novo que instalou os computadores em rede e os ligou aos telemóveis. Não demorou muito tempo e não tem havido grandes problemas. Nele confio.
Estes pequenos diálogos têm acabado em silêncio, sinal de dúvida ou de medo. Caro leitor, espero que quando acabar de ler este texto tenha passado do medo ao terror. É que estes pequenos diálogos não descrevem as causas profundas do problema nem transmitem a natureza catastrófica dos seus efeitos (...).
Caro leitor, já que chegou até aqui, permita-me ainda que foque um aspecto importante: a Educação tem um impacto determinante na cultura e, por consequência, na economia duma nação a longo prazo. Por esta razão é muito grande a responsabilidade dos professores. Essa responsabilidade não pode ser escamoteada por causa de políticas de curto prazo. Note, caro leitor, não pretendo regressar ao passado, apenas lembro que, mais tarde ou mais cedo, seremos todos obrigados a tomar decisões difíceis e que nessa altura convirá estarmos devidamente preparados. Confesso que me sinto envergonhado por só agora divulgar o engano que ajudei a perpetuar.