Em tempos de Wikileaks e de muita tolice enunciada por jornalistas que se imaginam donos do saber e da prudência, retomo o texto sobre o segredo que venho elaborando e modificando desde longa data. Ele integra um possível livro meu sobre a Razão de Estado em nossos tempos. Ainda não terminei o escrito, mas o tenho publicado em parcelas, para ajudar, nas minhas pequenas forças, a reflexão sobre um dos problemas filosóficos essenciais (o poder do silência e da fala, já estudado por mim em Silêncio e Ruído, a Sátira e Denis Diderot, Ed. Unicamp) na doutrina e na prática do poder político moderno. Até onde vai a prudência, quando se trata do sigilo estatal, quais os limites (ou barreiras) à livre informação? E o que tem a democracia a ver com semelhantes problemas? Como se trata de espinhosa pesquisa, só a publicarei como último livro meu, na universidade. Ou talvez depois, ou mesmo depois de minha retirada deste universo e passagem para outro, melhor ou pior.
Uma outra versão do texto, com enfoque nos elos entre Ministério Público e Imprensa, pode ser lida no seguinte endereço : bdjur.stj.gov.br/xmlui/handle/2011/31222
Notas para uma Filosofia do Segredo.
Roberto Romano/Unicamp
“À garrulice se apega um mal que não lhe é inferior, a curiosidade (periergia): deseja-se saber muito, para muito falar . São especialmente histórias de segredo e de coisas escondidas, das quais se deseja encontrar os traços enfiando as fuças em todas as direções (…) Diz-se que as enguias do mar e as víperas morrem ao dar a luz aos seus filhotes; assim, os segredos, ao escapar, arruinam e destroem os que não os guardam”. Plutarco.
A democracia começa e termina com o segredo. Na raison d´Etat, que serviu como base da ordem estatal moderna, foram discutidos todos os elementos da vida pública e de sua manutenção. Evidentemente, in nuce, não de forma ampliada e definitiva. O segredo não pode ser atribuído apenas ao Estado e às suas instituições. Algo tão antigo na história humana —um teórico importante como Simmel diz que ele “é uma das maiores conquistas da humanidade” (1) — atingiu seu pleno sentido político bem tarde na História. A sua prática passou das corporações aos setores administrativos, aperfeiçoando-se ao máximo. O segredo, enuncia Simmel, não pertence nem ao campo do ter nem ao do ser, mas ao do agir”.(2)
Com a democracia produzida nas três grandes revoluções modernas —inglêsa do século 17, a norte-americana e a francêsa no século 18— o segredo do Estado absolutista foi atenuado pelas noções de accountability e transparência. Na forma estatal anterior à democracia o soberano não deve satisfações aos parlamentos, aos juízes, aos súditos. Esta tese foi combatida desde longa data na Inglaterra. Edward Coke defendeu a independência dos juizes contra a Igreja Anglicana e contra James I. Ao replicar ao rei, o qual defendia suas prerrogativas contra “os advogados”, Coke afirma que o soberano “não foi educado no conhecimento das leis da Inglaterra”. James I ofendido replicou dizendo que se Coke tivesse razão, ele deveria estar sob a lei. Uma tal hipótese, em si mesma, seria “ traição evidente”. E o governante cita Bracton : “Rex non debet esse sub homine sed apud Deo et lege”. O autor do Presente Régio (Basilicon Doron) e do tratado Sobre a Verdadeira Lei das Livres Monarquias ou dos Mútuos Deveres entre Um Livre Rei e Seus Súditos (The True Law of Free Monarchies or the Mutual Duty Betwist a Free King and His Subjects, escreve que “um bom rei enquadra todas as suas ações segundo a lei; mas ele prende-se a ela, só pela sua boa vontade e para dar exemplo aos súditos. Ele é o senhor sobre todas as pessoas, tem poder de vida e morte. Embora um principe justo não tire a vida de nenhum súdito sem uma lei clara, a mesma lei com a qual ele tira a vida é feita por ele mesmo or seus predecessores”. Além de pai do seu povo, o rei, segundo Jaime, seria o professor universal, pois os súditos são fracos e ignorantes. E assim, ele é em tudo independente da sociedade e desconhece inclusive o judiciário: “A ruindade de um rei nunca pode fazê-lo ser julgado pelos juízes que ele próprio ordena”.
Na fala ao Parlamento de 1616, James proclama que “os reis são justamente chamados deuses; pois exercem um modo de semelhança do Divino poder sobre a terra. Porque se forem considerados os atributos de Deus, vemos o quanto eles concordam com a pessoa de um rei. Deus tem poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbítrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be accountable). O mesmo poder possuem os reis. Eles fazem e desfazem seus súditos; têm poder de erguer e abaixar; de vida e morte; julga acima de todos os súditos em todos os casos e só deve prestar contas a Deus (yet accountable to none but God). Eles têm o poder de exaltar as coisas pequenas e rebaixar as altas e fazer de seus súditos como fazem os jogadores com as peças de xadres”. Ainda em 1616 o monarca assim se dirigiu aos juízes da Star Chamber: “não usurpem a prerrogativa da Coroa. Se aparecer uma questão ligada à minha prerrogativa ou mistério do Estado, trato que não lhes diz respeito, consultem o rei ou o seu conselho, ou ambos; porque tais matérias são transcendentes. As prerrogativas absolutas da Coroa não é assunto para a lingua de um advogado, nem é legal disputar sobre elas”. Coke em companhia de outros juristas foi preso na Torre de Londres por nove meses, devido à resistência à referidas prerrogativas. (3)
Seria inaceitável para um governante absolutista a soberania popular e a noção de que os dirigentes deviam prestar contas de seus atos, sem guardar segredo, à massa não qualificada. Todos os principes liam nos tratados políticos e na literatura grega ou romana a plena desconfiança no povo. Este, para os latinos, era apenas o populo exturbato ex profugo, o improbante populo, o vulgus credulum, vulgus imprudens vel impudens, vulgus stolidum etc. (4) Etienne de La Boétie, autor do Discurso da Servidão Voluntária. (5) foi assumido no século vinte como suposto campeão do anarquismo. (6) Pouco se analisou, no entanto, o seu escrito intitulado Mémoires de nos troubles sur l´Édit de janvier 1562. (7) O mais relevante nesse relatório é a cautela frente ao povo, pois este se “acostuma a uma irreverência para com o magistrado e com o tempo aprende a desobedecer voluntáriamente, deixando-se conduzir pelas iscas da liberdade, ou melhor, licença, o mais doce e agradável veneno do mundo. Isto ocorre porque o elemento popular (…) imagina que só é preciso obedecer os superiores nas coisas boas por si mesmas, e se atribue o juízo sobre o bom e o ruim e chega à idéia de que não existe outra lei senão a sua consciência, ou seja, a persuasão de seu espirito e de suas fantasias”. (8) E arremata La Boétie: “O povo não tem meios de julgar, porque é desprovido do que fornece ou confirma um bom julgamento, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, ele acredita em outrem. Ora, é comum que a multidão creia mais nas pessoas do que nas coisas, e que ela seja mais persuadida pela autoridade de quem fala do que pelas razões que se enuncia”.
Gabriel Naudé, nas Considerações Políticas sobre os golpes de Estado (1639) fala do segredo e da desconfiança universal que obrigam o governante a se preservar “dos engodos, ruindades, surprêsas desagradáveis” quando a crise de legitimidade se instala. É preciso cautela, diz Naudé, contra o animal de muitas cabeças, “vagabundo, errante, louco, embriagado, sem conduta, sem espírito nem julgamento….a turba e laia popular joguete dos agitadores: oradores, pregadores, falsos profetas, impostores, políticos astutos, sediciosos, rebeldes, despeitados, supersticiosos”. ( 9)
Com lentidão surgiram outras percepções do povo, como em Althusius. (10 ) No final da Idade Média as doutrinas políticas indicavam que o fundamento do governo residia na submissão voluntária e contratual das comunidades governadas. Por direito natural só ao povo cabia colocar-se como fonte do poder estatal. Disso Bodin deduziu a transmissão total e incondicionada da soberania ao príncipe. Mas Althusius argumentou contra a diminuição da soberania popular com base no contrato. (11 ). O summus magistratus, para Althusius, era o povo. As convulsões que reuniram todos os prismas da vida capitalista triunfante, após a Reforma de Henrique VIII, ergueram a força popular traduzida em facções, dos Levellers aos Diggers, mesclando religião e imperativos democráticos. E daí nasceu a noção da accountability invertida: o rei não mais devia prestar contas apenas ao ser divino, mas apenas ao povo: Vox populi, vox dei. John Milton expressa com clareza os dois princípios: “… Se o rei ou magistrado provam ser infiéis aos seus compromissos o povo é liberto de sua palavra”. Estas frases, em The Tenure of Kings and Magistrates (12 ) definem o principio da nova legitimidade política. O summus magistratus popular exige responsabilidade dos que agem em seu nome.
Esses enunciados foram recolhidos por Thomas Edwards, inimigo de qualquer democracia, num catálogo de “heresias” políticas. O erro dos democratas, diz Edward, reside em afirmar que : “o poder supremo só pertence à Casa dos Comuns, porque só ela é escolhida pelo povo. O estado universal, o corpo do povo comum é o soberano terrestre, o senhor, rei e criador do rei, dos parlamentos, e todos os ministros da justiça. Majestade indeclinável e realidade residem de modo inerente no estado universal; e o rei, parlamentos, etc., são as suas meras criaturas e devem prestar contas a eles, os quais deles dispõem a seu bel prazer; o povo pode pedir de volta e reassumir seu poder, questioná-los, e colocar outros em seu lugar” (eu sublinho, RR) (13) Thomas Edwards era contrário à democracia, mas todos os seus enunciados baseiam-se em fontes (sobretudo delações) e documentos. A consulta aos historiadores do período, confirma a veracidade dos enunciados atribuidos por Edwards aos democratas. (14) As teses democráticas inglêsas repercutiram no século 18 pela Europa inteira e integram o corpus doutrinário moderno que formou o ideário sobre a partir do qual se fundamentam Estados como a própria Inglaterra, a França, os EUA.
Calaram fundo nos iluministas os princípios democráticos inglêses. Enuncia Diderot nas Observações sobre o Projeto de Constituição de Catarina 2 : “Não existe verdadeiro soberano a não ser a nação; não pode existir verdadeiro legislador, a não ser o povo; é raro que o povo se submeta sinceramente a leis que lhes são impostas; ele as amará, as respeitará, obedecerá, as defenderá como sua obra própria se é delas o autor (…) A primeira linha de um código bem feito deve ligar o soberano; ele deve começar assim : `Nós, o povo (e lembremos que este será o início da Constituição norte-americana : We the People…) (15 ) e nós, soberano desse povo, juramos conjuntamente essas leis pelas quais seremos igualmente julgados; e se ocorrer a nós, soberano, a intenção de mudá-las ou infringi-las, como inimigo de nosso povo, é justo que ele seja o nosso, que ele seja desligado do juramento de fidelidade, que ele nos processe, nos deponha e mesmo nos condene à morte se o caso exige; esta é a primeira lei de nosso código”. (16 )
Passada a era das revoluções, para usar o termo de Eric Hobsbawn, e depois do pesadelo trazido pelos Estados totalitários do século 20, o poder estatal apresenta agudos problemas. Na dialética contraditória ocorrida na ordem democrática anterior aos totalitarismos —os demagogos prometeram plena transparência ao povo, mas precisaram assumir o segredo estatal, foram eleitos pelo voto secreto e, nos palácios, usaram o segredo para domar as massas que os sufragaram— o pêndulo foi da convulsão social e política às tiranias como a nazista. A resposta do poder ao segredo do voto foi o recrudescimento e a manipulação inaudita do segredo de Estado. Examinemos o citado pêndulo num autor estratégico, Carl Schmitt, no livro A ditadura, das origens da idéia moderna de soberania à luta de classes proletárias (1921) (17 ) É dele a mais famosa fórmula do segredo no mundo político moderno : “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. (18 ) Contra Hans Kelsen, Schmitt pensa que o problema da soberania ainda existe no mundo moderno. (19 ) Schmitt é coerente crítico dos Parlamentos e do sistema representativo (20). Falando-se seriamente em democracia, pensa Schmitt, só o povo pode decidir o seu destino e jamais os deputados. A expressão “democracia representativa” é um meio de enganar as massas. Da impossível democracia parlamentar Schmitt segue ao Chefe do Estado, o protetor da Constituição posto acima dos entraves da legislação e das regras. O dirigente opera segundo a lógica da excepcionalidade. Em O Protetor da Constituição, (21) encontra-se a referência ao Poder Moderador definido no Império Brasileiro. A importância daquele poder situa-se no controle da soberania popular ou das pretensões parlamentares. Schmitt afirma que apenas o Reichspräsident pode defender a Constituição em tempo de crise. O tema gira ao redor do Artigo 48 da Constituição de Weimar. (22 ) Ao apelar ao Protetor da Constituição, o jurista nega que o judiciário possa exercer aquele papel, porque judiciário é idêntico a normas e age post factum, sempre atrasado na correção dos desvios e fraturas institucionais. Para remediar aquelas situações, apenas o Reichspräsident poderia ser movido, legal e constitucionalmente. Segundo Hans Kelsen, Schmitt reduz a Constituição de Weimar ao artigo 48. (23 ) Se, como diz Schmitt, “a independência é a necessidade primeira para um protetor da Constituição” e se os juizes ou deputados não podem cumprir aquele mister, segue-se que eles não são independentes, ou independentes o bastante para garantir o Estado. Desse modo, ele retira dos demais poderes a possibilidade de controlar e limitar o Protetor em seu poder excepcional.
O ponto estratégico, julga Schmitt, encontra-se na defesa da exceção, mais relevante no seu entender do que a regra (defendida pelos liberais). A exceção nega a soberania popular nos padrões do pensamento liberal, ou seja, nos padrões da representação, e permite a Schmitt o retorno ao Leviatã. Em Hobbes existiria a tese de um “governo que pode se reclamar da necessidade concreta, do estado das coisas, da força da situação, para outras justificações não determinadas pelas normas, mas pelas situações (…). Isso encontra o seu princípio existencial na adequação ao fim, na utilidade (…) na conformidade imediatamente concreta das suas medidas”. ( 24) Nas crises, o Estado “suspende o direito em virtude de um direito de auto-conservação”. (25 ) Nas categorias schmittianas sobre o inimigo na ordem estatal, sobretudo no campo diplomático, temos um prenúncio do que se passa em nossos dias no Ocidente. Seja porque o jurista —apesar de totalitário— previu situações perigosas, seja porque seus discípulos (como Leo Strauss), circularam as teses sobre o segredo no Estado, Schmitt fornece pressupostos para conceituar as máquinas de guerra e segredo que determinam os Estados e tendem a conduzir o mundo na era do terrorismo.
Um comentário exato desse status encontra-se em texto de Eva Horn, do qual cito um trecho: “permeado pela guerra em sua dupla essencia e natureza, a inteligência não liga-se ao tipo de poder tipificado pela soberania estatal, mas pela (…) ´máquina de guerra´, um movimento múltiplo de deslocamento no território tão oposto aos princípios de hierarquia e estratificação do ´aparelho estatal´. Guerra é rapidez, segredo, violência, astúcia, enquanto o Estado é entendido como fixidez e enraizamento num lugar, representação, o fim do bellum omnium contra omnes: a lei. A máquina de guerra (…) é externa ao Estado, mesmo quando seus elementos podem ser integrados no aparelho de estado (exército, polícia, serviços de inteligência). (…) A máquina de guerra é (…) uma dinâmica segundo a qual tudo se aparenta à guerra: sua capacidade de metamorfose e camuflagem traz rapidez e relação estratégica no espaço. Segredo e traição de segredos, desinformação e violação de tratados, propaganda e conspiração integram a máquina de guerra, a qual não pode ser inserida sob os principios da soberania nacional. É o moderno partisan, o clandestino e lutador ‘irregular’ que poderia ser chamado a corporificação paradigmática da máquina (…) de guerra”. (26 )
A última frase de Eva Horn retoma Carl Schmitt, agora na Theorie des Partisanen (27 ). As consequências dessa corrosão do Estado trazem desafios para a vida política internacional. As guerrilhas e as formas rápidas de luta contra inimigos fortes serviram nas batalhas de libertação nacional, da Espanha de 1808 ao Vietnã. Mas as “máquinas de guerra” geradas para enfrentar os movimentos guerrilheiros e inseridas nos Estados colonialistas e imperiais dos séculos 19 e 20, aprenderam as lições da guerrilha. Elas agem na fímbria da ordem estatal. Com o segredo, conduzem uma política marcada pela razão técnica, sem as cautelas diplomáticas que anteriormente asseguraram a razão de Estado. Os movimentos que apelaram para a guerrilha, em muitos países, seguiram para a desestabilização do Estado de direito e para a truculência ditatorial. O Camboja revelou-se como o máximo de horror nesta linha, com milhões de pessoas trucidadas nos campos da morte. Cuba, que exemplifica a ditadura que surgiu dos partisans, tornou-se um problema quase sem solução no século 21. O segredo e a máquina de guerra, num polo da vida política mundial e os terroristas que usam técnicas de guerrilha combinadas com sacrifícios rituais de corpos (os atentados suicidas), em outro, usurpam as prerrogativas legítimas do poder. (28)
Com a Segunda Guerra, a Guerra Fria, o Macarthismo e as formas autoritárias que visualizamos no mundo, o segredo aumentou sua abrangência. Se os países socialistas, supostamente repúblicas populares, quebraram a base da accountability e da fé pública em proveito dos governos, algo similar ocorre hoje na Europa e nos EUA. Hannah Arendt afirma que a vida totalitária deve ser entendida como reunião de “sociedades secretas estabelecidas públicamente”. (29 ) O paradoxo é só aparente. Hitler examinou os principios das sociedades secretas como corretos modelos para a sua própria. Ele promulgou em maio de 1939 algumas regras do seu partido: primeira regra: ninguém que não tenha necessidade de ser informado deve receber informação. Segunda : ninguém deve saber mais do que o necessário. Terceira: ninguém deve saber algo antes do necessário. (30 )
Consideremos a lição de Norberto Bobbio: “O governo democrático desenvolve sua atividade em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua própria atividade sob os olhos de todos porque todos os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual a razão os levaria periodicamente à urnas e em quais bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? (…) o poder oculto não transforma a democracia, a perverte. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus orgãos essenciais, mas a assassina”. (31 )
A democracia moderna surge com a exigência de accountability a ser cobrada dos governos. A radicalidade dos democratas inglêses rendeu frutos na Europa e na América do Norte. Os seus postulados sustentaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Woodrow Wilson, insiste no elo entre fé pública e responsabilidade, o que deve atenuar o segredo de Estado. (32) A recusa, durante a Guerra Fria, dos elementos jurídicos e políticos da accountability levaram os governos norte-americanos à quebra de padrões democráticos. Isto redundou em prejuízo dos povos em terras hegemônicas e calamidades para os dominados, do Vietnã ao Chile e deste ao Irã e Iraque. O segredo permitiu casos como o Irã-contras, a ajuda aos Talibãs, cuja ascensão ao poder foi entendida como vitória sobre a quase defunta URSS. O segredo permitiu que nas duas guerras do Iraque informações vitais fossem negadas ao público. A administração G. W. Bush conduz o segredo ao máximo (33) possível, incluindo-se o engano usado deliberadamente, como no caso das armas de destruição em massa. O segredo embaralha interesses de grupos privados e assuntos de governo, como nas licitações para a reconstrução do Iraque ao redor do petróleo.
A administração Bush emprega meios secretos para atingir alvos internos e internacionais, não raro retrocedendo na política doméstica, quando se trata do mesmo segredo. Em abril de 1994, foi editada uma Public Law (número 103-236) do governo estadunidense criando uma Comissão para reduzir o segredo governamental, tendo a frente Daniel Patrick Moyniham, do Partido Democratico, antigo membro de gabinete dos presidentes Kennedy, Johnson, Nixon e Ford. A comissão publicou um relatório (3/05/1997) cujas palavras iniciais eram as seguintes: "It is time for a new way of thinking about secrecy." Após essa tentativa o secredo retomou a iniciativa.
A tensa passagem do secreto ao público define o destino da democracia. Assistimos, nos últimos tempos, a derrocada quase absoluta de governos democráticos diante de forças antigas da vida social, religiões que exigem o retrocesso à legitimidade com base no divino e novas forças, como o “mercado”. Em nome da “confiança” deste último, programas expostos em longos anos aos cidadãos seguem para o vazio absoluto. Com uso do segredo “planos” econômicos são impostos, lesam os contribuintes em nome de interesses alheios aos seus países. Por outro lado, grupos terroristas atacam os três antigos monopólios estatais, a começar com o da força física, ameaçam a norma juridica. Ao mesmo tempo, os sistemas de narco-tráfico (não raro, como no Afeganistão, unidos ao terror) desafiam tribunais e governos, amealham cúmplices nos três poderes do Estado.
O segredo é essencial para se refletir sobre a forma democrática. Governos exasperam a prática de esconder os pontos maiores das políticas no setor público. Entramos no paradoxo: o público é definido fora do público. A opacidade estatal atinge níveis inéditos.O que tudo isso tem a ver com a soberania e a segurança nacionais? Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que o aumento do segredo em Estados hegemônicos diminui, ipso facto, a possível força dos dependentes ou não hegemônicos. Após a implosão da URSS, surgem no horizonte mundial três cenários nos quais se revelam as potências da Federação norte-americana, da insipiente União Européia, de uma possível união asiática, onde se disputam a hegemonia a China, o Japão, a India e os pequenos “tigres”. Já discutimos esse ponto no ano passado, neste mesma sala. Naturalmente todos os quesitos desta ordem já foram examinados com profundidade no âmbito deste Escola Superior. Pemitam-me trazer algumas modestas achegas ao problema do segredo.
Sendo fato social, o segredo se manifesta em todos os coletivos humanos, das igrejas às seitas, dos Estados aos partidos, dos advogados aos juízes, dos quartéis às guerrilhas, das corporações aos pequenos vendedores de rua, da imprensa à formas de censura, dos laboratórios e bibliotecas universitários à fábricas, dos bancos às obras de caridade. Se descermos mais fundo, da sociologia à ordem antropológica, podemos dizer que o segredo é o lado oposto e necessário da linguagem comunicacional. Adam Smith, com argucia pergunta-se : “Como é possível determinar segundo regras o ponto exato no qual, em todo caso, um delicado sentido de justiça segue para o escrupulo fraco e frivolo da consciência? Quando o segredo e a reserva começa a caminhar rumo à dissimulação ?” ( 34) A prudência define a passagem de uma prática ou experiência do segredo antropológica e éticamente correta, para uma outra, em que se manifesta o poder abusivo. A balança entre abertura e segredo foi indicada por Simmel : “a intenção de esconder assume intensidade tanto maior quanto se choca com a intenção de revelar”. ( ) O segredo integra a vida, como uma realidade não visivel. Neste sentido, e ampliando a sugestão de Smith, o segredo vive na consciência dos homens que, ao se reunirem para qualquer fim, agem tendo em vista alvos não imediatamente perceptíveis pelos demais e, sobretudo, pelos alheios ao grupo. Ainda segundo Simmel, “o segredo oferece, por assim dizer, a possibidade de um segundo planeta ao lado do planeta manifesto; e o último é influenciado decisivamente pelo primeiro”.
O pensamento liberal é oposto ao segredo, salvo em situações de guerra. O ensaio de Bentham, 'Of Publicity', é o mais saliente nesse aspecto. A publicidade é “a lei mais apropriada para garantir a confiança pública, sendo a causa de seu avanço constante rumo ao fim de sua instituição”. O segredo, pensa Bentham, “é instrumento de conspiração; ele não deve, portanto, ser o sistema de um governo normal”. (35 ) Para citar novamente Simmel : “Toda democracia considera a publicidade como uma situação intrinsicamente desejável, seguindo a premissa fundamental de que todas as pessoas deveriam conhecer os eventos e circunstâncias que lhes interessam, visto que esta é a condição sem a qual elas não podem contribuir nas decisões sobre elas mesmas”. ( 36) E no entanto, na própria terra de Bentham o segredo do Gabinete é garantido pelo Privy Councillor´s Oath, a qual fornece a única definição constitucional de um ministro do governo. O ministro deve “manter segredo em todas as matérias atribuída ou revelada (…) ou a ser discutida no Conselho”. ( 37)
O problema com o segredo é a sua fácil descoberta. Ainda Simmel adverte: é justamente porque as regras são facilmente desobedecidas que todo sistema de regulamentação deve ser imantado por valores. “A preservação do segredo é instável, as tentações de trair são múltiplas; a estrada que vai da discreção à indiscreção é em tantos casos tão contínua, que a fé incondicional na discreção envolve uma incomparavel preponderância do fator subjetivo”. Em outras palavras: “o segredo é cercado pela possibilidade e tentação de trair; e o perigo externo de ser descoberto é entretecido com um perigo interno, que se parece com o fascinio de um abismo”. E porque o segredo é tão vulnerável? Ele é “um arranjo provisório para forças ascendentes e descendentes”. (38 )
Não analisarei aqui o segredo na ordem pública. Quanto ao problema subjetivo, indicado por Simmel (os valores), a filosofia ética possui amplíssimo cabedal de textos e análises, todas conduzindo para fortalecer a percepção e obediência individual e coletiva à disciplina requerida pelo segredo. Citarei apenas dois textos, dos mais influentes na formação da ética ocidental, do helenismo aos nossos dias. São dois tratados complementares de Plutarco, um sobre a fala em excesso e imprudente e outro sobre a curiosidade. No primeiro (39 ) o médico e filósofo Plutarco propõe alguns remédios para a cura da garrulice. Trata-se de uma tarefa quase impossível, pois o tratamento supõe o uso do remédio (pharmakon) que, no adoecido de palavrório, perdeu validade. De fato, o que fala em demasia gastou o poder do logos. Para retirá-lo de sua doença é essencial o uso do mesmo logos. Como fazê-lo ouvir a razão (na lingua grega, logos e razão identificam-se) se ele apenas fala e não ouve e, portanto, não arrazoa antes de jogar palavras ao vento ? Tal é o primeiro sintoma, diz Plutarco, do nosso adoecido : “a lingua mole torna-se impotência do ouvido”. Mas é pior: a surdez do falador é deliberada, o que o faz criticar a natureza que lhe deu apenas uma lingua e dois ouvidos. (40 )
A palavra tem como serventia trazer a credibilidade. Se ocorre uma inflação de palavras, elas perdem sua força. O perigo maior é quando à garrulice somam-se outras doenças, como o culto do vinho. “O que está no coração do sóbrio está na lingua do ébrio”. Dos locais a serem temidos, quando um governo possui tagarelas a seu préstimo, a barbearia é a mais ameaçadora. O rei Arquelau respondeu assim ao barbeiro gárrulo que lhe perguntou como desejava cortar o cabelo : “em silêncio!”. Marius dominava a região de Atenas, mas um bando de velhotes, conversando no barbeiro, deu a entender aos espiões que um setor da cidade estava desguarnecido. Sylla, sabedor do ponto fraco, ataca à noite por ele e quase arrasou a cidade, a qual ficou cheia de cadáveres ao ponto de um riacho de sangue invadir o Cerâmico. Quando ocorreu a conspiração para assassinar Nero, um inconfidente ao ver passar certo prisioneiro rumo à cela, cochichou para o infeliz que ele deveria tudo fazer para resistir um dia a mais, pois então estaria libertado. O condenado achou de bom aviso contar o que ouviu para Nero. O resto é conhecido. Conselho de Plutarco: “se deixas escapar o segredo para depositá-lo em outra pessoa, recorres à discreção alheia, mas renuncias à tua. Se o parece parece contigo, tua perda é justa; se ele for melhor do que tu, salvas-te contra toda lógica ao encontrar, para teu bem, um outro mais seguro do a tua pessoa. ´mas o amigo é um outro eu !´ ( ) Sim, mas ele também possui um amigo, a quem confidenciará… e que confiará em outro… (…) a palavra que permanece na primeira pessoa é um segredo de verdade, mas desde que passou para uma segunda, adquire o estatuto de de rumor público”.
O texto de Plutarco traz muitos exemplos unidos aos rumores políticos. O Senado romano manteve reuniões secretas e a mulher de um senador exigia de seu marido informações sobre os encontros. O politico finge anuir e diz-lhe o “segredo” seguinte : tratava-se de uma ave, com lança e capacete dourado, que surgira na cidade. O rumor seguiu até o forum, antes do homem que o inventou. Para punir sua mulher, ao chegar em casa fingiu que a coisa era séria e que, pela inconfidência, seria levado ao exilio. “Que desejas partilhar comigo?”. A resposta do poeta Filipides ao rei Lisímaco é a correta: “Tudo, menos teus segredos”.
Enfim, a “cura” do palavrório, segundo o médico e moralista Plutarco, não pode ser conseguida de modo violento, mas criando-se outros hábitos, costumes. O autor insiste nesse ponto, essencialmente ético : o falador deve ser treinado para ficar em silêncio, prestar atenção ao dito (treinar o ouvido), e fugir das conversas que mais agradam aos faladores. Se militar, o falador deve ser afastado das narrativas heróicas e assim por diante. Diríamos que os pescadores devem ser afastados de histórias de pescaria… Isso porque se entram no fluxo discursivo predileto, podem falar mais do que o necessário para engrandecer e embelezar o relato, o que dirige a lingua ao exagero sem o controle do pensamento. Basófias são fonte segura de segredos que se escoam. Um conselho: quando não se puder deixar de vez as rodas palavrosas, tente-se passar da oralidade à escrita. A literatura, embora ainda possa exercer a indiscreção (certo filósofo foi chamada “pena que berra” em Atenas) pode ser mais controlada pelo autor. Outra cura: fazer o linguarudo frequentar pessoas diferentes dele e deixar o círculo dos seus iguais. O respeito de opiniões ponderadas lhes fornecerá o hábito de calar.
Além da cura ética (mudança da postura, héxis) Plutarco recomenda reflexão e vigilância antes de falar. Diante da possível enunciação, perguntar sempre: “qual o propósito? É urgente? Que se ganha ao falar? O que se perde?”. A via régia foi aberta por Simonides, o poeta: nos arrependemos com frequência do que falamos, mas nunca do que silenciamos ( ) e que o treinamento tudo pode dominar. Muitos pensadores modernos, para falar do segredo e da necessária disciplina que ele exige, usam Plutarco mas esquecem de indicar a fonte. É o que se passa com Heidegger. Em sua análise absolutamente lúcida da comunicação moderna, o filósofo sublinha a perda radical do segredo, na ordem da publicidade. No mundo em que reina o “se”, todos os indivíduos estão sujeitos à discreção alheia. Ou seja, o que em Plutarco era uma doença de alguns, em nossos dias tornou-se pandemia. Mas o alheio, agora, o outro, não possui deteminação certa, ele pode ser alguém e ninguém ao mesmo tempo. Quando o indivíduo fala algo, ou faz, afirma de imediato sempre a culpa como advinda “dos outros”. Trata-se de um truque bem conhecido pois a fórmula “os outros” recolhe também quem fala ou faz. “Os outros” surgem na imprensa, no ônibus, nos passeios, nas reuniões sociais, e neles todos são dissolvidos, eu incluido. Trata-se de uma indiferença ou indistinção generalizada, na qual pouco importa o que eu ou você fala, porque ambos “falamos” o que “se fala” e “como se” fala. O discurso perde o sabor individual. Mesmo no “escândalo”, não ocorre falha entre o público e o privado: ambos são diversificações do indistinto modo de agir e julgar pré-estabelecido, o “se” (fala-se, diz-se, ouviu-se dizer que, etc). Julgamos escandaloso o que “se” (o público) julga escandaloso.
Heidegger identifica na midia a grande força de pasteurização e dissolução dos individuos e da linguagem. Na midia nada é secreto, porque nela inexiste o contacto efetivo com o que é, mas apenas com a média das percepções e da linguagem sobre os eventos e os seres. A mediania não desce fundo nas coisas e nas palavras, ela inscreve-se num horizonte medíocre que “facilita” a compreensão de todos. Desse modo, a midia não admite exceções, ela é absolutamente democrática e igualitária. Assim, ela não autoriza a surpresa diante de novos conhecimentos. Se aparece algo assim, ela sempre procura “mostrar” que o saber alegado é antigo. Na midia não existe reconhecimento do que foi conquistado em muito tempo e pesquisa. A novidade é a sua regra, o instantâneo o seu procedimento, o público é o seu alvo e a sua pressuposição. Com a mediania, “todo segredo perde a força e o mistério. A preocupação da media evidencia uma nova tendência do existente (Dasein), e nós a chamaremos o nivelamento de todas as possibilidades de ser”. Esse nivelamente constitui a essência da “opinião pública”. O referido público, como o freguês no mercado, sempre está com a razão e “decide” a correta interpretação de tudo : aplausos mais ou menos longos decidem a verdade, a beleza, a maestria técnica dos candidatos, nos programas de auditório. O mesmo ocorre nas pesquisas de opinião pública que decidem quais são os melhores aspirantes ao governo do Estado. O que é o “público” no qual imperam os hábitos encobertos pela forma do “se” ?
O “se” é a impessoalidade coletiva que “descarrega” os indivíduos de si mesmos, deixando-os sem qualquer responsabilidade ou culpa. Eles “fazem” ou “fizeram” o que “se” faz. Desse modo, nada é serio para os indivíduos, nada é grave, tudo é frivolo. Eles jamais têm culpa e tudo é objeto de risadas, comentários, falatórios. A covardia penetra o comportamente mediano obediente ao “se”. Nada, alí, que não pudesse encontrar em Rousseau uma descrição cortante. ( ) Quanto mais o “se” parece manifesto em toda parte, mais ele é imperceptível e dissimulado. E agora entramos na parte de Ser e Tempo que retoma, sem citar, o texto de Plutarco indicado acima, o De garrulitate. O § 35 escrito por Heidegger tem a mesma estrutura e andamento igual ao do tratado plutarquiano. Indiquei, ao passar por aquele texto que o primeiro ponto nele inscrito é a dificuldade de curar o palavrório, visto que a doença está inserida no instrumento da cura, o logos que deve ser ouvido pelo enfermo. Este não escuta porque tem toda a sua alma voltada para a lingua. Heidegger, no início de seu parágrafo distingue entre escutar e ouvir. Ouvir e compreender agarram-se ao que se diz, enquanto se diz. Não ocorre preocupação imediata com o objeto, com o que se diz. Quando alguém fala sem prestar atenção ao que é falado, apenas transmite e repete a fala. Quanto mais pessoas ouvem um discurso, mais ele toma um carater autoritário, isto é assim porque assim se diz. Essa parolagem chega ao máximo quanto rompe-se todo elo entre a palavra e o objeto que ela deveria colher. E a parolagem oral ou escrita, é nutrida por leitura maquinais. Temos então a compreensão média, repetitiva, pública. ( ) Tal forma de compreender é dogmática e dispensa todas as distinções entre a fala e os objetos. Ela é a verdade em andamento. A garrulice não dissimula, não se esconde em nenhum segredo, porque ela mesma já é dissimuladora. Quando um linguarudo fala, ele esconde sem saber ou desejar o que deveria ser dito, joga um veu de sons acima dos entes que deveriam ser pensados. Quando fala o tagarela, ele impede toda discussão posterior. “Tudo está dito”. E nada deve ser perguntado. Desaparece o segredo no mais banal, na opinião publica. ( )
No De garrulitate, Plutarco afirma que uma doença muito próxima, ou gêmea do falatório é a curiosidade. ( ) O tratado em que o moralista analisa a curiosidade possui acentuado sentido político entre os gregos. Como indica Dumortier ( ) a prática da polupragmonsune ( ) residena tendência a se imiscuir indiscretamente nos assuntos alheios, sejam eles privados ou públicos. Os atenienses criaram inclusive um termo para designar o sujeito que especula o que não lhe diz respeito: sicofanta (na origem, com bastante probabilidade, sicofanta era o delator dos que roubavam figos, nas comédias de Aristófanes os delatores e os sicofantas são ridicularizados). O emprego de alcagüetes marcava os tiranos. Na República, justamente quando Platão traça a pintura sinistra do tirano, entra a imagem dos mercenários que, caso sua terra possua cidadãos prudentes e sábios, dela saem para servir em terra estranha “como ladrões, furadores de muralhas, cortadores de bolsas, afanadores de roupas, pilhadores de templos, praticantes de tráfico escuso; por vezes, caso sejam capazes de falar, tornam-se sicofantas, falsas testemunhas, agentes da corrupção”. ( ) Esta gente é empregada pelo tirano para dominar os cidadãos livres da polis. De importância estratégica, no entanto, a atividade de sicofanta, delator a soldo do tirano. Mas para delatar é preciso seguir o segredo onde ele se encontra.
A imprensa serviu para atenuar o segredo de Estado e os demais sigilos (da vida privada à religiosa, sem deixar de lado a economia). Ela, no entanto, insere-se num complexo de interesses que a tornam constantemente atriz e vítima dos poderes naquelas várias esferas. Diria simplificadamente que todos aqueles setores percebem na imprensa uma aliada, quando não instrumento, se o problema é divulgar e propagar os seus intentos, procurando identificá-los ao “interesse geral”. Ela é bem vinda naquela cirscunstância. Empresas e indústrias, bancos e cúpulas eclesiásticas, gabinetes políticos ou militares, partidos e seitas, todos cortejam a imprensa na busca de popularizar a sua “mensagem”, obter lucros e favores de governos, ameaçar concorrentes. E todos a criticam acerbamente quando não conseguem efetivar, por seu intermédio, aqueles fins.
A história da imprensa moderna, sobretudo no campo do século 18 para cá, especialmente na política, é a crônica do perene choque contra o segredo, em especial o de Estado. Para conseguir leitores, os jornais que traziam notícias políticas ofereciam informes sobre projetos governamentais (economia, comércio, militares), estatísticas, orçamentos dos países sobre a potência militar, taxas de nascimentos e mortes, importação e exportação. Trata-se de apaziguar, como diz um historiador da imprensa, a fome generalizada de informação. Mas existia mais, neste afâ estatítico “Ele era um ato deliberado, politico, com ele se pretendia desvelar o segredo com o qual os governos absolutistas se envolviam, para gerar as bases de um debate público”.( )
(1) Georg Simmel, “The sociology of secrecy and of secret societies”, in American Journal of Sociology, V. 11, 4, janeiro 1906. Citado por Wolfgang Kaiser . «Pratiques du secret à l'époque moderne». Rives, 17-2004, Pratiques du secret, XVe-XVIIe siècles.no seguinte endereço: http://rives.revues.org/document102.html. Este site traz excelente análises sobre o problema do segredo. Cf. também Jean-Pierre Chrétien Goni, “Institutio arcanae”, p. 169 e ss. Cf. também Sarubbi, Antonio e Pasqualina Scudieri : I teorici della ragion di stato. Mito e realtà. Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane. 2000.
(2) Citado por Michel Senellart, « Simuler et dissimuler : l'art machiavélien d'être secret à la Renaissance », in : Histoire et secret à la Renaissance. Etudes sur la représentation de la vie publique, la mémoire et l'intimité dans l'Angleterre et l'Europe des XVIe et XVIIe siècles. (Paris, Ed. François Laroque, 1997), páginas 99-106.
(3) Cf. Gooch, G.P. : Political Thought in England, from Bacon to Halifax (Londo, University Press, 1946), páginas 2 a 45.
(4)Cf. Yavetz, Zvi : La plèbe et le prince. Foule et vie politique sous le haut-empire romain. Paris, Maspero, 1984.
(5) Cf. La Boétie, E. : Le discours de la sevitude volontaire. Paris, Payot, 1976. Há uma edição em português, publicada pela Ed. Brasiliense.
(6) Apesar dessa interpretação rápida e pouco rigorosa, defendida sobretudo por Pierre Clastres e apologetas assemelhados, a mais provável interpretação do texto em questão é a feita no século 19 por Paul Bonnefon : Estienne de la Boétie, sa vie, ses ouvrages et ses relations avec Monatigne. Genève, Slatkine Reprints, 1970. Do mesmo autor, cf. Oeuvres complètes d´Estienne de la Boétie. Paris, J. Rouan & cie. 1892.
(7) Cf. “Une oeuvre inconnue de la Boétie. Les mémoires sur l ´Édit de janvier 1562” . Editado por Paul Bonnefon. In Revue d´Histoire littéraire de la France. 24e année. 1917. Paris. Librairie Armand Colin, 1917.
(8)La Boétie, Etienne : Mémoires….ed. cit. p. 12.
(9)Citado por Jean-Pierre Chrétien Goni, op. cit. p. 141.
(10) Cf. Otto Gierke: Natural Law and the theory of society. 1500 to 1800. Boston, Beacon Press, 1960, p. 48. Para este passo, é importante consultar o livro de Gierke sobre Althusius : Johannes Althusius und die Entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien. Uso a tradução italiana : Giovanni Althusius e lo sviluppo storico delle teorie politiche giusnaturalistiche. Contributo alla storia della sistematica del diritto. Torino, Einaudi, 1974, a cura de A. Giolitti.
(11) Gierke, Althusius….ed. cit. pp. 81-83.
(12) “… if the King or Magistrate prov´d unfaithfull to his trust, the people would be disingag´d”.Um governo (Milton cita Aristóteles) “unnaccountable is the worst sort of Tyranny; and least of all to be endur´d by free born men” Cf. John Milton Selected Prose edited by C.A. Patrides. Harmondsworth, Penguin, 1974, pp. 249ss.
(13)Thomas Edwards : Grangraena, Terceira Parte (1646). Edição fotostática editada pela The Rota Ed. e Universidade de Exeter. 1977, p. 16.
(14) Cf. sobretudo Christopher Hill: Intellectual Origins of the English Revolution.London, Granada Publishing Ltd. 1965. Também Christopher Hill (Ed.) The Levellers and the English Revolution. Manchester, C, Nichollls & Company, 1961.
(15) Lembrança trazida por Laurent Versini, na edição que dirigiu das Oeuvres de Diderot (Paris, Robert Laffont, 1995) T. III, p. 507.
(16) Cf. Diderot, Denis : “Observations sur l ´Instruction de l ´Impératrice de Russie aux Députés pour la Confection des Lois”, in Oeuvres de Diderot, Ed. Versini , T. III, p.507.
(17) Die Diktatur. Von den Anfängen des modernen Souveränitätsgedankens bis zum proletarischen Klassenkampf- Munique/Leipzig, Duncker &Humblot Ed., 1928 (2a ed.). Como estigma contra os brasileiros, a terceira edição daquela obra foi editada na Alemanha exatamente em 1964.
(18) “Souverän ist, wer über den Ausnahmezustand entscheidet” . Esta é a primeira frase do escrito sobre a teologia política de Carl Schmitt. Cf. Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Souveranität. Munique, Duncker & Humblot, 1934. O enunciado apresenta-se não apenas em autores da chamada “direita” internacional, mas também em textos da “esquerda”, como por exemplo em Walter Benjamin. Tem toda razão Jean Pierre Faye, linguista e teórico do pensamento totalitário, quando refere-se à uma “ferradura” terminológica que reúne os vários matizes da paleta ideológica. Durante o nazismo, com a “colaboração” entre URSS e Alemanha, chegou a ser cunhada a expressão tremenda: “nacional-bolchevismo”. Mas estas são análises que devem ser feitas em outras ocasiões….
(19) Kelsen, em Das Problem der Souveränität, no contexto das relações juridicas —internacionais sobretudo— diz que “o conceito de soberania deve ser radicalmente eliminado”. Cf. Kelsen, Hans : Il problema della sovranità. (Milano, Giufrrè, 1989). Para uma análise crítica do pensamento de Hans Kelsen, cf. o escrito de Felippe, Márcio Sotelo : Razão Jurídica e Dignidade Humana (SP, Max Limonad, 1996). Para uma rigorosa análise do problema da soberania em Hans Kelsen e Carl Schmitt, ver Solon, Ari Marcelo : Teoria da Soberania como Problema da Norma Jurídica e da Decisão (Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1997).
(20) Cf. Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus. Munique, Duncker & Humblot Ed., 1926. Existe uma edição brasileira: Carl Schmitt, A crise da Democracia Parlamentar. Trad. Inês Lohbauer, São Paulo, Scritta Ed., 1996.
(21) Carl Schmitt : Der Hüter der Verfassung. Texto ideado em 1929, mas publicado mais tarde. Uso a edição de 1969 (Berlim, Duncker & Humblot).
(22) Recordemos o artigo 48 citado : "Caso a segurança e a ordem públicas forem seriamente (erheblich) perturbadas ou feridas no Reich alemão, o presidente do Reich debe tomar as medidas necessárias para restabelecer a segurança e a ordem públicas, com ajuda se necessário das forças armadas. Para este fim ele deve total ou parcialmente suspender os direitos fundamentais (Grundrechte) definidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124, and 153." Não por acaso disse Carl Schmitt que "nenhuma Constituição sobre a terra legalizou com tamanha facilidade um golpe de Estado quanto a constituição de Weimar”.
(23) Kelsen, H.: “Wer soll der Hüter der Verfassung sein?” Die Justiz 6, 1930-1931. Citado por John P. Mccormick : Carl Schmitt´s Critique of Liberalism. Against Politic as Technology (Cambridge University Press, 1997), página 144.
(24) Cf. Schmitt, Carl: Legalität und Legitimität (1932). Cito a edição italiana: Le categorie del ´politico´ (Bologna, Il Mulino, 1972), página 217.
(24) Cf. Schmitt, Carl : “Definição da soberania”, in Le categorie del ´politico´, ed. Cit. p, 39.
(25) Eva Horn: “Geheime Dienste. Über Praktiken und Wissensformen der Spionage" in Lettre International, 53, 07/ 2001, pp. 56-64. Versão inglêsa na Internet: Knowing the Enemy: “The Epistemology of Secret Intelligence”, no endereço seguinte :
http://www.kuwi.euv-frankfurt-o.de/westeuropaeischeliteraturen/mitarbeiter/horn/knowing%20the%20enemy.html#fn12
(25) 1963, com republicação em Berlim: Duncker & Humblot, 1995.
(26) Cf. Roberto Romano : O Desafio do Islã e outros desafios. SP, Ed. Perspectiva, 2004.
(27) Hannah Arendt : Le système totalitaire. Trad. Bourget, Ed. Davreu et Lévy, Paris, p. 103. 1972. Esta passagem é aproximada, por Jean-Pierre Chrétien-Goni, de um artigo publicado por Alexandre Koyré na revista Contemporary Jewish Record, em junho de 1945, com o título de “The Political function of the modern lie”. Cf. Goni, Jean-Pierre Chrétien: “Institutio arcanae” in Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: Le pouvoir de la raison d´état. Paris, PUF, 1992, p. 179.
(28) Citado por Arendt, op. cit. p. 268, nota 90. Cf. Chrétien-Goni, op. cit. p. 179. Para uma análise do pensamento de H. Arendt, cf. Celso Lafer Pensamento, persuasão e poder, RJ, Paz e Terra, 1979. tugerid
(29) “Il potere in maschera.” In L´Utopia capovolta. Torino, La Stampa, 1990.p. 62.
(30) Cf. Jos C.N. Raadschelders : “Woodrow Wilson on Public Office as a Public Trust” No endereço eletrônico : bush.tamu.edu/pubman/papers/2002/raadschelder.pdf
(31) Dean, John W.: “Worse than Watergate”, The New York Times, 02/05/04. “…a presiência Bush-Cheney é claramente nixoniana e apenas no que diz respeito ao segredo ela é pior (…). Dick Cheney, que dirige suas próprias operações governamentais secretas declara abertamente pretender que o relógio volte para antes de Watergate, tempo de uma presidência imperial, extra-constitucional e inconfiável (unaccountable). Declarar a sua presidência secreta como anti-democrática é pouco.(…)Woodrow Wilson, com base em seu longo estudo sobre a arte de governar, conclui o que todo mundo sabe, ou seja, que a corrução vigora nos lugares secretos e foge dos públicos. Acreditamos justo o enunciado que afirma o secredo enquanto sinônimo de impropriedade”. Sejam quais forem os juízos sobre o autor, ele indica um ponto que merece atenção.
(32) The Theory Of Moral Sentiments (1759): Parte VII – “Of Systems Of Moral Philosophy”. Raphael and A.L. Macfie (Ed.), vol. I The Glasgow Edition of the Works and Correspondence of Adam Smith, V.I, (Indianapolis: Liberty Fund,1987)
(33) Simmel, George, "The Secret and the Secret Society," in Kurt Wolff (ED.) The Sociology of Georg Simmel (New York: The Free Press, 1950) página 330. Cf. também Adam Ashforth: “Of Secrecy and the Commonplace: Witchcraft and Power in Soweto” Social Research, Vol. 63, 1996, página 1183 e seguintes.
(34) “Of Publicity”, citado por David Vincent : The Culture of Secrecy. Britain, 1832-1998. página 3.
(35) Simmel, op. cit. página 337.
(36) Citado por David Vincent, op. cit. página 6. “A powerful and persistent culture of secrecy--reflecting the basic assumption that good government is closed government and the public should only be allowed to know what the government decides they should know--was carried over from the nineteenth century and refined in the twentieth century when it was given statutory backing through Britain's formidable secrecy laws.” C. Ponting : Secrecy in Britain (Londres, 1990), cit. por David Vincent, op. cit. página 10.
(37) Simmel, op. cit.
(38) Peri adoleskias (De garrulitate). Uso aqui a edição das Moralia da Loeb Classical Library, Volume VI, Trad. W.C. Helmbold (Cambridge, Harcard university Press, 1970), páginas 396 e seguintes.
(39) Brincando com termos de medicina, Plutarco diz que o nome da doença do falador é asingesia, ou seja, impossibilidade de manter silêncio. O outro lado da mesma doença seria a anekoía, inabilidade para escutar. Resulta numa doença, também nomeada por Plutarco, a diarréousi, diarréia da lingua. Nota de Helmbold.
(40) Plutarco cita Aristóteles que, na Ética a Nicômaco (Livro IX, 1166 a31, 1170 b7) afirma “O homem bom experimenta vários sentimentos para consigo mesmo e porque ele sente para com o seu amigo do mesmo modo que sente por si mesmo (porque um amigo é um outro eu), a amizade também é pensado como consistindo em um ou outro desses sentimentos, e julga-se a posse deles como um teste de um amigo”. Uso a edição da Loeb Classical Library : Aristotle, Nicomachean Ethics, Volume XIX (Ed. H. Rackham), (London, Harvard University Press, 1990), página 535.
(41) Desse enunciado, uma tradução bem fundamentada encontra-se no Tractatus Logico-Philosophicus de Lugwig Wittgenstein : “Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen”. Na tradução de C.K. Ogden: “Whereof one cannot speak, thereof one must be silent.” Cf. no seguinte site : http://www.kfs.org/~jonathan/witt/tlph.html Para uma análise interessante, longe dos escolásticos de Wittgenstein que ditam o verbo e as verbas universitárias, sobretudo no problema do segredo e da linguagem, Cf. Sandra Laugier: “Le secret et la voix du langage ordinaire”, in Modernités, Dossier Dire le Secret (2002). Também no seguinte endereço eletrônico : http://formes-symboliques.org/article.php3?id_article=154#nh62 Cf. também, em outros parâmetros, Emmanuel Rouillé, «Le Secret et l’Aléthéia grecque», Le Portique, Recherches 2 - Cahier 2 2004, endereço eletrônico. http://leportique.revues.org/document465.html.
(42) “Aujourd’hui (…) il règne dans nos mœurs une vile et trompeuse uniformité, et tous les esprits semblent avoir été jetés dans un même moule : sans cesse la politesse exige, la bienséance ordonne : sans cesse on suit des usages, jamais son propre génie. On n’ose plus paraître ce qu’on est ; et dans cette contrainte perpétuelle, les hommes qui forment ce troupeau qu’on appelle société, placés dans les mêmes circonstances, feront tous les mêmes choses si des motifs plus puissants ne les en détournent. (…) Les soupçons, les ombrages, les craintes, la froideur, la réserve, la haine, la trahison se cacheront sans cesse sous ce voile uniforme et perfide de politesse, sous cette urbanité si vantée que nous devons aux lumières de notre siècle. On ne profanera plus par des jurements le nom du maître de l’univers, mais on l’insultera par des blasphèmes, sans que nos oreilles scrupuleuses en soient offensées. On ne vantera pas son propre mérite, mais on rabaissera celui d’autrui. On n’outragera point grossièrement son ennemi, mais on le calomniera avec adresse. Les haines nationales s’éteindront, mais ce sera avec l’amour de la patrie. A l’ignorance méprisée, on substituera un dangereux pyrrhonisme. Il y aura des excès proscrits, des vices déshonorés, mais d’autres seront décorés du nom de vertus ; il faudra ou les avoir ou les affecter.” Rousseau: no texto premiado pela Academie de Dijon (1750) : Si le rétablissement des sciences et des arts a contribué à épurer les mœurs. E na Carta a d´Alembert: “Si nos habitudes naissent de nos propres sentiments dans la retraite, elles naissent de l ´opinion d´auttrui dans la société. Quando on ne vit pas en soi, mais dans les autres, ce sont leurs jugements qui réglent tout, rien ne parait bon ni désirable aux particuliers que ce que le public a jugé tel, et le seul bonheur que la plupart des hommes connaissant est d´etre estimés heureux”. Pléiade, V. V (Paris, Gallimard, 1995), páginas 61-62. No Discurso sobre a desigualdade: “le sauvage vit en lui-même; l’homme sociable toujours hors de lui ne fait vivre que dans l’opinion des autres, et c’est, pour ainsi dire, de leur seul jugement qu’il tire le sentiment de sa propre existence”. Comentário: o homem social se esvazia nas multiplas opiniões. Cf. as análises de Pierre Burgelin : La philosophie del ´existence de J.-J. Rousseau (Paris, Vrin, 2005 ). Também, Hartle, A. : The modern self in Rousseau´s ´Confessions`. A reply to St. Augustine. (Indiana, University of notre Dame Ed., 1983).
(43) Um exemplo excelente dessa parolagem é indicado por Tomas Hobbes : “Na maioria das pessoas (…) o costume tem um poder tão grande que se a mente sugere uma palavra inicial apenas, o resto delas segue-se pelo habito e não são mais seguidas pela mente. É o que ocorre entre os mendigos quando rezam seu paternoster. Eles unem tais palavras e de tal modo, como aprenderam com suas babás, companhias ou seus professores, e não têm imagens ou concepções na mente para responder às palavras que enunciam. Como aprenderam, ensinam a posteridade. Se levarmos em contra os enganos do sentido e como os nomes foram inconstantemente determinados, o quanto estão submetidos ao equívoco e o quanto se diversificam pela paixão (raramente dois homens concordam sobre o chamado bem e mal, o que é liberalidade, prodigalidade, valor ou temeridade) e o quanto os homens são sujeitos ao paralogismo ou falácia no raciocínio, posso concluir de certa maneira dizendo que é impossível retificar tantos erros de um só homem, como devem proceder daquelas causas, sem começar de novo dos verdadeiros fundamentos iniciais de todo conhecimento, os sentidos; e, em vez de livros, ler ordenamente as nossas próprias concepções; nesse sentido eu entendo o nosce teipsum”. The Elements of Law, 1, 5. “Of Names, Reasoning, and Discourse of the Tongue”. Electronic Text Center, University of Virginia Library. (http://etext.lib.virginia.edu/toc/modeng/public/Hob2Ele.html)
(44) De Platão até hoje, a opinião (doxa) deve ser combatida pela ciência. Em Hegel, a opinião pública (Die öffentliche Meinung) ao mesmo tempo carrega elementos verdadeiros e incertos, produtos da raciocinação sem profundidade (o famoso Räsonieren, forma inferior da Razão). Uma pessoa ponderada não leva a sério a opinião pública, pois a própria opinião pública engana a si mesma. É preciso apreciá-la, pensa Hegel, mas também desprezá-la. Para que algo verdadeiro ou grande seja feito, é preciso que o sujeito tenha independência (Unabhängigkeit) diante dela. Ligada à opinião pública, a imprensa é o lugar do limitado, contingente, com infinita diversidade de conteúdo e modos de falar. O modo científico rompe com as alusões, as palavras postas pela metade. Ele exige uma expressão sem equívoco. Cf. Grundlinien der Philosophie des Rechts in Werke in zwanzig Bänden (FAM, Suhrkamp Verlag, 1975), V.7, §§ 316 a 319, páginas 483 e seguintes. Trad. Robert Derathé, Principes de la philosophie du droit (Paris, Vrin,1975) páginas 318 e seguintes. Estamos a um passo da noção de ideologia e de opinião pública enquanto falsa consciência. Cf. Habermas, J.: Mudança Estrutural da Ordem Pública (RJ, Tempo Brasileiro Ed., 1984), página149. E também Norberto Bobbio : Saggi sulla scienza politica in Italia, (Torino, Laterza, 2 ed., 1996). Bobbio compara nesse livro as teorias da ideologia em Marx e Pareto.
(45) “À garrulice se apega um mal que não lhe é inferior, a curiosidade (periergia): deseja-se saber muito, para muito falar, São especialmente histórias de segredo e de coisas escondidas, das quais se deseja encontrar os traços enfiando as fuças em todas as direções (…) Diz-se que as enguias do mar e as víperas morrem ao dar a luz aos seus filhotes; assim, os segredos, ao escapar, arruinam e destroem os que não os guardam”. Cf. De garrulitate, 12 citado aqui em Plutarque Oeuvres Morales, TomeVII-1,Trad. Jean Dumortier (Paris, Les Belles Lettres, 1975), página 242.
(46) Op. cit. páginas 261 e seguintes.
(47) Além de Jean Dumortier, cf. Adkins, A. W. H. “Polupragmosune and 'Minding One's Own Business': A Study in Greek Social and Political Values.” Classical Philology 71 (1976) páginas 301-27.
(48) República, IX, 575 b. Uso o texto do site Perseus. Cf. a tradução francesa de Leon Robin, Oeuvres complètes de Platon (Paris, Gallimard, 1953), Coll. Pléiade, Volume I, página 1180.
(49) Gerhard Schuck, Rheinbundpatriotismus und politische Öffentlichkeit zwischen Aufklärung und Frühliberalismus. Kontinuitätsdenken und Diskontinuitätserfahrung in den Staatsrechts- und Verfassungsdebatten der Rheinbundpublizistik (Stuttgart, 1994), pp. 55–63. Citado por Barker, H.: Press, Politics and the public Sphere in Europe and North American 1760-1820. (Cambridge, University Press, 2002), página 74.
Uma outra versão do texto, com enfoque nos elos entre Ministério Público e Imprensa, pode ser lida no seguinte endereço : bdjur.stj.gov.br/xmlui/handle/2011/31222
Notas para uma Filosofia do Segredo.
Roberto Romano/Unicamp
“À garrulice se apega um mal que não lhe é inferior, a curiosidade (periergia): deseja-se saber muito, para muito falar . São especialmente histórias de segredo e de coisas escondidas, das quais se deseja encontrar os traços enfiando as fuças em todas as direções (…) Diz-se que as enguias do mar e as víperas morrem ao dar a luz aos seus filhotes; assim, os segredos, ao escapar, arruinam e destroem os que não os guardam”. Plutarco.
A democracia começa e termina com o segredo. Na raison d´Etat, que serviu como base da ordem estatal moderna, foram discutidos todos os elementos da vida pública e de sua manutenção. Evidentemente, in nuce, não de forma ampliada e definitiva. O segredo não pode ser atribuído apenas ao Estado e às suas instituições. Algo tão antigo na história humana —um teórico importante como Simmel diz que ele “é uma das maiores conquistas da humanidade” (1) — atingiu seu pleno sentido político bem tarde na História. A sua prática passou das corporações aos setores administrativos, aperfeiçoando-se ao máximo. O segredo, enuncia Simmel, não pertence nem ao campo do ter nem ao do ser, mas ao do agir”.(2)
Com a democracia produzida nas três grandes revoluções modernas —inglêsa do século 17, a norte-americana e a francêsa no século 18— o segredo do Estado absolutista foi atenuado pelas noções de accountability e transparência. Na forma estatal anterior à democracia o soberano não deve satisfações aos parlamentos, aos juízes, aos súditos. Esta tese foi combatida desde longa data na Inglaterra. Edward Coke defendeu a independência dos juizes contra a Igreja Anglicana e contra James I. Ao replicar ao rei, o qual defendia suas prerrogativas contra “os advogados”, Coke afirma que o soberano “não foi educado no conhecimento das leis da Inglaterra”. James I ofendido replicou dizendo que se Coke tivesse razão, ele deveria estar sob a lei. Uma tal hipótese, em si mesma, seria “ traição evidente”. E o governante cita Bracton : “Rex non debet esse sub homine sed apud Deo et lege”. O autor do Presente Régio (Basilicon Doron) e do tratado Sobre a Verdadeira Lei das Livres Monarquias ou dos Mútuos Deveres entre Um Livre Rei e Seus Súditos (The True Law of Free Monarchies or the Mutual Duty Betwist a Free King and His Subjects, escreve que “um bom rei enquadra todas as suas ações segundo a lei; mas ele prende-se a ela, só pela sua boa vontade e para dar exemplo aos súditos. Ele é o senhor sobre todas as pessoas, tem poder de vida e morte. Embora um principe justo não tire a vida de nenhum súdito sem uma lei clara, a mesma lei com a qual ele tira a vida é feita por ele mesmo or seus predecessores”. Além de pai do seu povo, o rei, segundo Jaime, seria o professor universal, pois os súditos são fracos e ignorantes. E assim, ele é em tudo independente da sociedade e desconhece inclusive o judiciário: “A ruindade de um rei nunca pode fazê-lo ser julgado pelos juízes que ele próprio ordena”.
Na fala ao Parlamento de 1616, James proclama que “os reis são justamente chamados deuses; pois exercem um modo de semelhança do Divino poder sobre a terra. Porque se forem considerados os atributos de Deus, vemos o quanto eles concordam com a pessoa de um rei. Deus tem poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbítrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be accountable). O mesmo poder possuem os reis. Eles fazem e desfazem seus súditos; têm poder de erguer e abaixar; de vida e morte; julga acima de todos os súditos em todos os casos e só deve prestar contas a Deus (yet accountable to none but God). Eles têm o poder de exaltar as coisas pequenas e rebaixar as altas e fazer de seus súditos como fazem os jogadores com as peças de xadres”. Ainda em 1616 o monarca assim se dirigiu aos juízes da Star Chamber: “não usurpem a prerrogativa da Coroa. Se aparecer uma questão ligada à minha prerrogativa ou mistério do Estado, trato que não lhes diz respeito, consultem o rei ou o seu conselho, ou ambos; porque tais matérias são transcendentes. As prerrogativas absolutas da Coroa não é assunto para a lingua de um advogado, nem é legal disputar sobre elas”. Coke em companhia de outros juristas foi preso na Torre de Londres por nove meses, devido à resistência à referidas prerrogativas. (3)
Seria inaceitável para um governante absolutista a soberania popular e a noção de que os dirigentes deviam prestar contas de seus atos, sem guardar segredo, à massa não qualificada. Todos os principes liam nos tratados políticos e na literatura grega ou romana a plena desconfiança no povo. Este, para os latinos, era apenas o populo exturbato ex profugo, o improbante populo, o vulgus credulum, vulgus imprudens vel impudens, vulgus stolidum etc. (4) Etienne de La Boétie, autor do Discurso da Servidão Voluntária. (5) foi assumido no século vinte como suposto campeão do anarquismo. (6) Pouco se analisou, no entanto, o seu escrito intitulado Mémoires de nos troubles sur l´Édit de janvier 1562. (7) O mais relevante nesse relatório é a cautela frente ao povo, pois este se “acostuma a uma irreverência para com o magistrado e com o tempo aprende a desobedecer voluntáriamente, deixando-se conduzir pelas iscas da liberdade, ou melhor, licença, o mais doce e agradável veneno do mundo. Isto ocorre porque o elemento popular (…) imagina que só é preciso obedecer os superiores nas coisas boas por si mesmas, e se atribue o juízo sobre o bom e o ruim e chega à idéia de que não existe outra lei senão a sua consciência, ou seja, a persuasão de seu espirito e de suas fantasias”. (8) E arremata La Boétie: “O povo não tem meios de julgar, porque é desprovido do que fornece ou confirma um bom julgamento, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, ele acredita em outrem. Ora, é comum que a multidão creia mais nas pessoas do que nas coisas, e que ela seja mais persuadida pela autoridade de quem fala do que pelas razões que se enuncia”.
Gabriel Naudé, nas Considerações Políticas sobre os golpes de Estado (1639) fala do segredo e da desconfiança universal que obrigam o governante a se preservar “dos engodos, ruindades, surprêsas desagradáveis” quando a crise de legitimidade se instala. É preciso cautela, diz Naudé, contra o animal de muitas cabeças, “vagabundo, errante, louco, embriagado, sem conduta, sem espírito nem julgamento….a turba e laia popular joguete dos agitadores: oradores, pregadores, falsos profetas, impostores, políticos astutos, sediciosos, rebeldes, despeitados, supersticiosos”. ( 9)
Com lentidão surgiram outras percepções do povo, como em Althusius. (10 ) No final da Idade Média as doutrinas políticas indicavam que o fundamento do governo residia na submissão voluntária e contratual das comunidades governadas. Por direito natural só ao povo cabia colocar-se como fonte do poder estatal. Disso Bodin deduziu a transmissão total e incondicionada da soberania ao príncipe. Mas Althusius argumentou contra a diminuição da soberania popular com base no contrato. (11 ). O summus magistratus, para Althusius, era o povo. As convulsões que reuniram todos os prismas da vida capitalista triunfante, após a Reforma de Henrique VIII, ergueram a força popular traduzida em facções, dos Levellers aos Diggers, mesclando religião e imperativos democráticos. E daí nasceu a noção da accountability invertida: o rei não mais devia prestar contas apenas ao ser divino, mas apenas ao povo: Vox populi, vox dei. John Milton expressa com clareza os dois princípios: “… Se o rei ou magistrado provam ser infiéis aos seus compromissos o povo é liberto de sua palavra”. Estas frases, em The Tenure of Kings and Magistrates (12 ) definem o principio da nova legitimidade política. O summus magistratus popular exige responsabilidade dos que agem em seu nome.
Esses enunciados foram recolhidos por Thomas Edwards, inimigo de qualquer democracia, num catálogo de “heresias” políticas. O erro dos democratas, diz Edward, reside em afirmar que : “o poder supremo só pertence à Casa dos Comuns, porque só ela é escolhida pelo povo. O estado universal, o corpo do povo comum é o soberano terrestre, o senhor, rei e criador do rei, dos parlamentos, e todos os ministros da justiça. Majestade indeclinável e realidade residem de modo inerente no estado universal; e o rei, parlamentos, etc., são as suas meras criaturas e devem prestar contas a eles, os quais deles dispõem a seu bel prazer; o povo pode pedir de volta e reassumir seu poder, questioná-los, e colocar outros em seu lugar” (eu sublinho, RR) (13) Thomas Edwards era contrário à democracia, mas todos os seus enunciados baseiam-se em fontes (sobretudo delações) e documentos. A consulta aos historiadores do período, confirma a veracidade dos enunciados atribuidos por Edwards aos democratas. (14) As teses democráticas inglêsas repercutiram no século 18 pela Europa inteira e integram o corpus doutrinário moderno que formou o ideário sobre a partir do qual se fundamentam Estados como a própria Inglaterra, a França, os EUA.
Calaram fundo nos iluministas os princípios democráticos inglêses. Enuncia Diderot nas Observações sobre o Projeto de Constituição de Catarina 2 : “Não existe verdadeiro soberano a não ser a nação; não pode existir verdadeiro legislador, a não ser o povo; é raro que o povo se submeta sinceramente a leis que lhes são impostas; ele as amará, as respeitará, obedecerá, as defenderá como sua obra própria se é delas o autor (…) A primeira linha de um código bem feito deve ligar o soberano; ele deve começar assim : `Nós, o povo (e lembremos que este será o início da Constituição norte-americana : We the People…) (15 ) e nós, soberano desse povo, juramos conjuntamente essas leis pelas quais seremos igualmente julgados; e se ocorrer a nós, soberano, a intenção de mudá-las ou infringi-las, como inimigo de nosso povo, é justo que ele seja o nosso, que ele seja desligado do juramento de fidelidade, que ele nos processe, nos deponha e mesmo nos condene à morte se o caso exige; esta é a primeira lei de nosso código”. (16 )
Passada a era das revoluções, para usar o termo de Eric Hobsbawn, e depois do pesadelo trazido pelos Estados totalitários do século 20, o poder estatal apresenta agudos problemas. Na dialética contraditória ocorrida na ordem democrática anterior aos totalitarismos —os demagogos prometeram plena transparência ao povo, mas precisaram assumir o segredo estatal, foram eleitos pelo voto secreto e, nos palácios, usaram o segredo para domar as massas que os sufragaram— o pêndulo foi da convulsão social e política às tiranias como a nazista. A resposta do poder ao segredo do voto foi o recrudescimento e a manipulação inaudita do segredo de Estado. Examinemos o citado pêndulo num autor estratégico, Carl Schmitt, no livro A ditadura, das origens da idéia moderna de soberania à luta de classes proletárias (1921) (17 ) É dele a mais famosa fórmula do segredo no mundo político moderno : “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. (18 ) Contra Hans Kelsen, Schmitt pensa que o problema da soberania ainda existe no mundo moderno. (19 ) Schmitt é coerente crítico dos Parlamentos e do sistema representativo (20). Falando-se seriamente em democracia, pensa Schmitt, só o povo pode decidir o seu destino e jamais os deputados. A expressão “democracia representativa” é um meio de enganar as massas. Da impossível democracia parlamentar Schmitt segue ao Chefe do Estado, o protetor da Constituição posto acima dos entraves da legislação e das regras. O dirigente opera segundo a lógica da excepcionalidade. Em O Protetor da Constituição, (21) encontra-se a referência ao Poder Moderador definido no Império Brasileiro. A importância daquele poder situa-se no controle da soberania popular ou das pretensões parlamentares. Schmitt afirma que apenas o Reichspräsident pode defender a Constituição em tempo de crise. O tema gira ao redor do Artigo 48 da Constituição de Weimar. (22 ) Ao apelar ao Protetor da Constituição, o jurista nega que o judiciário possa exercer aquele papel, porque judiciário é idêntico a normas e age post factum, sempre atrasado na correção dos desvios e fraturas institucionais. Para remediar aquelas situações, apenas o Reichspräsident poderia ser movido, legal e constitucionalmente. Segundo Hans Kelsen, Schmitt reduz a Constituição de Weimar ao artigo 48. (23 ) Se, como diz Schmitt, “a independência é a necessidade primeira para um protetor da Constituição” e se os juizes ou deputados não podem cumprir aquele mister, segue-se que eles não são independentes, ou independentes o bastante para garantir o Estado. Desse modo, ele retira dos demais poderes a possibilidade de controlar e limitar o Protetor em seu poder excepcional.
O ponto estratégico, julga Schmitt, encontra-se na defesa da exceção, mais relevante no seu entender do que a regra (defendida pelos liberais). A exceção nega a soberania popular nos padrões do pensamento liberal, ou seja, nos padrões da representação, e permite a Schmitt o retorno ao Leviatã. Em Hobbes existiria a tese de um “governo que pode se reclamar da necessidade concreta, do estado das coisas, da força da situação, para outras justificações não determinadas pelas normas, mas pelas situações (…). Isso encontra o seu princípio existencial na adequação ao fim, na utilidade (…) na conformidade imediatamente concreta das suas medidas”. ( 24) Nas crises, o Estado “suspende o direito em virtude de um direito de auto-conservação”. (25 ) Nas categorias schmittianas sobre o inimigo na ordem estatal, sobretudo no campo diplomático, temos um prenúncio do que se passa em nossos dias no Ocidente. Seja porque o jurista —apesar de totalitário— previu situações perigosas, seja porque seus discípulos (como Leo Strauss), circularam as teses sobre o segredo no Estado, Schmitt fornece pressupostos para conceituar as máquinas de guerra e segredo que determinam os Estados e tendem a conduzir o mundo na era do terrorismo.
Um comentário exato desse status encontra-se em texto de Eva Horn, do qual cito um trecho: “permeado pela guerra em sua dupla essencia e natureza, a inteligência não liga-se ao tipo de poder tipificado pela soberania estatal, mas pela (…) ´máquina de guerra´, um movimento múltiplo de deslocamento no território tão oposto aos princípios de hierarquia e estratificação do ´aparelho estatal´. Guerra é rapidez, segredo, violência, astúcia, enquanto o Estado é entendido como fixidez e enraizamento num lugar, representação, o fim do bellum omnium contra omnes: a lei. A máquina de guerra (…) é externa ao Estado, mesmo quando seus elementos podem ser integrados no aparelho de estado (exército, polícia, serviços de inteligência). (…) A máquina de guerra é (…) uma dinâmica segundo a qual tudo se aparenta à guerra: sua capacidade de metamorfose e camuflagem traz rapidez e relação estratégica no espaço. Segredo e traição de segredos, desinformação e violação de tratados, propaganda e conspiração integram a máquina de guerra, a qual não pode ser inserida sob os principios da soberania nacional. É o moderno partisan, o clandestino e lutador ‘irregular’ que poderia ser chamado a corporificação paradigmática da máquina (…) de guerra”. (26 )
A última frase de Eva Horn retoma Carl Schmitt, agora na Theorie des Partisanen (27 ). As consequências dessa corrosão do Estado trazem desafios para a vida política internacional. As guerrilhas e as formas rápidas de luta contra inimigos fortes serviram nas batalhas de libertação nacional, da Espanha de 1808 ao Vietnã. Mas as “máquinas de guerra” geradas para enfrentar os movimentos guerrilheiros e inseridas nos Estados colonialistas e imperiais dos séculos 19 e 20, aprenderam as lições da guerrilha. Elas agem na fímbria da ordem estatal. Com o segredo, conduzem uma política marcada pela razão técnica, sem as cautelas diplomáticas que anteriormente asseguraram a razão de Estado. Os movimentos que apelaram para a guerrilha, em muitos países, seguiram para a desestabilização do Estado de direito e para a truculência ditatorial. O Camboja revelou-se como o máximo de horror nesta linha, com milhões de pessoas trucidadas nos campos da morte. Cuba, que exemplifica a ditadura que surgiu dos partisans, tornou-se um problema quase sem solução no século 21. O segredo e a máquina de guerra, num polo da vida política mundial e os terroristas que usam técnicas de guerrilha combinadas com sacrifícios rituais de corpos (os atentados suicidas), em outro, usurpam as prerrogativas legítimas do poder. (28)
Com a Segunda Guerra, a Guerra Fria, o Macarthismo e as formas autoritárias que visualizamos no mundo, o segredo aumentou sua abrangência. Se os países socialistas, supostamente repúblicas populares, quebraram a base da accountability e da fé pública em proveito dos governos, algo similar ocorre hoje na Europa e nos EUA. Hannah Arendt afirma que a vida totalitária deve ser entendida como reunião de “sociedades secretas estabelecidas públicamente”. (29 ) O paradoxo é só aparente. Hitler examinou os principios das sociedades secretas como corretos modelos para a sua própria. Ele promulgou em maio de 1939 algumas regras do seu partido: primeira regra: ninguém que não tenha necessidade de ser informado deve receber informação. Segunda : ninguém deve saber mais do que o necessário. Terceira: ninguém deve saber algo antes do necessário. (30 )
Consideremos a lição de Norberto Bobbio: “O governo democrático desenvolve sua atividade em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua própria atividade sob os olhos de todos porque todos os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual a razão os levaria periodicamente à urnas e em quais bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? (…) o poder oculto não transforma a democracia, a perverte. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus orgãos essenciais, mas a assassina”. (31 )
A democracia moderna surge com a exigência de accountability a ser cobrada dos governos. A radicalidade dos democratas inglêses rendeu frutos na Europa e na América do Norte. Os seus postulados sustentaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Woodrow Wilson, insiste no elo entre fé pública e responsabilidade, o que deve atenuar o segredo de Estado. (32) A recusa, durante a Guerra Fria, dos elementos jurídicos e políticos da accountability levaram os governos norte-americanos à quebra de padrões democráticos. Isto redundou em prejuízo dos povos em terras hegemônicas e calamidades para os dominados, do Vietnã ao Chile e deste ao Irã e Iraque. O segredo permitiu casos como o Irã-contras, a ajuda aos Talibãs, cuja ascensão ao poder foi entendida como vitória sobre a quase defunta URSS. O segredo permitiu que nas duas guerras do Iraque informações vitais fossem negadas ao público. A administração G. W. Bush conduz o segredo ao máximo (33) possível, incluindo-se o engano usado deliberadamente, como no caso das armas de destruição em massa. O segredo embaralha interesses de grupos privados e assuntos de governo, como nas licitações para a reconstrução do Iraque ao redor do petróleo.
A administração Bush emprega meios secretos para atingir alvos internos e internacionais, não raro retrocedendo na política doméstica, quando se trata do mesmo segredo. Em abril de 1994, foi editada uma Public Law (número 103-236) do governo estadunidense criando uma Comissão para reduzir o segredo governamental, tendo a frente Daniel Patrick Moyniham, do Partido Democratico, antigo membro de gabinete dos presidentes Kennedy, Johnson, Nixon e Ford. A comissão publicou um relatório (3/05/1997) cujas palavras iniciais eram as seguintes: "It is time for a new way of thinking about secrecy." Após essa tentativa o secredo retomou a iniciativa.
A tensa passagem do secreto ao público define o destino da democracia. Assistimos, nos últimos tempos, a derrocada quase absoluta de governos democráticos diante de forças antigas da vida social, religiões que exigem o retrocesso à legitimidade com base no divino e novas forças, como o “mercado”. Em nome da “confiança” deste último, programas expostos em longos anos aos cidadãos seguem para o vazio absoluto. Com uso do segredo “planos” econômicos são impostos, lesam os contribuintes em nome de interesses alheios aos seus países. Por outro lado, grupos terroristas atacam os três antigos monopólios estatais, a começar com o da força física, ameaçam a norma juridica. Ao mesmo tempo, os sistemas de narco-tráfico (não raro, como no Afeganistão, unidos ao terror) desafiam tribunais e governos, amealham cúmplices nos três poderes do Estado.
O segredo é essencial para se refletir sobre a forma democrática. Governos exasperam a prática de esconder os pontos maiores das políticas no setor público. Entramos no paradoxo: o público é definido fora do público. A opacidade estatal atinge níveis inéditos.O que tudo isso tem a ver com a soberania e a segurança nacionais? Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que o aumento do segredo em Estados hegemônicos diminui, ipso facto, a possível força dos dependentes ou não hegemônicos. Após a implosão da URSS, surgem no horizonte mundial três cenários nos quais se revelam as potências da Federação norte-americana, da insipiente União Européia, de uma possível união asiática, onde se disputam a hegemonia a China, o Japão, a India e os pequenos “tigres”. Já discutimos esse ponto no ano passado, neste mesma sala. Naturalmente todos os quesitos desta ordem já foram examinados com profundidade no âmbito deste Escola Superior. Pemitam-me trazer algumas modestas achegas ao problema do segredo.
Sendo fato social, o segredo se manifesta em todos os coletivos humanos, das igrejas às seitas, dos Estados aos partidos, dos advogados aos juízes, dos quartéis às guerrilhas, das corporações aos pequenos vendedores de rua, da imprensa à formas de censura, dos laboratórios e bibliotecas universitários à fábricas, dos bancos às obras de caridade. Se descermos mais fundo, da sociologia à ordem antropológica, podemos dizer que o segredo é o lado oposto e necessário da linguagem comunicacional. Adam Smith, com argucia pergunta-se : “Como é possível determinar segundo regras o ponto exato no qual, em todo caso, um delicado sentido de justiça segue para o escrupulo fraco e frivolo da consciência? Quando o segredo e a reserva começa a caminhar rumo à dissimulação ?” ( 34) A prudência define a passagem de uma prática ou experiência do segredo antropológica e éticamente correta, para uma outra, em que se manifesta o poder abusivo. A balança entre abertura e segredo foi indicada por Simmel : “a intenção de esconder assume intensidade tanto maior quanto se choca com a intenção de revelar”. ( ) O segredo integra a vida, como uma realidade não visivel. Neste sentido, e ampliando a sugestão de Smith, o segredo vive na consciência dos homens que, ao se reunirem para qualquer fim, agem tendo em vista alvos não imediatamente perceptíveis pelos demais e, sobretudo, pelos alheios ao grupo. Ainda segundo Simmel, “o segredo oferece, por assim dizer, a possibidade de um segundo planeta ao lado do planeta manifesto; e o último é influenciado decisivamente pelo primeiro”.
O pensamento liberal é oposto ao segredo, salvo em situações de guerra. O ensaio de Bentham, 'Of Publicity', é o mais saliente nesse aspecto. A publicidade é “a lei mais apropriada para garantir a confiança pública, sendo a causa de seu avanço constante rumo ao fim de sua instituição”. O segredo, pensa Bentham, “é instrumento de conspiração; ele não deve, portanto, ser o sistema de um governo normal”. (35 ) Para citar novamente Simmel : “Toda democracia considera a publicidade como uma situação intrinsicamente desejável, seguindo a premissa fundamental de que todas as pessoas deveriam conhecer os eventos e circunstâncias que lhes interessam, visto que esta é a condição sem a qual elas não podem contribuir nas decisões sobre elas mesmas”. ( 36) E no entanto, na própria terra de Bentham o segredo do Gabinete é garantido pelo Privy Councillor´s Oath, a qual fornece a única definição constitucional de um ministro do governo. O ministro deve “manter segredo em todas as matérias atribuída ou revelada (…) ou a ser discutida no Conselho”. ( 37)
O problema com o segredo é a sua fácil descoberta. Ainda Simmel adverte: é justamente porque as regras são facilmente desobedecidas que todo sistema de regulamentação deve ser imantado por valores. “A preservação do segredo é instável, as tentações de trair são múltiplas; a estrada que vai da discreção à indiscreção é em tantos casos tão contínua, que a fé incondicional na discreção envolve uma incomparavel preponderância do fator subjetivo”. Em outras palavras: “o segredo é cercado pela possibilidade e tentação de trair; e o perigo externo de ser descoberto é entretecido com um perigo interno, que se parece com o fascinio de um abismo”. E porque o segredo é tão vulnerável? Ele é “um arranjo provisório para forças ascendentes e descendentes”. (38 )
Não analisarei aqui o segredo na ordem pública. Quanto ao problema subjetivo, indicado por Simmel (os valores), a filosofia ética possui amplíssimo cabedal de textos e análises, todas conduzindo para fortalecer a percepção e obediência individual e coletiva à disciplina requerida pelo segredo. Citarei apenas dois textos, dos mais influentes na formação da ética ocidental, do helenismo aos nossos dias. São dois tratados complementares de Plutarco, um sobre a fala em excesso e imprudente e outro sobre a curiosidade. No primeiro (39 ) o médico e filósofo Plutarco propõe alguns remédios para a cura da garrulice. Trata-se de uma tarefa quase impossível, pois o tratamento supõe o uso do remédio (pharmakon) que, no adoecido de palavrório, perdeu validade. De fato, o que fala em demasia gastou o poder do logos. Para retirá-lo de sua doença é essencial o uso do mesmo logos. Como fazê-lo ouvir a razão (na lingua grega, logos e razão identificam-se) se ele apenas fala e não ouve e, portanto, não arrazoa antes de jogar palavras ao vento ? Tal é o primeiro sintoma, diz Plutarco, do nosso adoecido : “a lingua mole torna-se impotência do ouvido”. Mas é pior: a surdez do falador é deliberada, o que o faz criticar a natureza que lhe deu apenas uma lingua e dois ouvidos. (40 )
A palavra tem como serventia trazer a credibilidade. Se ocorre uma inflação de palavras, elas perdem sua força. O perigo maior é quando à garrulice somam-se outras doenças, como o culto do vinho. “O que está no coração do sóbrio está na lingua do ébrio”. Dos locais a serem temidos, quando um governo possui tagarelas a seu préstimo, a barbearia é a mais ameaçadora. O rei Arquelau respondeu assim ao barbeiro gárrulo que lhe perguntou como desejava cortar o cabelo : “em silêncio!”. Marius dominava a região de Atenas, mas um bando de velhotes, conversando no barbeiro, deu a entender aos espiões que um setor da cidade estava desguarnecido. Sylla, sabedor do ponto fraco, ataca à noite por ele e quase arrasou a cidade, a qual ficou cheia de cadáveres ao ponto de um riacho de sangue invadir o Cerâmico. Quando ocorreu a conspiração para assassinar Nero, um inconfidente ao ver passar certo prisioneiro rumo à cela, cochichou para o infeliz que ele deveria tudo fazer para resistir um dia a mais, pois então estaria libertado. O condenado achou de bom aviso contar o que ouviu para Nero. O resto é conhecido. Conselho de Plutarco: “se deixas escapar o segredo para depositá-lo em outra pessoa, recorres à discreção alheia, mas renuncias à tua. Se o parece parece contigo, tua perda é justa; se ele for melhor do que tu, salvas-te contra toda lógica ao encontrar, para teu bem, um outro mais seguro do a tua pessoa. ´mas o amigo é um outro eu !´ ( ) Sim, mas ele também possui um amigo, a quem confidenciará… e que confiará em outro… (…) a palavra que permanece na primeira pessoa é um segredo de verdade, mas desde que passou para uma segunda, adquire o estatuto de de rumor público”.
O texto de Plutarco traz muitos exemplos unidos aos rumores políticos. O Senado romano manteve reuniões secretas e a mulher de um senador exigia de seu marido informações sobre os encontros. O politico finge anuir e diz-lhe o “segredo” seguinte : tratava-se de uma ave, com lança e capacete dourado, que surgira na cidade. O rumor seguiu até o forum, antes do homem que o inventou. Para punir sua mulher, ao chegar em casa fingiu que a coisa era séria e que, pela inconfidência, seria levado ao exilio. “Que desejas partilhar comigo?”. A resposta do poeta Filipides ao rei Lisímaco é a correta: “Tudo, menos teus segredos”.
Enfim, a “cura” do palavrório, segundo o médico e moralista Plutarco, não pode ser conseguida de modo violento, mas criando-se outros hábitos, costumes. O autor insiste nesse ponto, essencialmente ético : o falador deve ser treinado para ficar em silêncio, prestar atenção ao dito (treinar o ouvido), e fugir das conversas que mais agradam aos faladores. Se militar, o falador deve ser afastado das narrativas heróicas e assim por diante. Diríamos que os pescadores devem ser afastados de histórias de pescaria… Isso porque se entram no fluxo discursivo predileto, podem falar mais do que o necessário para engrandecer e embelezar o relato, o que dirige a lingua ao exagero sem o controle do pensamento. Basófias são fonte segura de segredos que se escoam. Um conselho: quando não se puder deixar de vez as rodas palavrosas, tente-se passar da oralidade à escrita. A literatura, embora ainda possa exercer a indiscreção (certo filósofo foi chamada “pena que berra” em Atenas) pode ser mais controlada pelo autor. Outra cura: fazer o linguarudo frequentar pessoas diferentes dele e deixar o círculo dos seus iguais. O respeito de opiniões ponderadas lhes fornecerá o hábito de calar.
Além da cura ética (mudança da postura, héxis) Plutarco recomenda reflexão e vigilância antes de falar. Diante da possível enunciação, perguntar sempre: “qual o propósito? É urgente? Que se ganha ao falar? O que se perde?”. A via régia foi aberta por Simonides, o poeta: nos arrependemos com frequência do que falamos, mas nunca do que silenciamos ( ) e que o treinamento tudo pode dominar. Muitos pensadores modernos, para falar do segredo e da necessária disciplina que ele exige, usam Plutarco mas esquecem de indicar a fonte. É o que se passa com Heidegger. Em sua análise absolutamente lúcida da comunicação moderna, o filósofo sublinha a perda radical do segredo, na ordem da publicidade. No mundo em que reina o “se”, todos os indivíduos estão sujeitos à discreção alheia. Ou seja, o que em Plutarco era uma doença de alguns, em nossos dias tornou-se pandemia. Mas o alheio, agora, o outro, não possui deteminação certa, ele pode ser alguém e ninguém ao mesmo tempo. Quando o indivíduo fala algo, ou faz, afirma de imediato sempre a culpa como advinda “dos outros”. Trata-se de um truque bem conhecido pois a fórmula “os outros” recolhe também quem fala ou faz. “Os outros” surgem na imprensa, no ônibus, nos passeios, nas reuniões sociais, e neles todos são dissolvidos, eu incluido. Trata-se de uma indiferença ou indistinção generalizada, na qual pouco importa o que eu ou você fala, porque ambos “falamos” o que “se fala” e “como se” fala. O discurso perde o sabor individual. Mesmo no “escândalo”, não ocorre falha entre o público e o privado: ambos são diversificações do indistinto modo de agir e julgar pré-estabelecido, o “se” (fala-se, diz-se, ouviu-se dizer que, etc). Julgamos escandaloso o que “se” (o público) julga escandaloso.
Heidegger identifica na midia a grande força de pasteurização e dissolução dos individuos e da linguagem. Na midia nada é secreto, porque nela inexiste o contacto efetivo com o que é, mas apenas com a média das percepções e da linguagem sobre os eventos e os seres. A mediania não desce fundo nas coisas e nas palavras, ela inscreve-se num horizonte medíocre que “facilita” a compreensão de todos. Desse modo, a midia não admite exceções, ela é absolutamente democrática e igualitária. Assim, ela não autoriza a surpresa diante de novos conhecimentos. Se aparece algo assim, ela sempre procura “mostrar” que o saber alegado é antigo. Na midia não existe reconhecimento do que foi conquistado em muito tempo e pesquisa. A novidade é a sua regra, o instantâneo o seu procedimento, o público é o seu alvo e a sua pressuposição. Com a mediania, “todo segredo perde a força e o mistério. A preocupação da media evidencia uma nova tendência do existente (Dasein), e nós a chamaremos o nivelamento de todas as possibilidades de ser”. Esse nivelamente constitui a essência da “opinião pública”. O referido público, como o freguês no mercado, sempre está com a razão e “decide” a correta interpretação de tudo : aplausos mais ou menos longos decidem a verdade, a beleza, a maestria técnica dos candidatos, nos programas de auditório. O mesmo ocorre nas pesquisas de opinião pública que decidem quais são os melhores aspirantes ao governo do Estado. O que é o “público” no qual imperam os hábitos encobertos pela forma do “se” ?
O “se” é a impessoalidade coletiva que “descarrega” os indivíduos de si mesmos, deixando-os sem qualquer responsabilidade ou culpa. Eles “fazem” ou “fizeram” o que “se” faz. Desse modo, nada é serio para os indivíduos, nada é grave, tudo é frivolo. Eles jamais têm culpa e tudo é objeto de risadas, comentários, falatórios. A covardia penetra o comportamente mediano obediente ao “se”. Nada, alí, que não pudesse encontrar em Rousseau uma descrição cortante. ( ) Quanto mais o “se” parece manifesto em toda parte, mais ele é imperceptível e dissimulado. E agora entramos na parte de Ser e Tempo que retoma, sem citar, o texto de Plutarco indicado acima, o De garrulitate. O § 35 escrito por Heidegger tem a mesma estrutura e andamento igual ao do tratado plutarquiano. Indiquei, ao passar por aquele texto que o primeiro ponto nele inscrito é a dificuldade de curar o palavrório, visto que a doença está inserida no instrumento da cura, o logos que deve ser ouvido pelo enfermo. Este não escuta porque tem toda a sua alma voltada para a lingua. Heidegger, no início de seu parágrafo distingue entre escutar e ouvir. Ouvir e compreender agarram-se ao que se diz, enquanto se diz. Não ocorre preocupação imediata com o objeto, com o que se diz. Quando alguém fala sem prestar atenção ao que é falado, apenas transmite e repete a fala. Quanto mais pessoas ouvem um discurso, mais ele toma um carater autoritário, isto é assim porque assim se diz. Essa parolagem chega ao máximo quanto rompe-se todo elo entre a palavra e o objeto que ela deveria colher. E a parolagem oral ou escrita, é nutrida por leitura maquinais. Temos então a compreensão média, repetitiva, pública. ( ) Tal forma de compreender é dogmática e dispensa todas as distinções entre a fala e os objetos. Ela é a verdade em andamento. A garrulice não dissimula, não se esconde em nenhum segredo, porque ela mesma já é dissimuladora. Quando um linguarudo fala, ele esconde sem saber ou desejar o que deveria ser dito, joga um veu de sons acima dos entes que deveriam ser pensados. Quando fala o tagarela, ele impede toda discussão posterior. “Tudo está dito”. E nada deve ser perguntado. Desaparece o segredo no mais banal, na opinião publica. ( )
No De garrulitate, Plutarco afirma que uma doença muito próxima, ou gêmea do falatório é a curiosidade. ( ) O tratado em que o moralista analisa a curiosidade possui acentuado sentido político entre os gregos. Como indica Dumortier ( ) a prática da polupragmonsune ( ) residena tendência a se imiscuir indiscretamente nos assuntos alheios, sejam eles privados ou públicos. Os atenienses criaram inclusive um termo para designar o sujeito que especula o que não lhe diz respeito: sicofanta (na origem, com bastante probabilidade, sicofanta era o delator dos que roubavam figos, nas comédias de Aristófanes os delatores e os sicofantas são ridicularizados). O emprego de alcagüetes marcava os tiranos. Na República, justamente quando Platão traça a pintura sinistra do tirano, entra a imagem dos mercenários que, caso sua terra possua cidadãos prudentes e sábios, dela saem para servir em terra estranha “como ladrões, furadores de muralhas, cortadores de bolsas, afanadores de roupas, pilhadores de templos, praticantes de tráfico escuso; por vezes, caso sejam capazes de falar, tornam-se sicofantas, falsas testemunhas, agentes da corrupção”. ( ) Esta gente é empregada pelo tirano para dominar os cidadãos livres da polis. De importância estratégica, no entanto, a atividade de sicofanta, delator a soldo do tirano. Mas para delatar é preciso seguir o segredo onde ele se encontra.
A imprensa serviu para atenuar o segredo de Estado e os demais sigilos (da vida privada à religiosa, sem deixar de lado a economia). Ela, no entanto, insere-se num complexo de interesses que a tornam constantemente atriz e vítima dos poderes naquelas várias esferas. Diria simplificadamente que todos aqueles setores percebem na imprensa uma aliada, quando não instrumento, se o problema é divulgar e propagar os seus intentos, procurando identificá-los ao “interesse geral”. Ela é bem vinda naquela cirscunstância. Empresas e indústrias, bancos e cúpulas eclesiásticas, gabinetes políticos ou militares, partidos e seitas, todos cortejam a imprensa na busca de popularizar a sua “mensagem”, obter lucros e favores de governos, ameaçar concorrentes. E todos a criticam acerbamente quando não conseguem efetivar, por seu intermédio, aqueles fins.
A história da imprensa moderna, sobretudo no campo do século 18 para cá, especialmente na política, é a crônica do perene choque contra o segredo, em especial o de Estado. Para conseguir leitores, os jornais que traziam notícias políticas ofereciam informes sobre projetos governamentais (economia, comércio, militares), estatísticas, orçamentos dos países sobre a potência militar, taxas de nascimentos e mortes, importação e exportação. Trata-se de apaziguar, como diz um historiador da imprensa, a fome generalizada de informação. Mas existia mais, neste afâ estatítico “Ele era um ato deliberado, politico, com ele se pretendia desvelar o segredo com o qual os governos absolutistas se envolviam, para gerar as bases de um debate público”.( )
(1) Georg Simmel, “The sociology of secrecy and of secret societies”, in American Journal of Sociology, V. 11, 4, janeiro 1906. Citado por Wolfgang Kaiser . «Pratiques du secret à l'époque moderne». Rives, 17-2004, Pratiques du secret, XVe-XVIIe siècles.no seguinte endereço: http://rives.revues.org/document102.html. Este site traz excelente análises sobre o problema do segredo. Cf. também Jean-Pierre Chrétien Goni, “Institutio arcanae”, p. 169 e ss. Cf. também Sarubbi, Antonio e Pasqualina Scudieri : I teorici della ragion di stato. Mito e realtà. Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane. 2000.
(2) Citado por Michel Senellart, « Simuler et dissimuler : l'art machiavélien d'être secret à la Renaissance », in : Histoire et secret à la Renaissance. Etudes sur la représentation de la vie publique, la mémoire et l'intimité dans l'Angleterre et l'Europe des XVIe et XVIIe siècles. (Paris, Ed. François Laroque, 1997), páginas 99-106.
(3) Cf. Gooch, G.P. : Political Thought in England, from Bacon to Halifax (Londo, University Press, 1946), páginas 2 a 45.
(4)Cf. Yavetz, Zvi : La plèbe et le prince. Foule et vie politique sous le haut-empire romain. Paris, Maspero, 1984.
(5) Cf. La Boétie, E. : Le discours de la sevitude volontaire. Paris, Payot, 1976. Há uma edição em português, publicada pela Ed. Brasiliense.
(6) Apesar dessa interpretação rápida e pouco rigorosa, defendida sobretudo por Pierre Clastres e apologetas assemelhados, a mais provável interpretação do texto em questão é a feita no século 19 por Paul Bonnefon : Estienne de la Boétie, sa vie, ses ouvrages et ses relations avec Monatigne. Genève, Slatkine Reprints, 1970. Do mesmo autor, cf. Oeuvres complètes d´Estienne de la Boétie. Paris, J. Rouan & cie. 1892.
(7) Cf. “Une oeuvre inconnue de la Boétie. Les mémoires sur l ´Édit de janvier 1562” . Editado por Paul Bonnefon. In Revue d´Histoire littéraire de la France. 24e année. 1917. Paris. Librairie Armand Colin, 1917.
(8)La Boétie, Etienne : Mémoires….ed. cit. p. 12.
(9)Citado por Jean-Pierre Chrétien Goni, op. cit. p. 141.
(10) Cf. Otto Gierke: Natural Law and the theory of society. 1500 to 1800. Boston, Beacon Press, 1960, p. 48. Para este passo, é importante consultar o livro de Gierke sobre Althusius : Johannes Althusius und die Entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien. Uso a tradução italiana : Giovanni Althusius e lo sviluppo storico delle teorie politiche giusnaturalistiche. Contributo alla storia della sistematica del diritto. Torino, Einaudi, 1974, a cura de A. Giolitti.
(11) Gierke, Althusius….ed. cit. pp. 81-83.
(12) “… if the King or Magistrate prov´d unfaithfull to his trust, the people would be disingag´d”.Um governo (Milton cita Aristóteles) “unnaccountable is the worst sort of Tyranny; and least of all to be endur´d by free born men” Cf. John Milton Selected Prose edited by C.A. Patrides. Harmondsworth, Penguin, 1974, pp. 249ss.
(13)Thomas Edwards : Grangraena, Terceira Parte (1646). Edição fotostática editada pela The Rota Ed. e Universidade de Exeter. 1977, p. 16.
(14) Cf. sobretudo Christopher Hill: Intellectual Origins of the English Revolution.London, Granada Publishing Ltd. 1965. Também Christopher Hill (Ed.) The Levellers and the English Revolution. Manchester, C, Nichollls & Company, 1961.
(15) Lembrança trazida por Laurent Versini, na edição que dirigiu das Oeuvres de Diderot (Paris, Robert Laffont, 1995) T. III, p. 507.
(16) Cf. Diderot, Denis : “Observations sur l ´Instruction de l ´Impératrice de Russie aux Députés pour la Confection des Lois”, in Oeuvres de Diderot, Ed. Versini , T. III, p.507.
(17) Die Diktatur. Von den Anfängen des modernen Souveränitätsgedankens bis zum proletarischen Klassenkampf- Munique/Leipzig, Duncker &Humblot Ed., 1928 (2a ed.). Como estigma contra os brasileiros, a terceira edição daquela obra foi editada na Alemanha exatamente em 1964.
(18) “Souverän ist, wer über den Ausnahmezustand entscheidet” . Esta é a primeira frase do escrito sobre a teologia política de Carl Schmitt. Cf. Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Souveranität. Munique, Duncker & Humblot, 1934. O enunciado apresenta-se não apenas em autores da chamada “direita” internacional, mas também em textos da “esquerda”, como por exemplo em Walter Benjamin. Tem toda razão Jean Pierre Faye, linguista e teórico do pensamento totalitário, quando refere-se à uma “ferradura” terminológica que reúne os vários matizes da paleta ideológica. Durante o nazismo, com a “colaboração” entre URSS e Alemanha, chegou a ser cunhada a expressão tremenda: “nacional-bolchevismo”. Mas estas são análises que devem ser feitas em outras ocasiões….
(19) Kelsen, em Das Problem der Souveränität, no contexto das relações juridicas —internacionais sobretudo— diz que “o conceito de soberania deve ser radicalmente eliminado”. Cf. Kelsen, Hans : Il problema della sovranità. (Milano, Giufrrè, 1989). Para uma análise crítica do pensamento de Hans Kelsen, cf. o escrito de Felippe, Márcio Sotelo : Razão Jurídica e Dignidade Humana (SP, Max Limonad, 1996). Para uma rigorosa análise do problema da soberania em Hans Kelsen e Carl Schmitt, ver Solon, Ari Marcelo : Teoria da Soberania como Problema da Norma Jurídica e da Decisão (Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1997).
(20) Cf. Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus. Munique, Duncker & Humblot Ed., 1926. Existe uma edição brasileira: Carl Schmitt, A crise da Democracia Parlamentar. Trad. Inês Lohbauer, São Paulo, Scritta Ed., 1996.
(21) Carl Schmitt : Der Hüter der Verfassung. Texto ideado em 1929, mas publicado mais tarde. Uso a edição de 1969 (Berlim, Duncker & Humblot).
(22) Recordemos o artigo 48 citado : "Caso a segurança e a ordem públicas forem seriamente (erheblich) perturbadas ou feridas no Reich alemão, o presidente do Reich debe tomar as medidas necessárias para restabelecer a segurança e a ordem públicas, com ajuda se necessário das forças armadas. Para este fim ele deve total ou parcialmente suspender os direitos fundamentais (Grundrechte) definidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124, and 153." Não por acaso disse Carl Schmitt que "nenhuma Constituição sobre a terra legalizou com tamanha facilidade um golpe de Estado quanto a constituição de Weimar”.
(23) Kelsen, H.: “Wer soll der Hüter der Verfassung sein?” Die Justiz 6, 1930-1931. Citado por John P. Mccormick : Carl Schmitt´s Critique of Liberalism. Against Politic as Technology (Cambridge University Press, 1997), página 144.
(24) Cf. Schmitt, Carl: Legalität und Legitimität (1932). Cito a edição italiana: Le categorie del ´politico´ (Bologna, Il Mulino, 1972), página 217.
(24) Cf. Schmitt, Carl : “Definição da soberania”, in Le categorie del ´politico´, ed. Cit. p, 39.
(25) Eva Horn: “Geheime Dienste. Über Praktiken und Wissensformen der Spionage" in Lettre International, 53, 07/ 2001, pp. 56-64. Versão inglêsa na Internet: Knowing the Enemy: “The Epistemology of Secret Intelligence”, no endereço seguinte :
http://www.kuwi.euv-frankfurt-o.de/westeuropaeischeliteraturen/mitarbeiter/horn/knowing%20the%20enemy.html#fn12
(25) 1963, com republicação em Berlim: Duncker & Humblot, 1995.
(26) Cf. Roberto Romano : O Desafio do Islã e outros desafios. SP, Ed. Perspectiva, 2004.
(27) Hannah Arendt : Le système totalitaire. Trad. Bourget, Ed. Davreu et Lévy, Paris, p. 103. 1972. Esta passagem é aproximada, por Jean-Pierre Chrétien-Goni, de um artigo publicado por Alexandre Koyré na revista Contemporary Jewish Record, em junho de 1945, com o título de “The Political function of the modern lie”. Cf. Goni, Jean-Pierre Chrétien: “Institutio arcanae” in Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: Le pouvoir de la raison d´état. Paris, PUF, 1992, p. 179.
(28) Citado por Arendt, op. cit. p. 268, nota 90. Cf. Chrétien-Goni, op. cit. p. 179. Para uma análise do pensamento de H. Arendt, cf. Celso Lafer Pensamento, persuasão e poder, RJ, Paz e Terra, 1979. tugerid
(29) “Il potere in maschera.” In L´Utopia capovolta. Torino, La Stampa, 1990.p. 62.
(30) Cf. Jos C.N. Raadschelders : “Woodrow Wilson on Public Office as a Public Trust” No endereço eletrônico : bush.tamu.edu/pubman/papers/2002/raadschelder.pdf
(31) Dean, John W.: “Worse than Watergate”, The New York Times, 02/05/04. “…a presiência Bush-Cheney é claramente nixoniana e apenas no que diz respeito ao segredo ela é pior (…). Dick Cheney, que dirige suas próprias operações governamentais secretas declara abertamente pretender que o relógio volte para antes de Watergate, tempo de uma presidência imperial, extra-constitucional e inconfiável (unaccountable). Declarar a sua presidência secreta como anti-democrática é pouco.(…)Woodrow Wilson, com base em seu longo estudo sobre a arte de governar, conclui o que todo mundo sabe, ou seja, que a corrução vigora nos lugares secretos e foge dos públicos. Acreditamos justo o enunciado que afirma o secredo enquanto sinônimo de impropriedade”. Sejam quais forem os juízos sobre o autor, ele indica um ponto que merece atenção.
(32) The Theory Of Moral Sentiments (1759): Parte VII – “Of Systems Of Moral Philosophy”. Raphael and A.L. Macfie (Ed.), vol. I The Glasgow Edition of the Works and Correspondence of Adam Smith, V.I, (Indianapolis: Liberty Fund,1987)
(33) Simmel, George, "The Secret and the Secret Society," in Kurt Wolff (ED.) The Sociology of Georg Simmel (New York: The Free Press, 1950) página 330. Cf. também Adam Ashforth: “Of Secrecy and the Commonplace: Witchcraft and Power in Soweto” Social Research, Vol. 63, 1996, página 1183 e seguintes.
(34) “Of Publicity”, citado por David Vincent : The Culture of Secrecy. Britain, 1832-1998. página 3.
(35) Simmel, op. cit. página 337.
(36) Citado por David Vincent, op. cit. página 6. “A powerful and persistent culture of secrecy--reflecting the basic assumption that good government is closed government and the public should only be allowed to know what the government decides they should know--was carried over from the nineteenth century and refined in the twentieth century when it was given statutory backing through Britain's formidable secrecy laws.” C. Ponting : Secrecy in Britain (Londres, 1990), cit. por David Vincent, op. cit. página 10.
(37) Simmel, op. cit.
(38) Peri adoleskias (De garrulitate). Uso aqui a edição das Moralia da Loeb Classical Library, Volume VI, Trad. W.C. Helmbold (Cambridge, Harcard university Press, 1970), páginas 396 e seguintes.
(39) Brincando com termos de medicina, Plutarco diz que o nome da doença do falador é asingesia, ou seja, impossibilidade de manter silêncio. O outro lado da mesma doença seria a anekoía, inabilidade para escutar. Resulta numa doença, também nomeada por Plutarco, a diarréousi, diarréia da lingua. Nota de Helmbold.
(40) Plutarco cita Aristóteles que, na Ética a Nicômaco (Livro IX, 1166 a31, 1170 b7) afirma “O homem bom experimenta vários sentimentos para consigo mesmo e porque ele sente para com o seu amigo do mesmo modo que sente por si mesmo (porque um amigo é um outro eu), a amizade também é pensado como consistindo em um ou outro desses sentimentos, e julga-se a posse deles como um teste de um amigo”. Uso a edição da Loeb Classical Library : Aristotle, Nicomachean Ethics, Volume XIX (Ed. H. Rackham), (London, Harvard University Press, 1990), página 535.
(41) Desse enunciado, uma tradução bem fundamentada encontra-se no Tractatus Logico-Philosophicus de Lugwig Wittgenstein : “Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen”. Na tradução de C.K. Ogden: “Whereof one cannot speak, thereof one must be silent.” Cf. no seguinte site : http://www.kfs.org/~jonathan/witt/tlph.html Para uma análise interessante, longe dos escolásticos de Wittgenstein que ditam o verbo e as verbas universitárias, sobretudo no problema do segredo e da linguagem, Cf. Sandra Laugier: “Le secret et la voix du langage ordinaire”, in Modernités, Dossier Dire le Secret (2002). Também no seguinte endereço eletrônico : http://formes-symboliques.org/article.php3?id_article=154#nh62 Cf. também, em outros parâmetros, Emmanuel Rouillé, «Le Secret et l’Aléthéia grecque», Le Portique, Recherches 2 - Cahier 2 2004, endereço eletrônico. http://leportique.revues.org/document465.html.
(42) “Aujourd’hui (…) il règne dans nos mœurs une vile et trompeuse uniformité, et tous les esprits semblent avoir été jetés dans un même moule : sans cesse la politesse exige, la bienséance ordonne : sans cesse on suit des usages, jamais son propre génie. On n’ose plus paraître ce qu’on est ; et dans cette contrainte perpétuelle, les hommes qui forment ce troupeau qu’on appelle société, placés dans les mêmes circonstances, feront tous les mêmes choses si des motifs plus puissants ne les en détournent. (…) Les soupçons, les ombrages, les craintes, la froideur, la réserve, la haine, la trahison se cacheront sans cesse sous ce voile uniforme et perfide de politesse, sous cette urbanité si vantée que nous devons aux lumières de notre siècle. On ne profanera plus par des jurements le nom du maître de l’univers, mais on l’insultera par des blasphèmes, sans que nos oreilles scrupuleuses en soient offensées. On ne vantera pas son propre mérite, mais on rabaissera celui d’autrui. On n’outragera point grossièrement son ennemi, mais on le calomniera avec adresse. Les haines nationales s’éteindront, mais ce sera avec l’amour de la patrie. A l’ignorance méprisée, on substituera un dangereux pyrrhonisme. Il y aura des excès proscrits, des vices déshonorés, mais d’autres seront décorés du nom de vertus ; il faudra ou les avoir ou les affecter.” Rousseau: no texto premiado pela Academie de Dijon (1750) : Si le rétablissement des sciences et des arts a contribué à épurer les mœurs. E na Carta a d´Alembert: “Si nos habitudes naissent de nos propres sentiments dans la retraite, elles naissent de l ´opinion d´auttrui dans la société. Quando on ne vit pas en soi, mais dans les autres, ce sont leurs jugements qui réglent tout, rien ne parait bon ni désirable aux particuliers que ce que le public a jugé tel, et le seul bonheur que la plupart des hommes connaissant est d´etre estimés heureux”. Pléiade, V. V (Paris, Gallimard, 1995), páginas 61-62. No Discurso sobre a desigualdade: “le sauvage vit en lui-même; l’homme sociable toujours hors de lui ne fait vivre que dans l’opinion des autres, et c’est, pour ainsi dire, de leur seul jugement qu’il tire le sentiment de sa propre existence”. Comentário: o homem social se esvazia nas multiplas opiniões. Cf. as análises de Pierre Burgelin : La philosophie del ´existence de J.-J. Rousseau (Paris, Vrin, 2005 ). Também, Hartle, A. : The modern self in Rousseau´s ´Confessions`. A reply to St. Augustine. (Indiana, University of notre Dame Ed., 1983).
(43) Um exemplo excelente dessa parolagem é indicado por Tomas Hobbes : “Na maioria das pessoas (…) o costume tem um poder tão grande que se a mente sugere uma palavra inicial apenas, o resto delas segue-se pelo habito e não são mais seguidas pela mente. É o que ocorre entre os mendigos quando rezam seu paternoster. Eles unem tais palavras e de tal modo, como aprenderam com suas babás, companhias ou seus professores, e não têm imagens ou concepções na mente para responder às palavras que enunciam. Como aprenderam, ensinam a posteridade. Se levarmos em contra os enganos do sentido e como os nomes foram inconstantemente determinados, o quanto estão submetidos ao equívoco e o quanto se diversificam pela paixão (raramente dois homens concordam sobre o chamado bem e mal, o que é liberalidade, prodigalidade, valor ou temeridade) e o quanto os homens são sujeitos ao paralogismo ou falácia no raciocínio, posso concluir de certa maneira dizendo que é impossível retificar tantos erros de um só homem, como devem proceder daquelas causas, sem começar de novo dos verdadeiros fundamentos iniciais de todo conhecimento, os sentidos; e, em vez de livros, ler ordenamente as nossas próprias concepções; nesse sentido eu entendo o nosce teipsum”. The Elements of Law, 1, 5. “Of Names, Reasoning, and Discourse of the Tongue”. Electronic Text Center, University of Virginia Library. (http://etext.lib.virginia.edu/toc/modeng/public/Hob2Ele.html)
(44) De Platão até hoje, a opinião (doxa) deve ser combatida pela ciência. Em Hegel, a opinião pública (Die öffentliche Meinung) ao mesmo tempo carrega elementos verdadeiros e incertos, produtos da raciocinação sem profundidade (o famoso Räsonieren, forma inferior da Razão). Uma pessoa ponderada não leva a sério a opinião pública, pois a própria opinião pública engana a si mesma. É preciso apreciá-la, pensa Hegel, mas também desprezá-la. Para que algo verdadeiro ou grande seja feito, é preciso que o sujeito tenha independência (Unabhängigkeit) diante dela. Ligada à opinião pública, a imprensa é o lugar do limitado, contingente, com infinita diversidade de conteúdo e modos de falar. O modo científico rompe com as alusões, as palavras postas pela metade. Ele exige uma expressão sem equívoco. Cf. Grundlinien der Philosophie des Rechts in Werke in zwanzig Bänden (FAM, Suhrkamp Verlag, 1975), V.7, §§ 316 a 319, páginas 483 e seguintes. Trad. Robert Derathé, Principes de la philosophie du droit (Paris, Vrin,1975) páginas 318 e seguintes. Estamos a um passo da noção de ideologia e de opinião pública enquanto falsa consciência. Cf. Habermas, J.: Mudança Estrutural da Ordem Pública (RJ, Tempo Brasileiro Ed., 1984), página149. E também Norberto Bobbio : Saggi sulla scienza politica in Italia, (Torino, Laterza, 2 ed., 1996). Bobbio compara nesse livro as teorias da ideologia em Marx e Pareto.
(45) “À garrulice se apega um mal que não lhe é inferior, a curiosidade (periergia): deseja-se saber muito, para muito falar, São especialmente histórias de segredo e de coisas escondidas, das quais se deseja encontrar os traços enfiando as fuças em todas as direções (…) Diz-se que as enguias do mar e as víperas morrem ao dar a luz aos seus filhotes; assim, os segredos, ao escapar, arruinam e destroem os que não os guardam”. Cf. De garrulitate, 12 citado aqui em Plutarque Oeuvres Morales, TomeVII-1,Trad. Jean Dumortier (Paris, Les Belles Lettres, 1975), página 242.
(46) Op. cit. páginas 261 e seguintes.
(47) Além de Jean Dumortier, cf. Adkins, A. W. H. “Polupragmosune and 'Minding One's Own Business': A Study in Greek Social and Political Values.” Classical Philology 71 (1976) páginas 301-27.
(48) República, IX, 575 b. Uso o texto do site Perseus. Cf. a tradução francesa de Leon Robin, Oeuvres complètes de Platon (Paris, Gallimard, 1953), Coll. Pléiade, Volume I, página 1180.
(49) Gerhard Schuck, Rheinbundpatriotismus und politische Öffentlichkeit zwischen Aufklärung und Frühliberalismus. Kontinuitätsdenken und Diskontinuitätserfahrung in den Staatsrechts- und Verfassungsdebatten der Rheinbundpublizistik (Stuttgart, 1994), pp. 55–63. Citado por Barker, H.: Press, Politics and the public Sphere in Europe and North American 1760-1820. (Cambridge, University Press, 2002), página 74.