quinta-feira, 10 de março de 2011

Duas análises importantissimas, saidas em jornais diferentes no Brasil. É preciso que elas sejam lidas e meditadas.

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São Paulo, quinta-feira, 10 de março de 2011




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OPINIÃO ONDA DE REVOLTAS

Jornalistas em Trípoli se prestam ao jogo sinistro do regime

Ao aceitar restrições e perseguições, correspondentes estrangeiros acabam sendo cúmplices da censura


UM PORTA-VOZ ACONSELHOU OS FOTÓGRAFOS A NÃO SUBIREM AO PRIMEIRO ANDAR. "SE VOCÊS SUBIREM, VÃO SER MORTOS IMEDIATAMENTE. ESTOU SÓ AVISANDO. ESTOU TENTANDO AJUDAR"


PETER BEAUMONT

DO "GUARDIAN", EM TRÍPOLI

Uma noite, na tradicional coletiva que o regime do coronel Gaddafi oferece todos os dias no hotel Rixos, em Trípoli, uma carta foi entregue aos jornalistas.
Era a cópia de um comunicado a Li Baodong, presidente do Conselho de Segurança da ONU. Para os jornalistas, sobressaiu o sexto parágrafo.

"Nenhuma restrição é imposta aos jornalistas estrangeiros. Correspondentes trabalham livremente na Líbia, e todas as necessárias instalações são fornecidas a eles. Eles têm liberdade de movimento, exceto em áreas controladas pelos terroristas da Al Qaeda", dizia o texto.
A realidade é que jornalistas não podem trabalhar livremente, apesar das inúmeras promessas de pessoas como Saif al Islam, filho do ditador, e do vice-chanceler Khalid Khaymen.
Nos últimos dias, o "Guardian" foi detido duas vezes por testar essas promessas. A primeira, por seis horas e meia, perto da cidade de Zawiyah, após visita a instalações de inteligência.
No episódio, disseram aos jornalistas que eles seriam vendados e levados a um lugar não identificado.
Na segunda ocasião, o repórter do jornal foi detido por três horas por paramilitares em um posto de controle -junto com outros 24 jornalistas detidos em Trípoli num único dia.
Jornalistas de outras nacionalidades, todos com permissão para trabalhar no país, têm sido submetidos a tratamento ainda pior: alguns passaram a noite detidos, foram espancados por milícias ou ameaçados com armas carregadas.

SEM PROTEÇÃO
Autoridades responsáveis pela imprensa têm pouco interesse em protegê-la. Quando o "Guardian" foi detido no sábado, o chefe do escritório de imprensa disse aos que buscaram ajuda que ele havia "lavado as mãos". Havia um "preço a pagar" por não seguir as regras .
Quando os homens de Gaddafi ajudam, é nos termos mais sinistros. Um porta-voz do governo, Moussa Ibrahim, falando com um grupo de jornalistas que esperava um discurso de Gaddafi no hotel, aconselhou os fotógrafos a não subirem ao primeiro andar. "Se vocês subirem, vão ser mortos imediatamente. Estou só avisando. Estou tentando ajudar."
Se há um senso de ameaça contra a mídia internacional, as consequências para os líbios que falam com a gente são muito mais sérias.
Na sexta-feira, um jovem de uma região opositora em Trípoli, foi preso diante de nós após uma conversa.

COLETIVAS SURREAIS
O conteúdo das coletivas de imprensa beira o surreal. Operações ofensivas viram operações defensivas.
O que leva à pergunta: por que estamos aqui? A resposta é preocupante. Jornalistas estão em Trípoli para dar o pano de fundo para os pronunciamentos do governo.
Não somos apenas o inimigo. Somos uma audiência cativa. Ao registrar o que os porta-vozes e Gaddafi dizem, damos crédito a suas declarações, por mais extravagantes que sejam.
A alternativa para as tentativas arriscadas de fazer jornalismo independente é aquilo a que o governo dá acesso. Todos os dias, os jornalistas se reúnem no Rixos à espera de um tour a uma localidade onde, inevitavelmente, um teatrinho do regime foi montado.
Enquanto isso, o que está acontecendo com os civis líbios é efetivamente censurado. Em algum momento, por nossa mera presença, ao sermos ineficazes, nos tornaremos cúmplices da censura.



A notícia como arma de guerra

10 de março de 2011 | 0h 00

Eugênio Bucci - O Estado de S.Paulo

No domingo passado, antes que o dia raiasse, os habitantes de Trípoli foram acordados por metralhadoras. Quando ligaram a televisão, deram de cara com uma notícia oficialmente alvissareira: as tropas pró-Kadafi teriam dispersado os rebeldes em outras cidades e a artilharia que soava nas ruas da capital era simplesmente uma celebração da "vitória". Os telespectadores que ainda apoiam o governo, aliviados, saíram de casa rumo à Praça Verde para festejar as boas novas.

Em tempo: a emissora que noticiou a "vitória" era a TV estatal, ainda a serviço do ditador. Sem o controle da "sua" emissora, dificilmente a ditadura líbia estaria de pé até hoje. Ela sobrevive porque, além da máquina de matar sua própria gente, conta também com outra máquina, a máquina da propaganda, para enganar o povo.

Eis aqui um tema central. Não obstante, nas análises em curso sobre a onda de levantes no mundo árabe, a manipulação da informação pelas ditaduras quase nunca é debatida, explicada, entendida. Deveria ser. A falsificação oficial nos regimes autoritários ou totalitários constitui um crime, embora esse crime ainda não seja reconhecido como tal pelos organismos internacionais que se ocupam da paz e dos direitos humanos. Ela não apenas pavimenta o caminho para a opressão da sociedade pela força das armas - esta, sim, já reconhecida como crime -, como viola um direito fundamental do ser humano, o direito à informação, e, desse modo, obstrui a livre formação da opinião e da vontade. Por isso, a propaganda oficial - e criminosa - ainda em funcionamento na Líbia merece muito mais atenção do que vem recebendo. Ela é uma triste lição para as democracias, tanto para as que já existem de fato como para aquelas que só existem em sonho. Com ela podemos aprender um pouco mais sobre:

o que o Estado não deveria ser autorizado a fazer com a comunicação de interesse público;

a que fim a manipulação da informação pelo poder público pode nos conduzir;

e, por fim, como cada dia mais o jornalismo independente é vital para a manutenção da paz.

Voltemos, então, ao turbulento e absurdo domingo em Trípoli. Quem nos conta é o jornalista David D. Kirkpatrick, numa reportagem publicada na edição de segunda-feira do The New York Times. Ele relata a alegria de Noura al-Said, estudante de 17 anos, diante do noticiário do governo: "Ouvi as melhores notícias de toda a minha vida. Nós tomamos de volta todo o país." Noura al-Said festejava a "vitória" na Praça Verde, ao lado de cerca de 2 mil manifestantes, muitos deles atirando para o ar.

Evidentemente, Kadafi não tomou de volta a Líbia coisa nenhuma. Os manifestantes governistas comemoravam um feito inexistente, embalados pelo noticiário, que, como de costume, mentiu. É verdade que houve disparos à guisa de comemoração na Praça Verde, como o próprio repórter americano constatou, mas a alegação de que as rajadas da madrugada não passavam de foguetório festivo não convencia mesmo os mais crédulos. O que não foi problema para os crédulos e muito menos para os noticiários oficiais. Para ambos, a idolatria do coronel Kadafi vale mais que o registro os fatos. É uma idolatria que vem de longa data, desde que o coronel tomou o poder - a mão armada - há mais de quatro décadas, aos 27 anos de idade. Desde então, o culto à personalidade virou uma prioridade de Estado e estabeleceu a tirania com base em duas ferramentas: a propaganda e a força bruta.

Não surpreende que, quando a sociedade rebelada já domina extensas faixas do mapa da Líbia, o ditador sobreviva exatamente porque manteve sob seu comando ao menos um pedaço das duas velhas ferramentas. Ele ainda conta com uma facção das Forças Armadas - leais a sua pessoa, não ao Estado - e com meios de comunicação oficiais. Sobre essas duas pernas consegue se equilibrar. As armas, ele as transforma em propaganda nas ruas de Trípoli. A propaganda vira arma de guerra dentro dos lares.

Até aí, o script parece não trazer novidades. É assim com todos os tiranos. Na falta de legitimidade, lançam mão de balas e notícias mentirosas. Nesse ponto, o teatro do ditador líbio seria idêntico ao teatro de outros autocratas. Em alguns quesitos, porém, a máquina de propaganda de Kadafi conseguiu ser ainda mais sufocante que suas homólogas - e também por isso merece atenção. Recentemente, circulou a notícia de que, na Líbia, os jogadores de futebol são identificados apenas pelos números de suas camisetas, de modo a não se converterem em ídolos que poderiam rivalizar com o tirano. Parece sandice, parece inconcebível, mas é assim que é.

David D. Kirkpatrick também registra essa particularidade em sua reportagem: "Os noticiários oficiais se esforçam para não citar o nome de nenhuma outra autoridade do governo, nem mesmo de jogadores de futebol, e, assim, garantem que o coronel Kadafi seja virtualmente a única figura pública no país." O tirano de Trípoli, nessa matéria, ultrapassa a megalomania de outros ditadores: ele não se pretende "o maior" ou "o melhor"; ele se imagina o único - e ainda aglutina adoradores.

Por isso, para salvar vidas na Líbia, mais importante do que cercar o espaço aéreo para os aviões da tirania talvez seja cortar a propagação das mentiras oficiais. Mais jornalistas internacionais na Líbia são imprescindíveis, assim como são necessários mais relatos dos próprios rebeldes líbios, dirigidos aos seus conterrâneos e ao mundo. A pacificação do país passa pela oferta de mais informação independente.

Fora isso, que a decrepitude ridícula e sangrenta de Muamar Kadafi sirva de alerta contra os que, em outras tendas, acalentam o projeto de usar emissoras estatais como extensão de sua vaidade pessoal.

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP E DA ESPM