Administrar os segredos de Estado torna-se o desafio de nossa política e um dos mais graves perigos para a cidadania
Por Roberto Romano
“A administração Bush procurou sistematicamente limitar o acesso aos atos do governo ao mesmo tempo em que expandia sua autoridade para agir em segredo. Usando mudanças legislativas, implementando regras e práticas administrativas, a administração diminui a força das leis que tornam o governo federal mais transparente aos seus cidadãos (…) No mesmo instante a administração aumentou o alcance das leis que a autorizam a classificar documentos e agir sem a visão ampla do público e do Congresso. Individualmnte, certas mudanças implementadas pela administração Bush podem possuir impacto restrito.
Tomadas em conjunto, entretanto, as ações da administração representam um assalto sem paralelos contra o princípio de um governo aberto e confiável (accountable)”. Assim é encerrado o relatório “Secrecy in the Bush Administration” de Henry A. Waxman (United States House of Representatives Committee on Government Reform— Minority Staff special Investigations Division, de 14 de setembro de 2004). O texto deve ser lido pelos brasileiros preocupados com o futuro. Ele capta as técnicas do governo estadunidense para fugir do público. O segredo integra a raison d´État, mas o governo norte-americano se descola do mando estatal e da cidadania num silencioso golpe de Estado que muda a democracia em ordem oligárquica na qual um ínfimo grupo de poderosos no governo une-se às elites tradicionais.
O segredo estatal surgiu na Renascença como herança das corporações. Para evitar a concorrência, elas mantinham sigilo quanto às técnicas (de produção e de comércio) e a tudo o que se passava no seu interior. O Estado (francês e inglês, sobretudo) controlou as corporações e imitou, para todos os seus procedimentos (fiscais, diplomáticos, guerreiros, tecnológicos) o segredo enquanto ordem política. As revoluções inglesa, norte-americana e francesa, atenuaram o segredo em favor da transparência no Estado, o que tinha como premissa a soberania popular. Com a ditadura de Cromwell ocorreu um retrocesso acentuado pela Restauração. Os defensores democráticos da transparência e da fé pública (os governantes seriam responsáveis diante dos cidadãos, podendo ser demitidos por eles, no princípio da accountability) foram vencidos. A revolução norte-americana foi uma continuidade do que se passou na Inglaterra. As teses democráticas levaram ao Estado federativo, com recuos na soberania popular. Princípios foram postos para diminuir as teses radicais. Um deles é o Colégio Eleitoral que elege o presidente, uma torsão na soberania do povo. Outro item é o segredo na vida administrativa. Na França, com o Termidor e Bonaparte, a soberania popular chegou ao grau zero e o segredo do governo atingiu o máximo.
Os Estados hegemônicos do século XX (os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a Alemanha e a União Soviética) saíram da experiência anti-democrática do século anterior. Neles, o segredo cresceu a cada crise (guerras mundiais, Guerra Fria etc...) e a ordem democrática foi afastada em seus territórios e nos que deles dependiam (a URSS, no leste europeu e os EUA, sobretudo na América do Sul) com golpes de Estado. Os EUA ocupam um lugar solitário no domínio mundial. A reeleição de Bush aumenta o segredo, diminui as prerrogativas cidadãs e anuncia um pesadelo para os povos que sonham com a soberania. Surgem federações como a União Européia e as potências do Extremo Oriente. A concorrência entre aqueles poderes aumentará o segredo, enfraquecendo a democracia.
Num cenário assim é preciso pensar o estatuto de nosso país. O que ocorrerá conosco nos próximos tempos? Ler advertências como a de Waxman é um exercício de lucidez. Administrar o segredo torna-se o desafio de nossa política e um dos mais graves perigos para a cidadania. Este é um tema a ser discutido com seriedade em reuniões como o Fórum Social Mundial. Com o máximo segredo nos EUA, os atentados contra democracias serão a norma. A morte do procurador venezuelano Danilo Anderson, que investigava o golpe de Estado contra Hugo Chávez, alerta que na crônica do terrorismo as intimidações estatais definem um modus operandi perene. No Brasil, desde os documentos sobre as práticas de tortura (governo militar) até procedimentos comuns da administração, escondem-se no segredo. É tempo de retomar o debate entre a fé pública e os administradores. Segundo pesquisa do Instituto Gallup, apenas um em cada dez jovens brasileiros confia na política. Entre 16 e 19 anos, 89% consideram os políticos desonestos, 70% que políticos não são éticos. A noção democrática da accountability deve ser incluída na pauta nacional. E para esse fim é preciso lutar contra o segredo e a favor do regime democrático.