Murdoch...
O caso Rupert Murdoch e o escândalo do News of the World é uma antologia das doenças dos meios de comunicação nos dias de hoje - doenças que prosperam não apenas na Inglaterra, mas também, e muito, no Brasil:
1 - Propriedade cruzada. O mesmo grupo detém, no mesmo local, empresas de rádio, TV, jornais, revistas, Internet, fazendo com que cada meio alavanque o outro e usando seu poder combinado para matar a concorrência;
2 - Prepotência. O jornal, ou jornalista, coloca-se acima da lei, usando como pretexto o interesse público;
3 - Cumplicidade. Para obter favores das autoridades, presta-lhes serviços diversos, atende a pedidos de amigos, atinge inimigos dos amigos, dá aos amigos cobertura editorial suficiente para garantir-lhes promoções e prestígio;
4 - Cobra a contraprestação desses serviços, recebendo informações privilegiadas. No caso Murdoch, por exemplo, houve o caso de um depoimento assinado por um bandido e autenticada por suas impressões digitais. O grupo de Murdoch tinha contatos na Scotland Yard que analisaram as impressões digitais, comparando-as com as de seus arquivos, e autenticaram o depoimento, dando aos jornalistas amigos um lucrativíssimo furo de reportagem.
Os pecados de Murdoch são amplamente debatidos neste Observatório da Imprensa, por colegas de notável qualificação. Mudemos o ângulo. Como é que as coisas funcionam no Brasil?
...e nós
1 - Um grande grupo de comunicações publicou uma nota, no ano passado, confirmando ter usado os serviços de inteligência da Polícia estadual em auxílio às suas reportagens. Um ganso (delator) da Polícia foi emprestado à empresa, que o usou amplamente, até atuando em conjunto com equipes de reportagem.
2- Uma das equipes de reportagem de um grande grupo jornalístico brasileiro participou de uma operação policial que visava documentar uma tentativa de suborno. Como a disputa envolvia dois grupos empresariais, um deles com apoio de agentes policiais, a empresa jornalística não se limitou ao contato mais estreito do que o aceitável com a Polícia, mas tomou parte na luta de empresários.
3 - No troca-troca de favores, houve repórteres que sempre tiveram preferência das autoridades no acompanhamento de operações policiais - o que significa que o sigilo das operações foi rompido em benefício de determinados repórteres "amigos dos hômi" e das empresas em que trabalham.
4 - Boa parte da imprensa se deleitou com as informações que recebia de um procurador da República, com denúncias sucessivas contra as autoridades. Só um repórter conferiu a documentação - e descobriu que tinha sido produzida, quase no total (mais de 90%), nos escritórios de advocacia das partes adversárias dos acusados. O mal já estava feito: quem sofreu, sofreu. O procurador calou-se tão logo o partido de sua preferência chegou ao poder. Alguém, nos meios de comunicação, fez mea culpa pela negligência na apuração?
5 - Um repórter chegou ao extremo de forjar um diálogo que simplesmente não existiu entre o delegado que fez uma prisão e o prisioneiro. O objetivo era mostrar como o delegado era maravilhoso e o prisioneiro um ser abjeto.
6 - Comentário do corregedor de ética e disciplina da OAB de São Paulo, Romualdo Galvão Dias, a respeito da Operação Anaconda, em que não houve gravação telefônica que não vazasse para a imprensa (que retribuiu ao noticiar acriticamente as falhas do trabalho policial): "Aquilo que foi vendido à opinião pública brasileira como uma mega-operação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, uma investigação como jamais vista na história, tem se revelado apenas um amontoado de trapalhadas, prisões injustas, acusações sem provas e linchamento moral de inocentes".
Um pouco diferente do que ocorre na Inglaterra, talvez. Mas não muito. E precisa ser corrigido com urgência, como parece que, enfim, ocorrerá na Inglaterra.
A suposta notícia
Primeiro era a certeza: o cavalheiro suspeito de um crime era apontado na imprensa como criminoso, bandido, facínora. Depois de muitos processos judiciais e muitas indenizações cobradas, surgiu a fórmula do suposto: o "suposto assassino", por exemplo. Só que o suposto caiu na lista das expressões que, de tanto que foram usadas, perderam o sentido: hoje, o cavalheiro mata uma pessoa com 18 tiros, na frente de 54 testemunhas, confessa a autoria, explica por que matou, e mesmo assim é chamado de "suposto matador".
Um caso supostamente interessantíssimo foi supostamente noticiado por um suposto veículo de comunicação, em São Paulo, suposta capital do Estado de São Paulo. Título:
"Garoto recebe R$ 260 mil após suposto racismo em mercado de SP" .
Na verdade, não era mercado, era supermercado. Um menino de dez anos foi detido ao sair do supermercado com biscoitos, refrigerantes e salgadinhos. De acordo com a acusação, os seguranças chamaram o garoto de "negrinho sujo e fedido", levaram-no a uma sala e o obrigaram a tirar a roupa para ver se não escondia mercadoria nenhuma. Não escondia. E, ainda por cima, tinha a nota fiscal da compra. Acabou sendo libertado do cárcere privado.
E como é que se sabe que a coisa aconteceu exatamente assim? Porque o supermercado fez acordo com a vítima, pagando-lhe R$ 260 mil para desistir da ação judicial. Considerando-se que empresa nenhuma dá nada de graça, conclui-se que era mais barato pagar do que sofrer o processo.
E mesmo assim é "suposto"? Que é que precisava ter ocorrido para que a imprensa desse a notícia da violência, e não da suposta violência? Que o repórter estivesse por acaso no lugar certo, bem na hora em que a violência ocorreu, com filmadora ligada e um relógio bem atrás da vítima, para registrar a hora?
Teve, terá, teria
Uma variação do "suposto" é o condicional - ou, como se chama atualmente, "futuro do pretérito". Algo como um cavalheiro que "teria" se jogado do 40º andar e "supostamente" se arrebentado no chão. Há um exemplo precioso de texto, publicado na semana passada num portal noticioso de importância:
"O grupo conseguiu fugir de carro. Nesse momento, o soldado da Rota Rodrigo Aparecido Pansani teria percebido a movimentação e, com sua moto, também teria passado a perseguir os assaltantes.
"Já na avenida Bandeirantes, perto do aeroporto de Congonhas, os criminosos teriam tentado abandonar o veículo para correr pelo canteiro central da via. Nesse momento, Pansani teria largado sua moto e, segundo as investigações, teria perseguido os criminosos."
Cá entre nós: que é que foi que comprovadamente aconteceu?
O caso Rupert Murdoch e o escândalo do News of the World é uma antologia das doenças dos meios de comunicação nos dias de hoje - doenças que prosperam não apenas na Inglaterra, mas também, e muito, no Brasil:
1 - Propriedade cruzada. O mesmo grupo detém, no mesmo local, empresas de rádio, TV, jornais, revistas, Internet, fazendo com que cada meio alavanque o outro e usando seu poder combinado para matar a concorrência;
2 - Prepotência. O jornal, ou jornalista, coloca-se acima da lei, usando como pretexto o interesse público;
3 - Cumplicidade. Para obter favores das autoridades, presta-lhes serviços diversos, atende a pedidos de amigos, atinge inimigos dos amigos, dá aos amigos cobertura editorial suficiente para garantir-lhes promoções e prestígio;
4 - Cobra a contraprestação desses serviços, recebendo informações privilegiadas. No caso Murdoch, por exemplo, houve o caso de um depoimento assinado por um bandido e autenticada por suas impressões digitais. O grupo de Murdoch tinha contatos na Scotland Yard que analisaram as impressões digitais, comparando-as com as de seus arquivos, e autenticaram o depoimento, dando aos jornalistas amigos um lucrativíssimo furo de reportagem.
Os pecados de Murdoch são amplamente debatidos neste Observatório da Imprensa, por colegas de notável qualificação. Mudemos o ângulo. Como é que as coisas funcionam no Brasil?
...e nós
1 - Um grande grupo de comunicações publicou uma nota, no ano passado, confirmando ter usado os serviços de inteligência da Polícia estadual em auxílio às suas reportagens. Um ganso (delator) da Polícia foi emprestado à empresa, que o usou amplamente, até atuando em conjunto com equipes de reportagem.
2- Uma das equipes de reportagem de um grande grupo jornalístico brasileiro participou de uma operação policial que visava documentar uma tentativa de suborno. Como a disputa envolvia dois grupos empresariais, um deles com apoio de agentes policiais, a empresa jornalística não se limitou ao contato mais estreito do que o aceitável com a Polícia, mas tomou parte na luta de empresários.
3 - No troca-troca de favores, houve repórteres que sempre tiveram preferência das autoridades no acompanhamento de operações policiais - o que significa que o sigilo das operações foi rompido em benefício de determinados repórteres "amigos dos hômi" e das empresas em que trabalham.
4 - Boa parte da imprensa se deleitou com as informações que recebia de um procurador da República, com denúncias sucessivas contra as autoridades. Só um repórter conferiu a documentação - e descobriu que tinha sido produzida, quase no total (mais de 90%), nos escritórios de advocacia das partes adversárias dos acusados. O mal já estava feito: quem sofreu, sofreu. O procurador calou-se tão logo o partido de sua preferência chegou ao poder. Alguém, nos meios de comunicação, fez mea culpa pela negligência na apuração?
5 - Um repórter chegou ao extremo de forjar um diálogo que simplesmente não existiu entre o delegado que fez uma prisão e o prisioneiro. O objetivo era mostrar como o delegado era maravilhoso e o prisioneiro um ser abjeto.
6 - Comentário do corregedor de ética e disciplina da OAB de São Paulo, Romualdo Galvão Dias, a respeito da Operação Anaconda, em que não houve gravação telefônica que não vazasse para a imprensa (que retribuiu ao noticiar acriticamente as falhas do trabalho policial): "Aquilo que foi vendido à opinião pública brasileira como uma mega-operação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, uma investigação como jamais vista na história, tem se revelado apenas um amontoado de trapalhadas, prisões injustas, acusações sem provas e linchamento moral de inocentes".
Um pouco diferente do que ocorre na Inglaterra, talvez. Mas não muito. E precisa ser corrigido com urgência, como parece que, enfim, ocorrerá na Inglaterra.
A suposta notícia
Primeiro era a certeza: o cavalheiro suspeito de um crime era apontado na imprensa como criminoso, bandido, facínora. Depois de muitos processos judiciais e muitas indenizações cobradas, surgiu a fórmula do suposto: o "suposto assassino", por exemplo. Só que o suposto caiu na lista das expressões que, de tanto que foram usadas, perderam o sentido: hoje, o cavalheiro mata uma pessoa com 18 tiros, na frente de 54 testemunhas, confessa a autoria, explica por que matou, e mesmo assim é chamado de "suposto matador".
Um caso supostamente interessantíssimo foi supostamente noticiado por um suposto veículo de comunicação, em São Paulo, suposta capital do Estado de São Paulo. Título:
Na verdade, não era mercado, era supermercado. Um menino de dez anos foi detido ao sair do supermercado com biscoitos, refrigerantes e salgadinhos. De acordo com a acusação, os seguranças chamaram o garoto de "negrinho sujo e fedido", levaram-no a uma sala e o obrigaram a tirar a roupa para ver se não escondia mercadoria nenhuma. Não escondia. E, ainda por cima, tinha a nota fiscal da compra. Acabou sendo libertado do cárcere privado.
E como é que se sabe que a coisa aconteceu exatamente assim? Porque o supermercado fez acordo com a vítima, pagando-lhe R$ 260 mil para desistir da ação judicial. Considerando-se que empresa nenhuma dá nada de graça, conclui-se que era mais barato pagar do que sofrer o processo.
E mesmo assim é "suposto"? Que é que precisava ter ocorrido para que a imprensa desse a notícia da violência, e não da suposta violência? Que o repórter estivesse por acaso no lugar certo, bem na hora em que a violência ocorreu, com filmadora ligada e um relógio bem atrás da vítima, para registrar a hora?
Teve, terá, teria
Uma variação do "suposto" é o condicional - ou, como se chama atualmente, "futuro do pretérito". Algo como um cavalheiro que "teria" se jogado do 40º andar e "supostamente" se arrebentado no chão. Há um exemplo precioso de texto, publicado na semana passada num portal noticioso de importância:
"Já na avenida Bandeirantes, perto do aeroporto de Congonhas, os criminosos teriam tentado abandonar o veículo para correr pelo canteiro central da via. Nesse momento, Pansani teria largado sua moto e, segundo as investigações, teria perseguido os criminosos."
Cá entre nós: que é que foi que comprovadamente aconteceu?