segunda-feira, 4 de julho de 2011

Do site Abordagem Policial.

4jul2011 Em: Coluna do Leitor, Imprensa, Reflexão

Quando comecei a trabalhar como repórter policial, lá pelo ano 2000, me intrigava o fato de que a maior parte dos meninos assassinados em locais miseráveis da Salvador miserável, que muita gente desconhece, sempre estava bem vestida. Normalmente, quando chegava à cena do crime, os tênis já haviam sido levados (mudavam de pés, rapidamente), mas as bermudas e camisas, empapadas de sangue, eram de griffe. Como é que aqueles guris esquálidos e com a pobreza impressa como digitais tinham acesso a marcas que eu conhecia apenas de ouvir falar?

Não demorei muito a entender a relação entre griffes caras e lugares miseráveis. Era essa dicotomia o que estava por trás da precocidade e da crueza daquelas mortes. Não era por acaso que meninos tão bem vestidos morriam tão cedo. A vida era a moeda de troca empenhada por eles aos donos do lugar, alguns dos quais travestidos de agentes da lei.

Ficou fácil entender porque um menino da idade do meu filho adolescente preferia trocar a escola pelas ruas, o dinheiro fácil pela vida difícil em casa. Sem o suporte de uma família, aqueles moleques eram presas certas do crime. Como se sabe, onde as instituições falham, o crime logo viceja. Se fôssemos transpor para um contexto bíblico, diríamos: os garotos corriam para as portas largas do crime, esquivando-se da porta estreita da labuta.

Conversa daqui, conversa dali, acabei descobrindo: aqueles meninos que morriam cedo eram só isso, meninos. Sonhavam ser iguais àqueles que viam no shopping e que costumavam lhes olhar com medo ou desdém. Como poderiam ser iguais se nasceram tão diferentes? Estava explicado. Numa via de mão única, na ânsia de se tornarem iguais, naquele mundo tão desigual, aqueles garotos acabavam sendo cooptados pela criminalidade e terminavam virando números. Engrossavam as estatísticas que posicionam Salvador como quarta capital do país em números de homicídios – 57,1 assassinatos por cada 100 mil habitantes, conforme dados do Ministério da Saúde divulgados em dezembro do ano passado.

Volto ao meu tempo de repórter policial. Vejo com clareza, aqueles corpos magros, abandonados numa clareira deserta nos arredores de Salvador. Nos pés, meias encardidas. Às vezes, por perto, uma sandália de borracha. O calçado (ou sua ausência) poderia até variar. O que não mudava era a indumentária. Foi cobrindo homicídios de jovens, nas manhãs de domingo, que fiquei conhecendo a Cyclone, uma das principais griffes do estilo surfwear usadas por meninos que moram na periferia.

*Jaciara Santos (jaciara@aqueimaroupa.com.br) é sergipana de Aracaju, mas atua como jornalista profissional em Salvador-BA, já há quase três décadas. Foi repórter, chefe de reportagem, pauteira, editora de Cidade, Política e Economia, colunista e subeditora de Segurança. Premiada duas vezes no extinto concurso de reportagens da Associação Bahiana de Imprensa, em 2003 conquistou também o prêmio Banco do Brasil na categoria reportagem por uma série de matérias sobre a ação dos grupos de extermínio na Bahia.

(Texto originalmente publicado no blog À Queima Roupa)