Schmitt, Mozart e nazismo
Quem examina o elogio da Igreja Católica feito por Carl Schmitt, percebe a virulência do seu ataque à A Flauta Mágica. Schmitt atribui à peça a glória (duvidosa...) de antecipar as operetas vienenses. “Todos concordam que ela é um hino às Luzes, na luta entre sol e noite, luz e trevas. De fato, nela tudo seria harmônico com o sentimento de uma era democrática. Por comparação, seria menos aceitável dizer que a Rainha da Noite, contra quem lutam os sacerdotes da Maçonaria, é a mãe em sentido específico. Alarmam os homens dos séculos 19 e 20 a viril arrogância e a autoconfiança autoritária daqueles sacerdotes, o seu diabólico desprezo pelo homem comum figurado em Papageno (...) Nada é mais capaz de causar medo do que esta apreciada ópera, se alguém tem coragem de empregar tempo para a entender num contexto mais amplo da história das idéias”. (Schmitt, Carl: Catolicismo Romano e Forma Política (1923, trad. inglesa da Greenwood Press, 1996). Schmitt, antes de nazista, é católico e romântico. Para ele, o elogio das Luzes se revela insuportável.
A Flauta Mágica, de fato, pertence à era das Luzes. Nela, o jogo entre o lado sombrio (a rainha da Noite) e o solar (Sarastro) se resolve na guerra onde vence o brilho da nossa estrela. É o que entoam os versos finais da obra: die Strahlen der Sonne vertreiben die Nacht,/Zernichten der Heuchler erschlichene Macht (“Os raios do Sol afastam a Noite, destruindo o Poder maligno”). Graças são dadas a Osíris e Isis, porque eles permitiram que o poder luminoso triunfasse “premiando a beleza e a sabedoria com uma coroa eterna”. O romantismo luta contra a Luz celebrada por Mozart em nome da Razão.
Os românticos tentam dizer que os humanos são dotados de forças mais amplas (entre elas, o sonho e o dom dos poemas) do que a racionalidade científica e tecnológica. A imaginação é poder cujo ápice encontra-se na fantasia, segundo Fr. Schlegel. Para ele, a razão só conhece o mundo exterior ao homem. A imaginação, em sentido oposto, conduz ao divino. Ela não brota apenas do intelecto e da pura lógica matemática. O seu lado mais livre de amarras lógicas, a fantasia, gera sonhos e beleza anímica. O termo alemão para a força em questão é das Wunder, o maravilhoso que vence o cotidiano prosaico e “racional”. Os mitos entram na perspectiva romântica deste maravilhoso, em favor do lado noturno da alma. Na fantasia, não existem contrários ou contraditórios insolúveis. Nela, afirma M. Alexandre, “a princesa nasce da gota de sangue, as árvores cantam, ocorrem chuvas de vinho, as rosas caem como neve, as correntes dos riachos são de puro leite”.
O romantismo une-se à Noite e à Morte. Diz Novalis: “É na morte que o amor transforma-se em mais doce; para o amante, a morte é noite nupcial, segredo de suaves mistérios”. Logo, o universo concebido enquanto máquina e ordenado pelo cálculo matemático seria pesadelo ameaçador. Não é verdade, dizem os românticos, que animais e homens sejam mecanismos automáticos e sem liberdade. Eles acusam Hobbes, que comparava o Estado a um relógio. A sociedade e o Estado seriam, pelo contrário, organismos que reúnem indivíduos capazes de sentimentos, afetos, solidariedade. Se fosse verdade que a consciência lógica seria a única atividade além da operação corporal, se o corpo fosse apenas máquina, desapareceriam a poesia, o sonho, a liberdade, pois máquinas ignoram sentimentos. O grito de Novalis resume o alvo: “é preciso romantizar o mundo (...) introduzir alma na máquina”. A política romântica prega o sonho medievo: cavaleiros, fábulas, milagres, Igreja Católica organizada como um corpo e não como fria máquina burocrática.
Com românticos do feitio trazido por Carl Schmitt, o sonho se tornou pesadelo. Para exorcizar o inferno nazista de ontem e de hoje, nada melhor do que assistir a Flauta Mágica. Se possível, na bela versão cinematográfica de Ingmar Bergman. Outro antídoto poderoso contra seu irracionalismo assassino é a valorização da ciência e da técnica, em conjunto com as artes (e não contra elas...)
*Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia Política na Unicamp
Correio Popular, 14/10/2009