O juiz, o bispo e a forte onda reacionária |
Escrito por Francisco Bicudo |
Sábado, 23 de Julho de 2011 |
Há dois episódios recentes envolvendo direitos civis de homossexuais e a violência atroz chamada estupro que, de imediato, provocam náuseas. É compreensível que seja assim. Mas é preciso superar esse torpor inicial e transformá-lo em indignação e em atitudes humanistas e civilizadas reativas e propositivas, sob pena de permitirmos que insanidades obscurantistas ganhem ainda mais corpo e fôlego, cravando suas estacas de fé cega e fundamentalista no coração da razão que, em pleno século XXI, deveria nortear as relações humanas e sociais.
Em Goiás, muito orgulhoso e faceiro, o juiz Jeronymo Villas Boas decidiu simplesmente ignorar a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e anulou união civil firmada naquele estado por um casal de homossexuais, comparando essa relação a um ato criminoso. O magistrado usava ainda como "argumento" o conceito de família consagrado (segundo ele) pela Constituição do Brasil. Ousou ainda estabelecer que família é apenas aquela "capaz de gerar prole". Detalhe muito relevante: o juiz é também pastor da Igreja Assembléia de Deus, onde prega todos os domingos. Não se fez de rogado e chegou a deixar escapar em algumas entrevistas que deus o teria ajudado e conduzido na anulação da união do casal.
Esqueceu-se o nobre juiz que, em maio último, o STF decidiu, por unanimidade e em julgamento histórico, reconhecer o direito constitucional dos homossexuais à união estável. Em seu voto, o relator do processo, ministro Carlos Ayres de Britto, deixou muito claro que "a família é, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionalmente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se, no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole privada", independentemente de o núcleo familiar ser formado por casais hétero ou homossexuais. Reforçando: a decisão do STF diz que a "família é o núcleo doméstico baseado no afeto". Ponto. Sem margem para interpretações de natureza homofóbica.
Analisando por outros ângulos, se o raciocínio construído pelo magistrado goiano fosse de fato considerado, casais heterossexuais que, por livre arbítrio, decidissem não ter filhos também não constituiriam famílias - o mesmo valeria para pais que, por qualquer impedimento, não pudessem gerar filhos. Importante lembrar ainda que preceitos e dogmas religiosos dizem respeito a grupos específicos, a comunidades nucleares, estão conectados a opções individuais, não podendo, portanto, pretender normatizar as relações coletivas e sociais ou ditar os parâmetros de funcionamento do Estado de Direito.
Claro, religiões devem ser respeitadas, mas servem como inspiração e referência de comportamentos apenas e tão somente para aqueles que professam e seguem determinada fé. Daí a segurança necessária instituída pelo Estado laico - que não é ateu e prega justamente a tolerância e a diversidade, a convivência civilizada entre os vários e os diferentes, os que acreditam e os que não acreditam. Estado de Direito e democracia são sustentados pela razão (que agrega), jamais pela fé (que separa).
Por fim, se ainda assim nenhum desses argumentos sensibilizasse o juiz Villas Boas, haveria o derradeiro e, sinto muito por informar, excelência, inquestionável: o STF reconheceu como constitucional a união estável entre homossexuais. Sem mais. Não há qualquer possibilidade de instância jurídica inferior afrontar essa decisão. Ou há ordem e estabilidade jurídicas, respeito às leis, ou entramos no campo do vale-tudo e das vontades pessoais, dos perigosos relativismos absolutos. O juiz pode até não gostar, não concordar com o que definiu o STF - está no direito dele, no plano individual. Mas deve acatar a norma, respeitá-la e segui-la, em suas sentenças judiciais. É a ordem coletiva constitucional. É assim que funciona a tal da democracia. O resto é fundamentalismo, fanatismo religioso, estado de exceção, desejo homofóbico delirante, obscurantismo do tribunal da Santa Inquisição.
Tenebrosas e inaceitáveis foram também as declarações do bispo Luiz Gonzaga Bergonzini, da cidade de Guarulhos, na região da Grande São Paulo, em entrevista originalmente publicada pelo jornal "Valor". Minhas mãos tremem de indignação e tenho confessas dificuldades em reproduzir a fala, mas disse em linhas gerais o religioso que as mulheres que são estupradas acabam não raro sendo coniventes com a violência - se não quisessem, não aconteceria.
Em artigo precioso publicado no Estadão, Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB), resgata a perversa entrevista e lembra que, ao resumir na matéria o que provavelmente acontece em seu confessionário, "o bispo pega a tampa da caneta da repórter e mostra como conversava com mulheres. "Eu falava: bota aqui", pedindo, em seguida, para a repórter encaixar o cilindro da caneta no orifício da tampa. O bispo começa a mexer a mão, evitando o encaixe". Para o bispo, o orifício da tampa de uma caneta resume a verdadeira história das mulheres estupradas - uma mulher que não consente com o ato sexual "resiste ao encaixe do cilindro na tampa da caneta".
É torpe, vil, nojento, asqueroso, medíocre, cruel, perverso, desumano. Não consegue o religioso vislumbrar a brutalidade do ato, a agressão e a violência profundas representadas pelo estupro, quando a mulher, por meio do exercício da força, da ameaça muitas vezes feita com uma arma na cabeça, perde por completo o direito de decidir o que fazer com o próprio corpo (e com a alma). Não respeita o religioso as marcas profundas - e que jamais se apagam - daquelas que sofrem com tal ato animalesco e criminoso. Inverte ele a mão de direção, desvia o foco, transforma a vítima em cúmplice-vilã - e o criminoso em inocente, alguém que só fez aquilo que a mulher quis que fosse feito, que apenas deu conta de um desejo incontido. Quanta estupidez. Engulhos. Ânsia. Parei para respirar.
Talvez seja a fala do religioso fortemente inspirada na narrativa ficcional bíblica de Adão e Eva, que solidifica a imagem da mulher perversa, cínica, dissimulada, guardiã dos males do mundo, sempre a postos para dar o bote e enganar homens ingênuos, inocentes, desprotegidos, divinamente talhados para o bem. Sacana e ardilosa, mesquinha, Eva teria induzido Adão a comer a maçã, o fruto proibido ofertado pela serpente, e a enveredar dessa maneira por caminhos não autorizados e/ou permitidos por deus aos simples mortais. Por conta dessa maligna ousadia feminina, deixamos de habitar o paraíso. Não foi assim?
Penso que não há como negar: o sinal amarelo de alerta e perigo medievais se anuncia nas esquinas. É preciso reconhecer que os "argumentos" usados pelo juiz e pelo bispo alcançam forte apoio popular e encontram ressonância nas mais diferentes instâncias do tecido social. Há uma tecla em que tenho batido com muita constância aqui no Blog, uma fala recorrente, que tomo a liberdade de repetir: vencer eleições e construir maiorias eleitorais é importante, mas apenas uma etapa de uma luta política muito mais profunda e complexa. É imprescindível construir hegemonia de valores, radicalizar princípios democráticos e garantir o respeito profundo aos direitos humanos, cotidianamente.
Está em curso no Brasil uma aguerrida e consciente onda conservadora, que precisa ser combatida na mesma medida. Silenciar e esconder a cabeça tal qual avestruz significa ser conivente e permitir avanços do obscurantismo medieval - até porque, a retaguarda fica exposta. Como define a Física: espaço vazio é espaço ocupado. Ou, no dito popular: quem acha mole cava fundo. A rede libertária e as novas tecnologias são aliadas importantíssimas para tal exercício de resistência iluminista e chamamento da sociedade ao exercício cotidiano da racionalidade. Mas esse debate - e embate - precisam com urgência contaminar a arena pública, em toda sua plenitude e abrangência.
Talvez seja o momento, como sugere no twitter o advogado e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Tulio Vianna, de convocar em todo país marchas e manifestações em favor do Estado laico. O tempo urge.
Francisco Bicudo é jornalista e professor de Comunicação na Universidade Anhembi Morumbi. |