domingo, 18 de março de 2012

Censurado pela ditadura chinesa, Ai Weiwei fala à Folha

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Notícias da cidade proibida

Censurado pela ditadura chinesa, Ai Weiwei fala à Folha


Ai Weiwei/Divulgação Museu Jeu de Paume
Da série "Terremoto em Sichuan", 2008-2010
Da série "Terremoto em Sichuan", 2008-2010

RESUMO Sob forte perseguição do regime comunista em seu país, o artista e ativista chinês Ai Weiwei desafia a censura e dá entrevista à Folha. Retrospectiva no museu parisiense Jeu de Paume traz questões sobre os limites entre o artístico e o político em sua obra (veja galeria de imagens da mostra em folha.com/ilustrissima).

FABIANO MAISONNAVE

FOTOS AI WEIWEI

Diante da enorme casa-estúdio, uma câmera presa a um poste aponta para a porta de entrada, recortada no muro alto. Ao lado, o motorista de um caminhão estacionado bem na porta -distante apenas para não obstruir a vigilância eletrônica- encara sem qualquer pudor quem entra e sai.

O aparato é apenas a parte visível do cerco a Ai Weiwei, 54. O artista mais reputado da China no exterior está em prisão domiciliar desde junho, depois de ter passado 81 dias na cadeia.

Ao ser libertado, Ai Weiwei teve de assinar um termo comprometendo-se a não falar com estrangeiros, poupar o governo de críticas e abandonar o Twitter. Mas ele não vem cumprindo nada disso.

Uma das violações foi a entrevista que concedeu à Folha na semana passada. Com as roupas puídas e sua icônica barba mais malcuidada do que nas fotos, ele praticamente só falou de política. Fez críticas ao regime num inglês polido por 12 anos em Nova York, em tom baixo e cheio de pausas.

Mais próximo à arte, seu único grande trabalho nos últimos meses tem sido pintar cartões de agradecimento às 30 mil pessoas que lhe doaram dinheiro para pagar a enorme multa imposta pelo regime, que o acusa de sonegação tributária. Dez mil já foram enviados.

"Não há muito para ver, é tudo muito simples", diz Ai Weiwei, antes de abrir a porta do enorme ateliê, quase vazio. Ali, mostra duas esferas de madeira, feitas com pau-rosa brasileiro sem o uso de pregos. "É para uma exposição na Europa", limita-se a dizer.

Os 81 dias na cadeia foram apenas o choque mais recente em sua relação com o Partido Comunista chinês, turbulenta desde a infância do artista. O seu pai, o poeta Ai Qing (1910-96), caiu em desgraça na Campanha Antidireitista, expurgo maoísta contra intelectuais. Weiwei tinha poucas semanas de vida, quando, em 1957, Ai Qing foi rotulado como "inimigo do povo" e os cinco membros da família foram enviados para um período de "reeducação" na fria província de Heilongjiang, na fronteira russa.

Dois anos depois, os Ai foram transferidos para a "pequena Sibéria", a ainda mais desolada região de Xinjiang (noroeste), à beira do deserto de Gobi. "Primeiro moramos num dormitório, depois numa 'cova de barro' -fosso cavado no chão, coberto por ramos de árvore e lama. Quando a desocupamos, foi transformada em chiqueiro", escreveria Ai Weiwei. Ai Qing era obrigado a limpar banheiros públicos. Foram 16 anos ali.

PEQUIM Voltaram para Pequim em 1976, com o fim da Revolução Cultural (1966-76). Dois anos depois, Ai Weiwei entrou na Academia de Filmes de Pequim e começou a se envolver num movimento pró-democracia que o governo não demorou a desarticular. Desiludido, em 1981 mudou-se com a namorada para Nova York.

Nos 12 anos de EUA, o futuro artista conheceu as obras de Andy Warhol e Marcel Duchamp, trabalhou como carpinteiro e pintor de paredes, recepcionou artistas chineses. Voltou à China em 1993 para cuidar do pai doente.

A fama chegou em 2005, ao lançar um blog. Gastava horas publicando imagens e textos que iam se tornando cada vez mais politizados. O auge foi durante o terremoto de Sichuan (2008), quando se envolveu na investigação da morte de milhares de crianças, esmagadas nos escombros de escolas mal construídas pelo Estado.

O governo passou a apagar posts até que o blog inteiro foi retirado do ar, em maio de 2009. Com ele, foi-se todo o arquivo digital. O blog foi publicado em livro nos EUA e neste ano deve ganhar edição brasileira, pela Martins. Foi logo substituído pelo Twitter. Bloqueado na China, o serviço de microblogs pode ser acessado por VPN, rede privada que permite burlar a censura.

Ai Weiwei continuou apoiando investigações sobre o terremoto. Em agosto de 2009, viajou a Chengdu, em Sichuan, para acompanhar o julgamento de Tan Zuoren, ativista preso ao tentar listar os nomes da crianças mortas.

Durante uma madrugada, teve o quarto invadido e foi golpeado na cabeça. O estrago só seria percebido um mês depois, numa viagem à Alemanha. Depois de passar mal, recebeu o diagnóstico de hemorragia cerebral e foi operado.

Em outubro de 2010, Ai Weiwei festejou o Prêmio Nobel da Paz concedido ao dissidente preso Liu Xiaobo. Dois meses depois, seu ateliê em Xangai, que custou US$ 1,2 milhão, foi considerado uma "construção ilegal" e demolido. Quatro de seus colaboradores foram presos, sob acusação de sonegação fiscal. No começo de agosto, ele acusou no Twitter a polícia de tê-los prendido e torturado.

Voltou à carga em artigo publicado na revista "Newsweek". Pequim é descrita como um "pesadelo permanente", dividida entre a elite enriquecida graças às relações com o governo e a massa de migrantes escravizados.

"Na semana passada", escreve, "estive num parque, e algumas pessoas se aproximaram e me fizeram um sinal positivo ou deram tapinhas no meu ombro. Por que precisam fazer isso de forma tão sigilosa? Ninguém tem vontade de se manifestar. O que elas estão esperando? Elas sempre me dizem: 'Weiwei, deixe o país, por favor'. Ou: 'Viva mais tempo e deixe-os morrer'. É sempre ir embora ou ser paciente e vê-los morrer. Eu realmente não sei o que vou fazer."

O governo também não sabe.

Folha - Como tem sido a sua rotina desde que deixou a prisão?

Ai Weiwei - Fui preso quase um ano atrás, no dia 3 de abril. Fui solto depois de 81 dias de detenção. Nunca fui preso oficialmente, não há até hoje um papel dizendo que fui oficialmente preso, não há acusação oficial, apenas verbal, não houve processo. Fiquei preso por 81 dias numa ação secreta.

Cobriram meu rosto, me levaram a um lugar secreto, me algemaram e me interrogaram mais de 50 vezes. Fizeram vídeos, tiraram digitais e todas aquelas fotografias. Tive de concordar por escrito com vários procedimentos, fui transferido várias vezes. Aí me deixaram sair, também sem explicação.

No dia em que saí, eles me deram uma ordem de que estava sob liberdade condicional por um ano. Isso foi em 22 de junho, então faltam três meses. Sob essas condições, não posso usar a internet, não posso falar com estrangeiros nem com a imprensa estrangeira, não posso escrever artigos.

Obviamente, não posso dar opinião sobre nenhum evento social nem sobre direitos humanos, não posso dizer o que aconteceu durante a detenção. E muitas, muitas outras regras proibitivas.

Outra condição é que fique em Pequim. Meu passaporte foi confiscado. Se quiser pôr os pés fora de casa, tenho de informar por telefone. Do contrário, terei de ir uma ou duas vezes por semana à delegacia de polícia papara me dizerem o que violei.

Além disso, estou trabalhando na minha arte, o que é de certa forma incentivado: faça a sua arte, mas não critique o governo, não dê a sua opinião sobre a sociedade.

E você faz exatamente o contrário.

Eu tinha dois militares à minha frente todo o tempo, por 24 horas, não podia falar, nem sequer tocar o meu rosto. Tudo precisava ser reportado, se eu queria me levantar para urinar ou beber água. Se autorizassem, eu podia ir.

Nessas condições, você diz: "Tá, não vou criticar o governo". Mas, quando está livre -embora eu não esteja bem livre, mas talvez mais que antes-, as condições mudam.

Acredito na liberdade, que dar o seu pensamento, as suas ideias, comunicar-se com outras pessoas, faz parte da vida. Parar com isso seria o mesmo que estar na prisão de novo. Aqui fora, nunca vou poder ser livre... Eu bem que tentei. A definição de um homem livre é exercitar livremente seus direitos.

Você tem criticado a nova lei criminal chinesa, que amplia os poderes do Estado para prender indivíduos. Como imagina o seu futuro?

O meu futuro é desconhecido. O problema é esse tipo de poder com o qual você nunca pode debater, se comunicar. Você não sabe o que, exatamente, é errado, não pode dizer o que pensa, não vão escutar.

Fui espancado, quase terminei meus dias no hospital por causa das lesões, destruíram o meu ateliê, me aplicaram uma enorme multa tributária. Tudo sob ordens vindas não se sabe de onde. Não são apenas autoridades. Toda a imprensa chinesa não pode nem me criticar. Eles dizem a ela: "Não mencionem Ai Weiwei nem para dizer se ele é bom ou ruim".

Com a nova lei criminal, estão abrindo uma enorme brecha para deter pessoas e impor punições desumanas, que violam os acordos das Nações Unidas, segundo os quais ninguém pode ser levado secretamente por um governo.

Como isso beneficia o governo? No ano passado, várias pessoas foram detidas secretamente pela polícia. Depois que fui solto, entrevistei algumas delas. Fiquei curioso, porque eram apenas estudantes ou recém-formados, jovens nascidos nos anos 1980 e 1990.

Eles disseram que foram presos só porque retuitaram informações. Os tuítes não foram nem escritos por eles. Isso pode causar desaparecimentos por semanas. E muitos estão mentalmente doentes. As pessoas começam a ter crises psicológicas por causa desse tipo de tratamento.

Essa lei mostra como o governo é incapaz de lidar com opiniões diferentes e é rude ao destruir quem tenha um ponto de vista diferente.

Quando você foi preso, alguns governos criticaram publicamente a China. A pressão externa funciona?

A China está muito envolvida economicamente com o mundo. Se quiser sobreviver, tem de depender do Ocidente, de diversos países. Trata-se de um jogo de sobrevivência, eles precisam ouvir. Usar a desculpa de que esse tipo de argumento não afetará a China não passa de uma tentativa de se justificar para não participar [da pressão sobre a China].

Direitos humanos são um valor muito básico, é preciso denunciar até que não haja nenhum tipo de violação. Se os direitos são violados em qualquer país, toda a humanidade é agredida. Se acreditarmos nisso, não haverá dúvida, não haverá negociação, não haverá desculpa. Se alguém disser que não há efeito, está basicamente desistindo. Não acho que um país possa abandonar esse tipo de luta.

Você é um entusiasta da internet, mas seu blog foi bloqueado. É preciso dar nome e número de identidade nas redes sociais do país. Dá para controlar a internet?

Não. Tentaram de várias maneiras parar a internet, que é basicamente uma forma de sociedade civil, é um processo muito democrático. Obviamente, os chineses não têm nenhum poder, não têm direito de votar. Mas têm o poder da discussão e da comunicação, de compartilhar informação e expressar ideias. Isso nunca existiu na China antes da internet.

A China sabe que precisa se equiparar à competição, portanto a internet é necessária. Se pudessem pará-la, já teriam feito isso. É claro que eles construíram essa grande muralha virtual, têm milhares de policiais na internet. E tentam criar rumores e discussões para desviar a atenção.

Estão tentando assustar as pessoas ao exigir o uso de seus nomes verdadeiros. Mas, entre os jovens, muitos não têm medo, não têm nada a perder. Você só tem algo a perder se trabalha para o governo. Talvez menos gente vá se expressar, mas isso não vai parar as pessoas que querem falar.

Espero pelo dia em que me permitam registrar meu nome verdadeiro. Uso meu nome há anos. Se postar com meu nome verdadeiro, ele não vai aparecer na internet. Usei nome falso para aceitar doações, ficou na internet por menos de uma semana, mas conseguimos que 30 mil pessoas enviassem dinheiro, no total de mais de 9 milhões de yuans [R$ 2,6 milhões].

Você me fotografou com seu iPhone. Há grande controvérsia sobre as fábricas da Apple na China. O que pensa sobre isso, já que aparentemente é um grande fã da marca.

Não sou grande fã da Apple. Comecei a usar o iPhone porque tem essa câmera de alta definição e eu preciso dela. O iPhone é um exemplo interessante. Todos adoram o iPhone, a nova geração adora, mas, ao mesmo tempo, essas fábricas exploram países como a China. As pessoas não têm direitos básicos, não existe a proteção dos sindicatos. Portanto, é um tipo de escravidão, já que os trabalhadores não têm escolha.

Se alguém pula da janela e sacrifica a vida aos 20 anos, não há outra explicação. É escravidão. E não foi só um, foram 20 trabalhadores [que se suicidaram em fábricas de iPhone]. Para a Apple é facílimo fazer fábricas na China, ela tem 1 milhão de trabalhadores.

Não queremos só ser politicamente corretos. Tendo ou não iPhone, todos participamos do desenvolvimento moderno. Você não precisa ter um iPhone para participar da poluição, da burocracia. É por esse motivo que todos devem ser conscientes dos direitos humanos. Ninguém é totalmente limpo, nosso conforto está sempre relacionado ao sofrimento de alguém.

O seu pai é muito conhecido na China. Isso lhe dá abertura com funcionários do governo?

Não, nenhuma. O meu pai sempre lutou contra a injustiça. Há 80 anos, foi preso pelos nacionalistas [rivais dos comunistas na guerra civil dos anos 1940].

É irônico, mas também sinto orgulho de ter o mesmo ritmo. As épocas são bem diferentes, mas as condições são parecidas: liberdade de discurso, livre expressão das ideias.