Domingo, 26 de Julho de 2009
Esscolha de palavras....
SELEÇÃO LEXICAL OU ESCOLHA DE PALAVRAS
José Augusto Carvalho, Professor de Linguística da Universidade Federal do Espírito Santo
Há um ruído na comunicação que pode provocar constrangimentos: o uso de uma palavra no lugar de outra, sobretudo quando se trata de parônimos, isto é, de palavras que se parecem na forma ou no som, mas diferem (e muito) no sentido, como, por exemplo, tráfico e tráfego, velhote e velhaco, docente e discente, vultoso e vultuoso, entre outros. Há palavras que, embora não digam respeito à paronomásia, podem sugerir o contrário do que significam, como o adjetivo “pingue”, por exemplo, em “salário pingue”, que pode sugerir um pequeno salário, mas na verdade designa um salário gordo, vultoso; ou como “falaz” que pode confundir-se com “falastrão” ou “falador”, mas que se relaciona com “falácia”, isto é, com afirmação falsa ou com raciocínio ilegítimo. Também é ilegítimo o emprego da palavra “rastaquera” para designar algo rasteiro, pobre ou vulgar. Rastaquera ou rasta é nome que designa a pessoa que chama a atenção pelo luxo exorbitante e pela ostentação.
Entre os problemas da má seleção lexical, isto é, da má seleção de palavras, está o uso hoje generalizado, mesmo entre professores de português e linguistas de boa reputação, do nome “gênero” para designar sexo. É comum falar-se em gênero masculino quando se quer designar o sexo masculino. Acredito que esse vício de linguagem se deva à tradução literal do inglês “gender”, que pode significar tanto gênero quanto sexo. Ora, gênero é uma distinção gramatical, e sexo é uma distinção semântica. Um nome pode pertencer ao gênero masculino e designar alguém do sexo feminino, como “mulherão”, por exemplo, que, apesar de masculino, designa uma mulher extremamente feminina. Na introdução narrada da canção “O ébrio”, Vicente Celestino diz: “Durante minha trajetória artística, tive vários amores. Todas elas juravam-me amor eterno...” O pronome feminino “elas” refere-se anaforicamente a um nome masculino: “amores”(silepse de gênero). Também pode ocorrer que um nome feminino designe alguém do sexo masculino, como sentinela, criança, vítima, testemunha, por exemplo. Não há razão para essa confusão entre “gênero” e “sexo”, nem há nenhum argumento que possa defender o uso de um pelo outro.
Inventou-se recentemente a palavra “pedólatra” (não-dicionarizada) que, por sua formação, deveria designar aquele que adora crianças, como um sinônimo não estigmatizado de “pedófilo”. Ocorre, no entanto, que a formação dessa palavra desrespeitou a sua origem etimológica e provocou confusão, porque seu uso se generalizou com o sentido de “aquele que adora pés” (podófilo ou podólatra). A confusão é tanta que um escritor chamado Miguel Dias ganhou o primeiro lugar num dos concursos “Talentos da Maturidade”, do Banco Real e teve seu conto “O pé de Júlia” publicado no livro Todas as estações, prefaciado por Deonísio da Silva, e publicado pela Editora Fundação Peirópolis, de São Paulo, em 2002. Diz ele, nas páginas 38-39: “Que não se confunda o pedólatra com o pedófilo. Condenável é a pedofilia (...). Menos grave é um indivíduo que adora pés (...).” O autor quis dar uma lição de semântica sem entender do riscado...
Outro erro de seleção lexical é o neologismo “chocólatra”, que é usado para designar aquele que adora chocolate, mas, pela sua má-formação, designa o adorador do choco, nome que em Portugal designa um molusco da família do polvo, conhecido no Brasil como siba. O adorador de chocolate deveria chamar-se chocolatólatra e não chocólatra.
Há também o adjetivo “julinas”, formado por analogia com “juninas” e usado para designar as festas de julho. Ocorre que as festas realizadas em julho são festas julianas. O nome “julinas” simplesmente não existe.
Numa crônica intitulada “Uma volta ao Caparaó, publicada em A Gazeta, no dia 09-12-08, Francisco Aurélio Ribeiro (“professor de português” que erra mais que vestibulando) escreveu: “...a bela, limpa e simpática cidade serrana do Caparaó se engalana, numa noite imemorável de cultura e arte.” – Eis aí um erro de seleção lexical. O adjetivo “imemorável” é sinônimo de “imemorial”. Significa: “de que não há ou não pode haver memória, por causa de sua extraordinária antiguidade”. O adjetivo “memorável” é que significa “digno de permanecer na memória”, o que certamente terá querido dizer o mau cronista...
A língua, às vezes, prega armadilhas a quem a conhece pouco...
José Augusto Carvalho, Professor de Linguística da Universidade Federal do Espírito Santo
Há um ruído na comunicação que pode provocar constrangimentos: o uso de uma palavra no lugar de outra, sobretudo quando se trata de parônimos, isto é, de palavras que se parecem na forma ou no som, mas diferem (e muito) no sentido, como, por exemplo, tráfico e tráfego, velhote e velhaco, docente e discente, vultoso e vultuoso, entre outros. Há palavras que, embora não digam respeito à paronomásia, podem sugerir o contrário do que significam, como o adjetivo “pingue”, por exemplo, em “salário pingue”, que pode sugerir um pequeno salário, mas na verdade designa um salário gordo, vultoso; ou como “falaz” que pode confundir-se com “falastrão” ou “falador”, mas que se relaciona com “falácia”, isto é, com afirmação falsa ou com raciocínio ilegítimo. Também é ilegítimo o emprego da palavra “rastaquera” para designar algo rasteiro, pobre ou vulgar. Rastaquera ou rasta é nome que designa a pessoa que chama a atenção pelo luxo exorbitante e pela ostentação.
Entre os problemas da má seleção lexical, isto é, da má seleção de palavras, está o uso hoje generalizado, mesmo entre professores de português e linguistas de boa reputação, do nome “gênero” para designar sexo. É comum falar-se em gênero masculino quando se quer designar o sexo masculino. Acredito que esse vício de linguagem se deva à tradução literal do inglês “gender”, que pode significar tanto gênero quanto sexo. Ora, gênero é uma distinção gramatical, e sexo é uma distinção semântica. Um nome pode pertencer ao gênero masculino e designar alguém do sexo feminino, como “mulherão”, por exemplo, que, apesar de masculino, designa uma mulher extremamente feminina. Na introdução narrada da canção “O ébrio”, Vicente Celestino diz: “Durante minha trajetória artística, tive vários amores. Todas elas juravam-me amor eterno...” O pronome feminino “elas” refere-se anaforicamente a um nome masculino: “amores”(silepse de gênero). Também pode ocorrer que um nome feminino designe alguém do sexo masculino, como sentinela, criança, vítima, testemunha, por exemplo. Não há razão para essa confusão entre “gênero” e “sexo”, nem há nenhum argumento que possa defender o uso de um pelo outro.
Inventou-se recentemente a palavra “pedólatra” (não-dicionarizada) que, por sua formação, deveria designar aquele que adora crianças, como um sinônimo não estigmatizado de “pedófilo”. Ocorre, no entanto, que a formação dessa palavra desrespeitou a sua origem etimológica e provocou confusão, porque seu uso se generalizou com o sentido de “aquele que adora pés” (podófilo ou podólatra). A confusão é tanta que um escritor chamado Miguel Dias ganhou o primeiro lugar num dos concursos “Talentos da Maturidade”, do Banco Real e teve seu conto “O pé de Júlia” publicado no livro Todas as estações, prefaciado por Deonísio da Silva, e publicado pela Editora Fundação Peirópolis, de São Paulo, em 2002. Diz ele, nas páginas 38-39: “Que não se confunda o pedólatra com o pedófilo. Condenável é a pedofilia (...). Menos grave é um indivíduo que adora pés (...).” O autor quis dar uma lição de semântica sem entender do riscado...
Outro erro de seleção lexical é o neologismo “chocólatra”, que é usado para designar aquele que adora chocolate, mas, pela sua má-formação, designa o adorador do choco, nome que em Portugal designa um molusco da família do polvo, conhecido no Brasil como siba. O adorador de chocolate deveria chamar-se chocolatólatra e não chocólatra.
Há também o adjetivo “julinas”, formado por analogia com “juninas” e usado para designar as festas de julho. Ocorre que as festas realizadas em julho são festas julianas. O nome “julinas” simplesmente não existe.
Numa crônica intitulada “Uma volta ao Caparaó, publicada em A Gazeta, no dia 09-12-08, Francisco Aurélio Ribeiro (“professor de português” que erra mais que vestibulando) escreveu: “...a bela, limpa e simpática cidade serrana do Caparaó se engalana, numa noite imemorável de cultura e arte.” – Eis aí um erro de seleção lexical. O adjetivo “imemorável” é sinônimo de “imemorial”. Significa: “de que não há ou não pode haver memória, por causa de sua extraordinária antiguidade”. O adjetivo “memorável” é que significa “digno de permanecer na memória”, o que certamente terá querido dizer o mau cronista...
A língua, às vezes, prega armadilhas a quem a conhece pouco...