Mentiras
Quais mentiras operam na cultura ocidental? Resposta: os romances, a ficção dita científica, as poesias, que não se definem como verdadeiras ou mentirosas, pois não enganam. Também a língua política habitual, pois nela imperam os eufemismos, as evasivas, os silêncios, as desinformações. Essa língua promete sem prometer e deseja agradar para conseguir votos, persuadir mais do que convencer. Mas ela não pode ser dita plenamente mentirosa, apenas demagógica. Nela, os interesses pragmáticos se sobrepõem aos demais. A publicidade exagera para persuadir, é prescritiva de modo sutil. A fala cotidiana conta com fórmulas mentirosas, que não podem ser tomadas ao pé da letra. Assim nas desculpas, saudações, expressões de contentamento ou tristeza. “Como você está elegante!”, “Belo discurso”, “excelente artigo”. Mentiras que podem ser apenas polidez, ou piedade. Ou bajulação. Mas elas não enganam quem as usa e nem o destinatário. Lembremos o livrinho de Torquato Aceto, o Della dissimulazione onesta... Um analista afirma que “existem classes e profissões nas quais se pressupõe, por princípio, a mentira de seus representantes, como, por exemplo, os teólogos, os políticos, as prostitutas, os diplomatas, os poetas, os jornalistas, os advogados, os artistas, os fabricantes de alimentos, os operadores da bolsa, (...) os médicos, os falsificadores, os gigolôs, os generais, os cozinheiros, os traficantes de vinho”.
Mas nessas mentiras profissionais, a pseudologia é partilhada. Mentir é um jogo que deve ser aprendido, e as falácias da profissão invadem todos os discursos, deixando por isto de serem algo que vai contra o coletivo. Em alguns casos temos aí algo lícito, ou ilícito. O mais grave caso de mentira é a que se apresenta como ato de violência e poder.
As mentiras referidas são funcionais e de convenção. A mentira real se agarra à injustiça. Ela é uma violência só justificada pela aceitação do violentado. Nela, as duas partes - mentiroso e cidadão - sabem que mentem um ao outro, mas ao dirigido não resta nenhuma saída, salvo a adesão. Quando existe mentira real? Quando a competência linguística é assimétrica: mente-se à criança, ao doente, ao fraco, ao vulnerável, ao que depende de tutores. A mentira é possibilitada pela dominação religiosa, política, ideológica, profissional.
Na história recente da Humanidade, os Estados mataram milhões em guerras, atentados, políticas desastrosas, com base na mentira dirigida aos governados. Basta lembrar os acordos entre Alemanha nazista e União Soviética, os atos das agências secretas de espionagem, CIA ou KGB, pouco importa, as atrocidades preparadas no segredo, como no Holocausto. No Brasil de agora, a Concordata com o Vaticano foi precedida de silêncio, mantido pelos dirigentes laicos e religiosos, apoiados por uma parcela significativa da imprensa. Os acertos entre Irã e Brasil, que resultam na visita do presidente antissemita que chegou aos nossos rincões, tem a marca do sigilo. Até onde vai o entendimento no campo nuclear e demais ângulos bélicos, não sabemos.
Basta alguma experiência da alma humana diz um analista da linguagem, Weinrich, para detectar os sinais da mentira. Aprender o seu jogo - e não por acaso o estadista da Razão de Estado é comparado ao jogador que frauda as regras - é adquirir as chances de manipulação e engodo, que encobrem a fala a qual, por sua vez, disfarça o pensamento. A Razão de Estado é inimiga do genero humano porque sua mentira é uma injustiça que não considera governantes e governados como iguais. Ela reduz o cidadão a puro meio da vontade governante. Montaigne define a mentira como “valentia diante de Deus e covardia diante dos homens”. A sua essência é a dominação do outro quando este não consegue recusar ou detectar o engano. Habermas imagina que numa sociedade democrática deve imperar o diálogo. E aumenta, nela, a simetria entre os cidadãos e os dirigentes. O único senão é que tal sociedade nunca existiu nem existirá, salvo na Civitatis Dei. Existindo a assimetria, temos o poder dos competentes na fala e nos atos, os quais decidem sobre o que pode ser ouvido e compreendido pelos governados. Esta é a crônica do mundo, de Luis XIV a Lula.