quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Com tantas análises sobre o Wikileaks, e o segredo, recordo um texto meu sobre o tema. Tido como "só acadêmico" quando publicado. Só acadêmico....

1

O Desafio do Segredo e a Democracia

Tornou-se lugar comum citar o discurso do Presidente Kennedy no Rice Stadium em 1962, quando os instantes mais dramáticos da corrida para o espaço definiam a Guerra Fria. Naquela fala o dirigente usou a retórica da Razão de Estado para convencer o seu povo —e o mundo inteiro— das vantagens trazidas pela ciência e tecnologia. O maior feito aparente, disse ele, é o de colocar o homem na Lua. Mas o importante no discurso é que pela primeira vez a ciência foi colocada como alvo direto do Estado. O não dito, e que não poderia ser dito, velava o seguinte fato: a partir daquele instante o segredo, velha técnica de controle público, tornou-se sinônimo de ordem política, científica, econômica, militar. Com os anos e mesmo após a ruína da União Soviética, o segredo, em vez de ser atenuado, aumentou desmesuradamente.

Vivemos num mundo regido pelo segredo, somos obrigados ao segredo, e milhões ainda morrerão para garantir o segredo. A meu ver, não existe tema ético mais relevante em nossos dias do que este. O segredo é a face demoníaca da vida pública. Sem discuti-lo, impossível perceber para onde ruma o nosso planeta e os nossos países. Quem opera na busca do verdadeiro, sabe perfeitamente que nem tudo pode ser dito, em qualquer momento. Mas também sabe que segredos de Estado ou de laboratórios podem trazer o genocídio em todo e qualquer lugar do globo terrestre. Basta recordar as famosas armas de destruição massiça, dolosamente atribuídas ao governo ditatorial do Iraque. Se elas teriam de fato existido, ou não, é algo

2

que permaneceu durante bom tempo imerso no segredo. Mas antes da guerra atual, nas batalhas entre Irã e Iraque, o ditador iraquiano usou armas químicas letíficas, todas feitas no segredo, em laboratórios externos ao Iraque. E assim temos a crônica do terror de Estado, do terror para-estatal, de todos os terrores que se alimentam do segredo. Permitam-me, portanto, tecer algumas considerações sobre esta perversão do Estado moderno. Desde a Renascença, com o Estado nos inícios efetivos do controle nacional, o segredo domina as relações internacionais. Como diz um interprete do pensamento renascentista, “enquanto o pensamento político humanista enfrenta uma Europa que consiste em novas nações unificadas, o tópico da política externa é também uma fonte de ansiedade”. (1) Semelhante ansiedade conduziu os autores renascentistas e posteriores às teses sobre a guerra ininterrupta entre Estados. A comparação hobbesiana entre os espiões e as teias de aranha que os reis armam contra seus pares concorrentes e inimigos é valiosa. O segredo, como na teia, pode ser protegido ou roubado. Essa é práticamente a estrutura lógica da diplomacia na gênese dos Estados modernos.

Do gabinete, onde vive oculto, o príncipe ouve os cortesãos, embaixadores, etc. O ideal do governo que tudo enxerga, tudo ouve, tudo alcança, para garantir a soberania e a salus populi, é a base lógica dos serviços de informação. Segundo G. Macchia, o governante “no alto da escala social, impenetrável, não visto, nos meandros do seu palácio, no seu gabinete, está cheio, da cabeça aos pés, de segredos que ninguém pode conhecer e deseja também que o mundo dos súditos seja exposto a uma luminosidade perene”.


3

Em vez da legitimidade religiosa, ocorre agora a imposição técnica do mando político. (2) Se deseja manter-se no poder, o governante precisa enfrentar a questão maquiavélica: ou existe a república e a cidadania ou o poder está sempre sob ameaça e seu tempo é breve. Justo por isso, a necessária vigilância e o segredo entram na raison d´état. Quando não se confia no povo ou nos Estados concorrentes, é preciso deles esconder e arrancar o máximo. Quanto mais imediato o perigo, (3) mais o aparelho estatal engendra novas técnicas de escuta, controle e ocultação. Desse modo se estabelece a heterogeneidade entre governados e dirigentes. Na aurora do Estado moderno “a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade; o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. O segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) à medida que se constitui o poder moderno. O segredo encontra
sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar”. (4)

Com a democracia produzida nas três grandes revoluções modernas — inglêsa do século 17, a norte-americana e a francêsa no século 18— o segredo político foi atenuado pelas noções de accountability e transparência. Na forma estatal anterior à democracia o soberano não deve satisfações aos parlamentos, aos juízes, aos súditos. Esta tese, combatida desde longa data na Inglaterra. Edward Coke defendeu a independência dos juizes contra a Igreja Anglicana e contra James I. Ao replicar ao rei, que defendia suas prerrogativas contra “os advogados”, Coke afirma que o soberano “não foi educado no conhecimento das leis da Inglaterra”. James I, mais do que ofendido, replicou dizendo que se Coke tivesse razão, ele

4

deveria estar sob a lei. Uma tal hipótese, em si mesma, serua “ traição evidente”. E o governante cita Bracton : “Rex non debet esse sub homine sed apud Deo et lege”. O autor do Presente Régio (Basilicon Doron) e do tratado Sobre a Verdadeira Lei das Livres Monarquias ou dos Mútuos Deveres entre Um Livre Rei e Seus Súditos (The True Law of Free Monarchies or the Mutual Duty Betwist aa Free King and His Subjects, escreve que “um bom rei enquadra todas as suas ações segundo a lei; mas ele prende-se a ela, só pela sua boa vontade e para dar exemplo aos súditos. Ele é o senhor sobre todas as pessoas, tem poder de vida e morte. Embora um principe justo não tire a vida de nenhum súdito sem uma lei clara, a mesma lei com a qual ele tira a vida é feita por ele mesmo ou seus predecessores”. Além de pai do seu povo, o rei, segundo Jaime, seria o professor universal, pois os súditos são fracos e ignorantes. E assim, ele é em tudo independente da sociedade e desconhece inclusive o judiciário: “A ruindade de um rei nunca pode fazê-lo ser julgado pelos juízes que ele próprio ordena”.

Leia a continuidade do texto em I Simpósio sobre Percepção de desafios científicos e novas estruturas organizacionais - NEO
Data/horário/local: 13 de abril de 2007

http://www.unicamp.br/fea/ortega/NEO/materiais.htm