ENTREVISTA LUIZ EDUARDO SOARES Não haverá mudança no Rio com corrupção policial "O MAL ATRAVESSA OS DOIS LADOS [A POLÍCIA E O TRÁFICO]", DIZ O ANTROPÓLOGO, PARA QUEM O GOVERNO PREGA E A MÍDIA DIFUNDE UMA "ENORME ILUSÃO" DE MANIQUEÍSMO LUIZ FERNANDO VIANNA
Folha - Quando lançou o livro "Elite da Tropa 2", o sr. deu declarações apontando que "o tráfico já era". Agora, com a operação no Complexo do Alemão, chegou a ser ridicularizado, como se os fatos provassem que estava errado. O tráfico já era mesmo? Luiz Eduardo Soares - Sim, já era como tendência. O negócio de drogas vai muito bem, obrigado, mas não o tráfico na sua forma que envolve, no Rio, controle territorial, organização de grupos armados, pagamento a policiais, conflito com facções, num contexto político crescentemente antagônico e com pressões sobre os governos, pois a consciência pública vai amadurecendo e se tornando mais refratária a conviver com o ilegal nessa magnitude. É um sistema muito pesado, caro, arriscado. Há modalidades em partes mais desenvolvidas do mundo que são mais leves, racionais e econômicas, como o comércio que se dá com deslocamento nas ruas e delivery, e no qual o traficante não deve andar armado, porque já carrega a droga ilícita, que o coloca em risco de ser preso. Justifica uma operação do tamanho e com os custos da que aconteceu para combater um modelo em declínio? Claro. O fato de estar em declínio não significa que esteja suspensa a sua capacidade de produzir danos à sociedade, como mortes e todo tipo de violência. A primeira medida fundamental é fazer com que a polícia pare de participar do tráfico. A parceria entre o tráfico e segmentos policiais corruptos, que vendem armas, alugam Caveirão, ganham percentuais da venda da droga, tem que ser objeto da preocupação prioritária. Como interpreta, nesse momento, a sociedade pedindo por mortes, como num desejo de vingança? Eu costumo apresentar um argumento a uma senhora ou a um senhor de classe média preocupado com a segurança de sua família e que diz desejar "que acabem logo com esses traficantes". Há outros criminosos além deles, e esses traficantes o são com apoio dos que deveriam cumprir a lei. Então, o mal atravessa os dois lados, não existe essa polaridade [entre bem e mal], e esse é o problema. Quando a autoridade dá ao policial na ponta liberdade para matar, dá-lhe também, indiretamente, a liberdade de não fazê-lo. Isso começou a gerar negociações varejistas, em momentos de confronto. Mais adiante, transformou-se numa modalidade mais organizada da economia do crime. Até que se chegou, no final dos anos 80 e início dos 90, a um terceiro estágio da economia da corrupção: o acordo, o contrato, o arreglo ou, na corruptela carioca, arrego. Isso faz com que a polícia se torne parceira fixa. Quando dá errado, acaba na chacina de Vigário Geral [em 1993, 21 inocentes foram mortos por policiais que vingavam colegas assassinados pelo tráfico]. Exatamente. Por exemplo, o conflito em São Conrado [em 21 de junho passado], não se deu em torno de uma operação policial planejada com inteligência, mas foi fruto de uma redefinição do contrato: inflação, mudança de preço, cobrança de sobrepreço. Os sócios se desentenderam. Em geral, os conflitos são desse tipo. O tráfico está em declínio, os ganhos estão se reduzindo, então precisa negociar uma redução do que se paga à polícia. E a polícia não aceita e às vezes exige aumento. Com isso, os traficantes têm que completar o ganho. O quarto estágio da economia da corrupção: é a milícia. É quando já há uma organização superior: "Nós não precisamos ser apenas sócios, podemos ser os protagonistas. Vamos buscar lucros participando de forma criminosa de tudo o que puder oferecer algum potencial econômico na vida da comunidade que estará sob nosso domínio, sob nosso terror". Mas os milicianos são policiais. Não têm os custos da organização, do acesso às armas. Já estão cobertos. Nós pagamos a maior parte das ações, porque usam a polícia nas invasões. Muita gente diz que eles, pelo menos, se opõem ao tráfico. Não é verdade. Esperam que a polícia enfrente o tráfico e, se isso não acontece, fazem negócios com os traficantes. São muito mais fortes, numerosos, têm mais capacidade de organização, o rendimento é superior, têm visão política. Outro ponto é a segurança privada. É uma das origens das milícias. Os salários dos policiais são insuficientes. O sujeito tem que complementar a renda. Vai buscar, como nós fazemos, na área de sua especialidade, no caso, a segurança. Isso é ilegal, as autoridades sabem disso, mas fingem que não veem. Se reprimirem, projetar-se-á a demanda sobre o governo e é possível que o orçamento da segurança entre em colapso. As autoridades toleram essa complementação. Veja que situação absurda: o Estado tem um pé na legalidade e um pé na ilegalidade. A cobertura da mídia brasileira cobre a realidade com um véu ilusório? Há uma enorme ilusão. Não quero me arrogar o papel do único que enxerga a realidade, pelo amor de Deus. Mas é assustador que pessoas tão inteligentes e bem intencionadas se iludam com a fábula de que o bem venceu o mal. Esse mal só existiu até esse momento porque foi alimentado por isso que chamamos de bem. E, se agora esse mal é afastado, esse bem que é parte do mal parece triunfante. Vamos nos surpreender sendo apunhalados pelas costas, porque parte dos heróis são os que estão nos condenando à insegurança, levando armas e drogas para as favelas. As tropas do Exército que ficarão no Alemão poderão ser contaminadas pelo tráfico? A contaminação é uma preocupação constante do próprio Exército, seja por exemplos internacionais, como o do México, seja pela experiência de roubos de armas, com cumplicidade de gente da instituição. Seja também pela promiscuidade, sabendo-se que alguns saíram do Exército e foram recrutados pelo tráfico. Por conta dessa preocupação, o Exército fala em rodízio. |
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
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São Paulo, quinta-feira, 02 de dezembro de 2010