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Espantalho de Poder Legislativo ROBERTO ROMANO
O deputado é uma síntese de eleitores. Tal enunciado vem de Elias Canetti, no monumento político cujo nome é "Massa e Poder". A cadeira no Congresso representa uma fração da soberania popular, concedida temporariamente aos legisladores. Trata-se apenas de uma parcela, visto que a mesma soberania espalha-se pelos três Poderes, cada um segundo o seu múnus. Quando o mandato é exercido sobretudo em favor do seu ocupante, quebra-se o contrato de representação definido no processo eleitoral. O legislador deixa de ser, ipso facto, uma pessoa pública, visto preferir alvos contrários ao coletivo soberano. Ele ocupa legalmente o título de representante, mas o espírito da lei não mais o assiste, seu título é casca vazia desprovida de existência efetiva. Existem autoridades ilegítimas pela origem viciosa de seu poder (eleições fraudadas, por exemplo) ou pelo exercício incorreto do mando. O atual Congresso é legítimo, pelo menos em parte, quanto à origem. Mas os sucessivos atentados cometidos contra a fé pública, feitos na plena luz do dia, corroeram a confiança cidadã. Trata-se de um espantalho de Poder Legislativo -um cadáver putrefato-, não de robusta instituição republicana. Se o magistrado deve julgar em nome do universal, levando em conta os particulares e os direitos individuais, e se os governantes têm a missão de administrar a República em nome de todos e de cada um dos contribuintes, o legislador imperativamente legisla e fiscaliza os demais Poderes, e o seu próprio, de acordo com os mandamentos éticos do interesse público. Juiz parcial, governante que discrimina entre governados, legislador que opera em causa própria são teratologias do Estado democrático de Direito. Devido ao sistema de concentração excessiva dos monopólios estatais nas mãos do Executivo (os monopólios da força física, da norma jurídica, dos impostos são abusados pelos administradores federais), ocorre no Brasil uma pirâmide invertida de poderes: o maior encontra-se em Brasília, os mais débeis nos municípios. Nossa federação, na verdade, é um império disfarçado. Para que uma região ou cidade obtenha o retorno dos impostos pagos pelos seus habitantes, ela se torna refém dos deputados e senadores que, intermediários de luxo, entregam apoio ao Executivo em troca de verbas. E como lutam por todos os meios (lícitos ou ilícitos) para obter tais recursos, os que um dia foram representantes do povo, mas agora só representam oligarquias ou a si mesmos, julgam-se no direito de cobrar tarifas para o caixa da sua campanha eleitoral. Pouco importa o nome: "mensalão", verbas orçamentárias etc., decisivo é que os parasitas, postos nas veias do Estado, se nutrem para as eleições. Este sistema do "é dando que se recebe" ordena a ética hedionda da nossa política nacional. Quando escrevi, em "Tendências/Debates", certo artigo cujo título expõe o que pensam vastas camadas de eleitores sobre o Congresso ("O prostíbulo risonho", em 6 de setembro de 1993), imaginei que naqueles dias tínhamos chegado ao insuportável. Fui processado pela publicação com base na Lei de Imprensa, imposta ao país em 1967 na ditadura, quando fomos governados pelo marechal Arthur da Costa e Silva. Absolvido, imaginei sinceramente que a nossa representação parlamentar seria melhor com o passar dos tempos. Minha arrogante ingenuidade levou dura lição: piorou desde aquela data a qualidade dos legisladores brasileiros. Enquanto não forem modificados os nexos entre municípios e poder central, enquanto os orçamentos da República forem alvo de barganhas do Executivo com as oligarquias regionais, muitos congressistas serão levados ou assumirão alegremente o papel de meros estafetas que repassam impostos às cidades, mas exigem tarifas. Pouco importa se os proventos em prol do caixa dois são carregados em peças íntimas ou em malas pretas, pois eles são a mercancia da soberania, da qual cada um dos legisladores deveria temporariamente ser um fiel depositário. Volto à tese de Canetti: se o parlamentar sintetiza os eleitores, ao perverter o seu mandato ele dissolve a própria razão de ser da sociedade política. Fazer leis é a mais nobre dignidade no Estado. Mas, como diz o adágio latino, a corrupção do que é ótimo sempre mostra-se péssima.
Roberto Romano, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp. |