sábado, 19 de fevereiro de 2011

(I) O autor, Nivaldo Mulatinho Filho, é um dos mais dignos magistrados do Brasil.

A DENÚNCIA INTEGRAL

Nivaldo Mulatinho Filho

“Escreveu, realmente, com exatidão espantosa, com rigor excepcional. Tudo o que é negro, em sua narração, é negro pela sua própria natureza, o que é sórdido porque nasceu sórdido, o que é feio, é mesmo feio. Não há pincelada do narrador, no sentido de frisar traços, de agravar condições, de destacar minúcias denunciadoras. O libelo é seco, puro, despido de qualquer fantasia. Tudo sai da realidade, com a arte do escritor, mas sem deformação. Nem houve, em página alguma, outra coisa senão um firme e profundo desejo de compreensão. Quando a compreensão não se completa, o romancista se acusa a si mesmo, e se desculpa. Não há pormenores desnecessários e, principalmente, não há injúrias. O libelo, entretanto, permanece inteiriço, enorme, eloquente” (Nelson Werneck Sodré, apresentação de “Memórias do Cárcere”, 1954).


A citação, em epígrafe, é longa, porém válida: é uma síntese perfeita do livro, lançado em 1953, o primeiro sucesso editorial do autor. Dez mil exemplares esgotados em apenas 45 dias, informa o Pósfácio da edição mais recente, a 44ª, de 2008.


Em 1984, ainda no Regime militar, o filme “Memórias do Cárcere”, de NELSON PEREIRA DOS SANTOS, foi aplaudido em todo o Brasil, resgatando para o chamado grande público a figura ímpar de GRACILIANO RAMOS. Cinema e Literatura, artes amadas, unidas. Algo essencial num país onde o livro é ainda um privilégio e muitos dos chamados homens de cultura gostam (e gostam muito) de esquecer o que aprenderam, escreveram ou disseram para ficar de acordo com os Poderosos de cada dia.


Poucos artistas e homens de letras se aproximam, em independência e dignidade, do Mestre GRAÇA, assim chamado até pelos que criticavam as chatices e a carranca dele. E GRACILIANO não foi preso, em 1936, por engano. Eles sabiam muito bem o que estavam fazendo. As ditaduras odeiam a inteligência, a crítica, a rebeldia. Odeiam as liberdades todas. E a real “vida dos outros”, para lembrarmos, aqui (não pude evitar), o magnífico filme do novo cinema alemão sobre o sistema de espionagem durante o período da Guerra Fria.


“Memórias do Cárcere”, infelizmente um dos livros menos lidos do escritor alagoano (pelo menos nesta 1ª década do século XXI), é, na opinião insuspeita de FLORESTAN FERNANDES, uma obra de denúncia integral, a mais autêntica da nossa Literatura, pois não se preocupa em ser “política” ou “engajada”. Ou em representar qualquer ideologia. O livro buscou colher, dez anos depois dos fatos, uma realidade inimaginável, inteiramente vivida pelo autor, personagem dele mesmo. E NELSON PEREIRA DOS SANTOS soube transmitir isso na sua versão, para a sétima arte, do trabalho que tinha um título primitivo bem forte, bem seco, ao estilo do romancista de “ANGÚSTIA”. Ia se chamar “CADEIA”.


Os diálogos do roteiro cinematográfico – precisos, cortantes – estão no livro. Apenas a trajetória carcerária do escritor foi modificada, em face, talvez, do clima final da versão do cineasta. Como se sabe, GRACILIANO RAMOS, que se encantou (vale a expressão de GUIMARÃES ROSA) em 1953, não pôde terminar as suas memórias da cadeia. Anote-se que, ao contrário do que mostra o filme, GRACILIANO só veio a conhecer o advogado SOBRAL PINTO quando voltava do cruel presídio da Ilha Grande, doente, “de cabeça raspada, um jeito de bicho triste”, humilhado e ofendido. Trazendo, porém, lembranças cruciais, lembranças que não o abandonavam, suavizando o até o seu ceticismo. As atitudes de homens como o Capitão Lobo e o ladrão chamado “Cubano”, pessoas que o ajudaram sem que ele pedisse.


O grande SOBRAL e o escritor JOSÉ LINS DO RÊGO (que dedicou o seu romance “USINA”, lançado em 1936, ao amigo GRACILIANO, então preso) foram alguns dos que lutaram pela libertação do autor de “VIDAS SECAS”, solto em 13 de janeiro de 1937, depois de dez meses e dez dias de cárcere. Sem processo, sem nada.


As narrativas de GRACILIANO RAMOS e de NELSON PEREIRA DOS SANTOS, pela força das palavras e das imagens, como bem disse a professora ELIANE DE FREITAS DUTRA, marcam, através da Arte, a apreensão do sentido de nossa História.


No filme, que tem elenco magnífico (Jofre Soares e José Dumont fazem personagens nordestinos), destaca-se CARLOS VEREZA, na pele de GRACILIANO RAMOS. Ele busca sempre, ao longo da narrativa, mostrando o seu rosto, ao mesmo tempo triste e forte, o prazer de ler e o desejo de escrever, na luta para garantir a sua humanidade, o seu direito à inteligência. Uma interpretação impregnada de amor.