Advogados criam a sua ‘memória da resistência'
Profissionais que enfrentaram a ditadura ao defender militantes nos anos de maior repressão vão criar centro de documentação
Profissionais que enfrentaram a ditadura ao defender militantes nos anos de maior repressão vão criar centro de documentação
Conservar a história dos profissionais que lutaram contra a ditadura militar. Esse é o objetivo de um grupo de advogados que decidiu montar um centro de documentação com os depoimentos de advogados de presos políticos no Brasil durante a ditadura militar.
O material reunido em São Paulo, Rio, Curitiba, Porto Alegre e Recife deve servir de base para um documentário a ser dirigido por César Chalone (responsável pela fotografia do filme Cidade de Deus).
Um dos depoimentos já foi gravado. É do criminalista e diretor de teatro Idibal Pivetta. Depois devem vir os de Belisário dos Santos Junior, José Carlos Dias e Tales Castelo Branco. "Nossa ideia é entregar o arquivo para uma universidade, como a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), para qualquer pesquisador ter acesso", disse Belisário, um dos idealizadores do projeto.
De 1970 a 1983, o criminalista Belisário acostumou-se aos corredores das auditorias militares - defendeu estudantes, sindicalistas e militantes políticos como o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP). Só uma parte do que ele e outros defensores fizeram nesses anos está registrado nos processos. O que ficou fora, na lembrança de advogados e clientes, é um mundo cheio de denúncias contra o arbítrio das leis de segurança nacional e contra as torturas, os desaparecimentos e os assassinatos.
"Vivíamos como em uma peça de teatro: de conflito em conflito", afirmou Belisário. Havia pouco mais de uma dezena desses advogados em cada cidade importante do País. Eram poucos, mas estavam entre eles o católico Sobral Pinto, o professor Heleno Cláudio Fragoso, Pivetta e jovens como José Carlos Dias. Por tradição, não cobravam pelo trabalho. Muitas vezes foram ameaçados ou acabaram na cadeia por causa dos clientes.
O criminalista Tales Castelo Branco, de 75 anos, era um deles. Entre os seus mais de 50 clientes acusados de delitos políticos estavam o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa, a arquiteta Lino Bo Bardi e o engenheiro Ricardo Zarattini Filho, então militante do Partido Comunista Revolucionário (PCR).
"Advogar era assumir riscos. Um dia, o Zé Celso ligou para meu escritório. Disse que ia para o Dops, que o haviam convocado", disse Tales. O advogado foi encontrá-lo. Ao chegar, um investigador que Tales defendera em um processo o chamou de lado. "O senhor é advogado do moço do teatro?" Tales disse que sim. "Então tira ele daqui que ele vai ficar (preso)." O advogado pegou o cliente pelo braço e o mandou fugir. Da recepção do Dops, Zé Celso partiu para o exílio em Moçambique e em Portugal.
Risco. Tão arriscado quanto dar fuga a um cliente era apresentá-lo à Justiça Militar. Era 1968 quando a arquiteta Lino Bo Bardi teve a prisão decretada. Lina abrigara em sua casa uma reunião do que os militares chamavam de "cúpula da subversão em São Paulo". "Ela era simpatizante e emprestou a casa. Enquanto eles se reuniam, ela ficou trabalhando em sua prancheta", disse Tales. Quando tudo foi descoberto, ela foi se refugiar em Milão, sua terra natal.
Seu marido, o então diretor do Museu de Arte de São Paulo (Masp), Pietro Maria Bardi, procurou o advogado. "Tive de convencê-lo a chamá-la de volta. Tinha certeza de que revogariam a prisão se ela voltasse." Tales estava certo. Lina retornou, e a Justiça Militar a absolveu.
Tales sofreu ameaças, mas nunca foi preso como Idibal Pivetta, que passou 94 dias no Destacamento de Operações de Informações (DOI), no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e no presídio do Hipódromo, na zona leste. Pivetta defendeu quase 600 acusados de participação em grupos armados e outro tanto que militava em partidos ilegais.
Também entrou com cerca de 400 ações na Justiça para passaporte para os exilados, como o dramaturgo Augusto Boal, que viveu na Argentina, Portugal e França.
Pivetta, que trabalhava com teatro universitário, encenava na zona leste a peça Rei Momo quando foi detido por agentes do DOI, que considerou o espetáculo subversivo. No DOI, Pivetta encontrou cerca de 20 clientes, a maioria alunos da geologia da USP. "Imagine a situação: eu, o advogado que devia tirá-los dali, estava preso", afirmou.
Gritos. Em 1973, Pivetta ficou na cela onde antes estivera o estudante Alexandre Vannucchi Leme, morto pouco antes pela polícia. O advogado não foi fisicamente torturado, mas presenciou muitos que foram. "O pior era a rotina, escutar os gritos."
Tão importante quanto conseguir sentenças mais brandas e absolvições de clientes era mostrar às autoridades que a prisão de alguém não era mais um segredo. "Muitas vidas foram salvas desse jeito", disse Belisário.
Depois da anistia, em 1979, a atividade dos advogados na Justiça Militar minguou. Passariam pelo banco dos réus toda a cúpula do PCB e Luiz Inácio Lula da Silva, enquadrado pelas greves que comandou no ABC. Foi assim até o fim do regime, em 1985. "Foram anos terríveis. Ninguém dormia em paz", lembra Pivetta.
'Na ditadura, advogar era denunciar tortura'
Belisário dos Santos Júnior, membro da Comissão Internacional de Juristas, fala ao 'Estado'
Nascido em 1948, em São Paulo, Belisário dos Santos Junior militou na Juventude Estudantil Católica (JEC) e era estudante de direito na Faculdade do Largo São Francisco, da USP, quando começou a defender presos políticos durante a ditadura militar (1964-1985). Secretário da Justiça de Mário Covas (1995 a 2001), ele hoje é integrante da Comissão Internacional de Juristas.
É possível comparar a atuação dos advogados de presos políticos no Brasil com os de outros países da América Latina?
Advogados de direitos humanos no Brasil atuavam na área penal. Advogar era denunciar tortura ou atuar na defesa dos processos criminais. No Peru, eram os defensores das grandes lides trabalhistas. Na Bolívia, os advogados dos mineiros. No Chile, ficavam na resistência em associações internacionais, assim como no Uruguai. Ali não havia advogados de dentro, pois eles eram perseguidos. Na Argentina, quem não saiu desapareceu.
Como era defender um cliente sabendo que ele podia ser condenado à morte?
A gente tinha no fundo uma convicção de que a pena de morte não seria aplicada. Tínhamos a confiança de que no Superior Tribunal Militar e no STF essa pena não seria aplicada e essa confiança foi justificada no caso do Ariston Lucena (militante da Vanguarda Popular Revolucionária condenado à morte pela auditoria militar de São Paulo pela morte do tenente da PM Alberto Mendes Junior), quando o ministro Alcides Carneiro e outros juízes disseram que aquela era uma situação de guerra, que a morte do tenente não era um vilipendio ao oficialato. Eles se recusaram a aplicar a pena de morte.
Era possível, então, advogar, mesmo sem o habeas corpus?
Sim. Nós inventamos a comunicação de prisão. Uma coisa que devia ser feita pela autoridade competente, os advogados faziam. O clamor público salvava vidas. Quando alguém era preso, a primeira coisa que se fazia era ligar para o advogado, para a imprensa, para o STM.