segunda-feira, 14 de março de 2011

Para recordar que nem todos se calaram, quando se trata dos resquicios de Realpolitik.

CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, sábado, 26 de fevereiro de 2011 • Opinião • 23

Metamorfoses da tirania

ROBERTO ROMANO

Professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Em drama lancinante sobre a dissolução do sonho americano, F. Scott Fitzgerald evoca uma teoria que permeou doutrinas sustentadas em cátedras e na propaganda política dos EUA. Em certa altura de O grande Gatsby, Tom Buchanan recomenda o livro The rise of the colored empires, escrito por certo Goddard. Considerações racistas são misturadas, na língua de Buchanan, à pretensão mundial de poder, privilégio dos brancos. O romance de Fitzgerald foi editado em 1925, mas seus eventos ocorrem em 1922.

Na mesma época, o eugenismo expurga indivíduos e grupos “inferiores”. A doutrina, reinvenção americana que ampliou o receituário inglês do Sir Francis Galton, voltou para a Europa e seguiu para outras partes do mundo (inclusive o Brasil), antecedendo os campos de extermínio. A chave de ouro jurídica, fruto da eugenia, pode ser encontrada na decisão de Oliver Wendell Holmes, juiz da Suprema Corte americana, autorizando e louvando a esterilização de Carrie Buck. A partir daí, licença foi concedida para aniquilar pessoas pobres e de “origem inferior”. O sonho americano transformara-se no pesadelo do que viria a ser o Holocausto.

Fitzgerald alude, sob o nome de Goddard, ao racista america no Lothrop Stoddard (1883-1950) cujo livro mais conhecido tinha como título The rising tide of color against white world-supremacy, editado em 1920, ano em que se passam os atos e falas de O grande Gatsby. O livro possui três partes. Na primeira são descritas as regiões habitadas pelas várias cores (amarela, marrom, preta, vermelha). Na segunda, é narrada “a onda branca” que invadiu o mundo e a sua quebra, causada pelos choques com as outras raças. A parte terceira fala dos diques a serem elevados para evitar os tsunamis das cores e raças inferiores que lutam contra o domínio branco no mundo. O livro traz, em abundância, elementos antropológicos, históricos, estatísticos, comerciais etc. Ele prova que é possível ser, ao mesmo tempo, inteligente e preconceituoso, sagaz e pérfido em termos éticos.

Fica bem claro, nos argumentos do autor, que os EUA eram os herdeiros das formas imperiais europeias. Seria preciso, conforme uma outra via conservadora norte-americana (pautada por Edmund Burke) que os americanos aceitassem e assumissem as suas “imperial duties”. Como eram aplicadas as regras imperiais pela Inglaterra, França, Itália, Portugal, Holanda, Belgica, Alemanha e consortes ? Com auxílio de antropólogos e missionários, os dominadores estudavam as culturas de cada povo a ser submetido, conhecendo assim sua religião, seus costumes, práticas socioeconômicas, maneiras tradicionais de autoridade. Com pleno saber, portanto, eram escolhidos para mandar em nome de suas majestades europeias os piores déspotas, os mais gananciosos, os assassinos de toda e qualquer liberdade. E foi assim que se manteve com armas, truculência e astúcia, o poder branco sobre a China, a Índia, o Oriente Médio, as Áfricas do Norte e do Sul.

O racismo integrou, com maior ou menor intensidade, a consciência de militares, padres, freiras e diplomatas europeus. Quem não fosse branco dificilmente atingiria o estatuto de ser humano. Menor ainda seria a sua capacidade para o autogoverno e a administração democrática. Quando desabou o domínio colonial europeu, os povos submetidos estavam na era das tribos, desagregados, sem poder estatal democrático. Estava constituído o terreno para as tiranias que herdaram o costume de parasitar riquezas e massacrar governados. Os EUA, em todo o processo, pouco fizeram para a implantação democrática no mundo. Engolfado na herança imperial, precisando combater a URSS, seu concorrente no domínio do mundo (resultado da Conferência de Yalta), os americanos retomaram a política anterior dos europeus. Sustentaram regimes corruptos e sanguinários, como o da Pérsia, com o Xá Mohammad Reza Pahlavi, os reinados de opereta na península arábica, as ditaduras do Egito, da Tunísia etc.

A razão de Estado norte-americana falou mais alto do que o seu belo sonho da vida livre e democrática. O que se passa hoje em todo o mundo colonizado pelos europeus, com a herança imperial americana, já fora, no entanto, previsto pelo próprio Stoddard na obra citada. Como disse acima, um racista pode ser inteligente (aí ele é mais perigoso). Ao analisar o mundo da “cor marrom” (povos que habitam o Oriente Médio e o norte da África) diz ele que a engenharia de controle praticada pela Europa e pelos EUA tinha limites: “O mundo marrom, como o amarelo, está hoje em reação aguda contra a supremacia branca. De fato, a reação marrom começou há 100 anos, e tem aberto caminhos desde então, movida pela sua própria e inerente vitalidade e pelos estímulos externos da agressão branca. A grande dinâmica desta reação marrom é o Renascimento Islâmico”. E isto foi escrito em 1920!

A Europa e os EUA (também a URSS, basta ver o que ela fez no Afeganistão) ignoraram o clamor dos povos e pouco fizeram em prol dos seus direitos humanos. Dado o maniqueísmo da Guerra Fria e da “luta contra o terror”, foi sustentada a velha tática de manter déspotas corruptos e truculentos, sobretudo porque eles também garantiriam a “estabilidade” nas remessas de petróleo e de outras commodities. A mentalidade imperial, etnocêntrica, permanece nas cabeças do Departamento de Estado, da CIA, do FBI e do Congresso. Foram para todos eles surpresas (desagradáveis) as rebeliões que assistimos em toda a região islâmica. Eles esqueceram que a cultura científica e tecnológica não surgiu apenas para usufruto de brancos e cristãos. O mesmo Stoddard indica as redes de comunicações que surgiram, desde o século dezenove entre os povos islâmicos, contra o domínio europeu: jornais clandestinos, mídia incipiente etc. Setores da classe média aprenderam a manejar conceitos e métodos em todos os setores da vida, da informática à fissão nuclear. Vencer a onda atual dos “marrons”, “amarelos”, “pretos”, “vermelhos” é tarefa desmesurada e improvável. Seria preciso que as elites dos EUA abandonassem o que um ex-agente da CIA chama de “Imperial Hubris”. Como isso é tarefa de longo alcance, no curto prazo aquelas regiões podem seguir para regimes democráticos, tombar no domínio mais atrasado e clerical, cair sob as patas de novos truculentos e corruptos. E isso, tristemente, se chama história.