nº 363 mai/jun 2004 | capa | edições anteriores | artigo anterior | próximo artigo |
Livro mostra que busca por raça superior começou nos EUA LOURENÇO DANTAS MOTA Como virou moda abusar dos adjetivos e dos superlativos, que por isso perdem sua força, qualquer coisinha sem importância vira algo "genial", ou "superlegal", quando não "hiperlegal", e daí por diante. Ou o mesmo exagero no sentido negativo. É indispensável, portanto, esclarecer que o adjetivo "assustador" deve ser considerado com toda a sua força quando aplicado ao livro A Guerra contra os Fracos – A Eugenia e a Campanha Norte-Americana para Criar uma Raça Superior, de Edwin Black (A Girafa Editora). Assustador tanto pelo que revela do passado como pela advertência quanto ao que pode acontecer no futuro imediato. Assustador também por outra razão. Eugenia e raça superior estão comumente associados à Alemanha nazista, porque ali sua conjugação atingiu o paroxismo. O que esse livro mostra, com sólida e abundante documentação, é que o pesadelo começou nos Estados Unidos. Não se pode afirmar que a Alemanha nazista foi o que foi por causa do que propuseram e fizeram os eugenistas norte-americanos e do apoio, "científico" e material, que deram a seus colegas alemães. Mas fica claro após a leitura desse livro que foi nos Estados Unidos que um dos mais terríveis ovos da serpente começou a ser chocado. Embora as tentativas de "melhorar" a raça humana venham de mais longe, foi o inglês Francis Galton (1822-1911) que estabeleceu as bases da moderna eugenia e assim a batizou em 1883, a partir do termo grego "eugenès" (bem nascido). Em resumo, Galton propunha o tal "melhoramento" tanto por restrições – aceitas pela sociedade – aos casamentos entre pessoas que pudessem, por meio de sua herança genética, transmitir doenças ou deformações graves a seus descendentes, como pelo incentivo a uniões de parceiros "bem nascidos". Seus discípulos norte-americanos – Charles Davenport e Harry Laughlin à frente – foram muito mais longe, pregando a esterilização forçada dos "inferiores" de todo tipo. Por isso, a eugenia de Galton ficou conhecida como "positiva", em contraposição à versão dos norte-americanos. Que Davenport, Laughlin e seus companheiros se tenham entregado de corpo e alma à pseudociência eugenista, tentando com base nela criar uma raça superior nórdica, não impressiona. Não foram os únicos a fazer isso em seu tempo, nem certamente os últimos a propor esse pesadelo. Gente como eles existirá sempre. O importante é notar a amplitude e a profundidade que seu movimento adquiriu nos Estados Unidos e suas estreitas ligações com os teóricos (e práticos) nazistas da raça superior. Na primeira metade do século passado, mais de 60 mil norte-americanos foram compulsoriamente esterilizados, para não disseminar seu "sangue mau": deficientes mentais, indigentes, alcoólatras, criminosos, epilépticos, insanos, pessoas constitucionalmente fracas, predispostas a doenças específicas e fisicamente deformadas, além de surdos, mudos e cegos. Todos classificados como tais com base nos critérios pseudocientíficos dos eugenistas. Se tivessem conseguido tudo o que queriam, eles teriam esterilizado – este era seu objetivo – 14 milhões de pessoas nos Estados Unidos e muitos outros milhões no resto do mundo. O alvo do ódio dos eugenistas, das esterilizações e da proibição dos casamentos mistos não foram apenas os negros e os índios, mas igualmente o chamado "lixo branco": os brancos colocados naquela classificação, os judeus e os imigrantes do sul da Europa, sem falar na má vontade também com os irlandeses. Todos os que não correspondiam ao ideal da raça nórdica. Suicídio racial Num livro publicado em 1911 (Heredity in Relation to Eugenics), Davenport expôs seu pensamento sobre a intensa imigração para os Estados Unidos no fim do século 19 e começo do 20, que poderia levar a um "suicídio racial". Se continuassem a chegar em grande número, os imigrantes do sul e do sudeste da Europa tornariam a América "rapidamente mais escura na pigmentação, menor em estatura, mais mercurial, mais ligada à música e à arte, mais chegada aos crimes de roubo, seqüestro, assalto, assassinato, estupro e à imoralidade sexual". E sobre os judeus: "Não existe nenhuma dúvida de que, em geral, a horda de judeus que está chegando da Rússia e do extremo sudeste da Europa, com seu intenso individualismo e seus ideais de ganho a qualquer custo, representa o extremo oposto da antiga imigração inglesa, e da escandinava mais recente, com seus ideais de vida comunitária, por meio do desenvolvimento do trabalho suado e da criação de suas famílias no temor a Deus e no amor ao país". Esse resumo das idéias do papa da eugenia norte-americana sobre a imigração portadora de "sangue mau" dá uma boa idéia do nível "científico" do seu movimento. O trágico resultado da fúria eugenista de Davenport não teria sido possível sem o respaldo de amplos setores da sociedade norte-americana. O movimento eugenista penetrou profundamente nos meios acadêmico, jurídico, empresarial e político. Os estudos "científicos" e o levantamento de dados que eles exigiam foram custeados por algumas das maiores fortunas do país e suas renomadas fundações – a família Harriman, a Fundação Rockefeller e a Carnegie Institution, principalmente. Alexander Graham Bell, o inventor do telefone, emprestou seu prestígio ao movimento, embora com algumas chochas reservas. O mesmo fez o ex-presidente Theodore Roosevelt. Woodrow Wilson, um ano antes de assumir a presidência, promulgou a lei de esterilização do estado de Nova Jersey, do qual era governador. Não teve a coragem e o descortino de seu colega da Pensilvânia, Samuel Pennypacker, que vetou lei semelhante, argumentando: "Homens de altas realizações científicas têm a tendência (...) de perder a visão dos princípios mais amplos, fora do seu domínio (...) Permitir tal cirurgia seria infligir uma crueldade sobre uma classe desamparada (...) que o Estado tem a obrigação de proteger". Um acontecimento decisivo para o avanço do movimento foi a sentença proferida em 2 de maio de 1927 – à qual alguns eugenistas do Terceiro Reich recorreram depois para justificar seus procedimentos – pelo juiz Oliver Wendell Holmes Jr., talvez a maior figura do direito norte-americano, como presidente da Suprema Corte, no célebre caso de esterilização de Carrie Buck, considerada débil mental. Sua conclusão: "É melhor para todos no mundo que, em vez de esperar para executar descendentes degenerados por crimes, ou deixar que morram de fome por causa de sua imbecilidade, a sociedade possa impedir os que são claramente incapazes de continuar a espécie. O princípio que sustenta a vacinação compulsória é amplo o bastante para cobrir o corte das trompas de Falópio. Três gerações de imbecis são suficientes". O respaldo jurídico que a sentença de Holmes deu à esterilização compulsória era o único elemento que ainda faltava para a consolidação da eugenia norte-americana. Não admira que o movimento tenha conseguido que 27 estados aprovassem leis eugenistas que autorizavam esterilização, proibição ou anulação de casamentos de "incapazes" portadores de "sangue mau". Câmara letal As ambições da eugenia norte-americana iam além dos Estados Unidos, e seus líderes desde cedo procuraram dar caráter internacional a seu movimento. Na Inglaterra, até mesmo Winston Churchill flertou com ela, embora em sua versão "positiva", a que sempre prevaleceu ali. Bernard Shaw e H. G. Wells foram muito além de um flerte. Numa palestra na Sociedade de Educação Eugenista, em Londres, em 1910, Shaw chegou a afirmar, prenunciando os campos de extermínio nazistas: "Uma parte da política eugenista nos levará ao uso extensivo da câmara letal. Um grande número de pessoas deixaria de existir simplesmente porque se perde tempo com seu cuidado". Mas a Câmara dos Comuns rejeitou por folgada maioria (167 votos contra 89), em junho de 1931, uma proposta para discutir um programa de esterilização voluntária, em boa medida graças à oposição do Partido Trabalhista, à imprudência do autor da sugestão que admitiu ser ela apenas um primeiro passo, e também ao impacto causado na Europa pela encíclica "Casti Connubii" sobre os casamentos cristãos, lançada em 31 de dezembro de 1930, na qual o papa Pio XI condenava a eugenia. Foi na Alemanha que Davenport, Laughlin e seus companheiros encontraram os principais aliados, e o entendimento com eles prosseguiu mesmo depois da chegada de Hitler ao poder. Black traça um minucioso panorama das relações dos eugenistas norte-americanos e seus ricos financiadores e simpatizantes com os colegas e os centros de pesquisa alemães. "Fundações norte-americanas como a Carnegie Institution e a Rockefeller", diz Black, "patrocinaram generosamente a biologia racial alemã com centenas de milhares de dólares mesmo quando os norte-americanos estavam nas filas da sopa, durante a Grande Depressão." A Fundação Rockefeller, depois que Hitler ocupou a chancelaria, tomou algumas precauções, como o fim da ajuda a projetos formalmente eugenistas, mas nem por isso deixou de patrocinar programas de pesquisa genética, embora na Alemanha nazista fosse impossível dissociar as duas coisas. "Rockefeller", diz Black, "nunca soube de Mengele. Com poucas exceções, a fundação havia cessado todos os estudos eugenistas na Europa ocupada pelo nazismo quando a guerra foi deflagrada, em 1939. Mas àquela altura os dados já haviam sido lançados. Os homens talentosos que a Fundação Rockefeller financiou, as grandes instituições que auxiliou a fundar e a ciência que ajudou a criar tomaram seu próprio ímpeto científico." Apoio da IBM Sobre o envolvimento da IBM com o nazismo, que foi objeto de um livro anterior seu (IBM and the Holocaust), diz Black que, "logo depois que Hitler subiu ao poder, a IBM iniciou um acordo comercial agressivo com a Alemanha nazista, gerando lucros imensos e surpreendentes à medida que organizou e sistematizou os programas anti-semitas e eugenistas do Reich. Enquanto o regime de Hitler caminhava em sua guerra contra os judeus e contra toda a Europa, a IBM projetou e colocou em uso os cartões perfurados e outras soluções de processamento de dados para dinamizar aquelas campanhas, o que chamou de ‘eficiência de Blitzkrieg’ ". Às vésperas da guerra, quando já estava evidente que o ovo da serpente nazista só poderia gerar um monstro, e porque os protestos contra as atrocidades de Hitler haviam tornado insustentável esse apoio, os financiadores dos eugenistas norte-americanos os abandonaram. Mas o mal já estava feito e, com base nas leis eugenistas ainda em vigor, dezenas de milhares de norte-americanos continuaram a ser esterilizados ou impedidos de casar: foram cerca de 15 mil esterilizações nos anos 1940, 10 mil nos anos 1950 e mais alguns milhares nos anos 1960, a maioria de mulheres. Em 2002, os governadores de alguns estados que adotaram leis eugenistas pediram desculpas públicas às vítimas, mas em outras unidades da federação algumas dessas leis continuam em vigor, embora não sejam aplicadas. É verdade que ao final prevaleceu a maioria não enlouquecida pela eugenia da nação norte-americana. Os milhões de imigrantes de "sangue mau" se integraram à sociedade. E hoje mesmo um governo conservador, com traços truculentos que lembram o de Theodore Roosevelt, tem como chefe um presidente cuja cunhada é mexicana e o secretário de Estado e a assessora de Segurança Nacional são negros. Mas a pergunta feita por Black – como foi possível acontecer isso numa sociedade como a norte-americana? – precisa ser respondida. O livro levanta um outro grave problema. A engenharia genética pode fazer um grande bem à humanidade, curando doenças graves. Ao tornar possível uma prova inquestionável de sua inocência, os exames de DNA – para citar apenas um de seus benefícios – já salvaram a vida de muitos condenados nos Estados Unidos. Mas Black adverte com razão que uma "nova genética – ou nova-genia – poderá surgir como uma fênix das cinzas da eugenia e seguir a mesma estrada incendiada e devastada do século passado". A possibilidade de produzir clones humanos – é fácil imaginar o que Hitler faria se dispusesse dessa técnica – e os bancos de dados de DNA de populações inteiras, que já estão sendo montados, envolvem riscos que só os ingênuos não enxergam. As empresas de seguros, tanto de vida como de saúde, querem ter acesso irrestrito àqueles bancos. Essas informações podem levar à criação do que está sendo chamado de "subclasse genética" ou "gueto genético", formado pelos portadores de características genéticas que lhes tornarão impossível, em virtude do alto preço (logo os atingidos serão principalmente os pobres), o acesso aos seguros. Outras empresas também querem dispor dessas informações para orientar sua seleção de pessoal. Só rígidas legislações capazes de evitar abusos, que estão ainda sendo esboçadas em alguns países, poderão impedir mais uma catástrofe. Um mundo muito parecido com o que pode surgir de uma nova-genia enlouquecida foi imaginado por Aldous Huxley em O Admirável Mundo Novo, publicado em 1932. Ele descreve ali uma sociedade utópica na qual a conjugação de técnicas para a produção em série de bebês de proveta e seu posterior condicionamento leva à criação de classes diferenciadas de indivíduos com funções bem definidas – desde os alfa mais (a elite) até os beta e gama, destinados a tarefas subalternas. E, como garantia suplementar da ordem e da estabilidade, o uso do "soma", a pílula da tranqüilidade. É tempo de reler Huxley. Seu pesadelo se tornou tecnicamente possível. Um conselho ao leitor: não se detenha ao fim da excelente introdução de A Guerra contra os Fracos. Crie coragem e enfrente suas 860 páginas, que não são de leitura difícil. Black está certo quando adverte que "folhear o livro, pular capítulos somente levará a conclusões imperfeitas e errôneas".
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