Enéas e a Apatia Política
Carlos Leonardo Bahiense da Silva
É minimamente assustador que após as experiências vivenciadas pela humanidade, durante o início da década de 20 até o fim da Segunda Guerra Mundial, ainda tenhamos ventos da desrazão fascista agredindo as sociedades contemporâneas. Como se não bastasse os milhões de mortos vitimados pelo espetáculo de horror do holocausto, ainda encontramos turcos violentados por gangs neonazistas, na Alemanha; negros e judeus sendo abertamente discriminados pelo Front Nacional, na França; milícias norte-americanas de extrema direita incitando o culto à violência através da internet; enfim, todos elementos de um conjunto que demonstram que o fascismo continua vivo como nunca[1]
E o Brasil ? Qual o grau de inserção do nosso país nesse processo ? Afora alguns grupos isolados de inspiração neonazista que caçam judeus e/ou homossexuais[2], concebemos a ascensão política de Enéas Ferreira Carneiro como a figuração mais significativa da insensatez do neofascismo. Mas qual o motivo dessa assertiva ? Não queremos dizer, sob qualquer hipótese, que a perseguição dessas minorias são irrelevantes, entretanto, diferente das ações explícitas das hordas homofóbicas, que proclamam francamente animosidade contra os homossexuais - e aí reconhecemos os algozes e temos como nos defender -, o dirigente do PRONA oculta a sua posição de extrema direita dizendo-se “um patriota que crê no poder da verdade”. Usando um discurso calcado na combinação do nacionalismo exacerbado com o desprezo pela democracia, Enéas Carneiro foi o representante dos partidos de direita que arregimentou o maior número de votos nas eleições presidenciais de 1994[3]. Com sua personalidade autoritária conseguiu sozinho obter quase 8% de todos os votos válidos (no Rio de Janeiro recebeu mais de 11%), posicionando-se bem à frente dos outros adversários do mesmo pólo. Basta dizer que o segundo lugar (PPR), adquiriu, se tomarmos como referência a votação absoluta, a soma de 1.740.231 contra 4.672.092 do PRONA. O mais suprendente desse resultado, é que mesmo a falta de tradição política de Enéas e o caráter eminentemente recente do seu partido, não o impediu de lograr uma terceira posição nessas eleições, colocando-o a frente de políticos renomados como Leonel Brizola ( representante da coligação de esquerda formada pelos PDT-PMN) ou Orestes Quércia (representante da coalizão de centro composta pelos PMDB-PSD). Aqui reside o nosso problema fundamental : Como explicar a sedução exercida por Enéas sobre importantes parcelas do eleitorado ? Quais as cores que pintam esse quadro sombrio do crescimento do PRONA ? Talvez um mapeamento mais profundo da cultura política recente possa nos auxiliar ...
Vivemos, ao que nos parece, um momento preocupante no que concerne a prática política. Os atores sociais perderam completamente o estímulo para exercer seus direitos políticos - votar, escolher um partido, um pólo político-ideológico. Assim, a possibilidade de transformação da sociedade via ação política está paulatinamente sendo rechaçada. Um fenômeno que nos equipara aquele analfabeto político tão temido por Bertold Brecht. Mas quais as razões para tal fenômeno ? Para o esquadrinhamento do problema, talvez seja importante nos remetermos as eleições presidenciais de 1989. Nessa ocasião, votaram 82 milhões de eleitores, levando ao segundo turno Lula com 16% dos votos e Collor com 28%. O candidato do PRN, através do uso estratégico da mídia, especializou-se em construir imagens das aventuras e riquezas subjacentes aos países centrais, em uma palavra : um convite ao Primeiro-mundo. Lula ao contrário, baseia seu programa eleitoral na demonstração da miséria, desigualdades sociais, exploração, etc., ou seja, tudo o que aterrorizava o ideári********************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************2[4].
Sem dúvida, um elemento foi determinante na propaganda eleitoral adotada pelo ex-governador de Alagoas : a relação estabelecida entre Collor e seus possíveis eleitores assumiu uma dimensão para além da política. Um fenômeno de identificação dotado de uma importante carga libidinal, onde os “colloridos” cediam todos os seus sonhos e desejos à figura do líder. Viviam as aventuras do paraíso primeiro-mundista propostas por Collor.[5]
A atração entre o governante e as massas pode ser inequivocadamente permeada por uma carga afetiva bastante intensa, fenômeno esse que é passível de ser compreendido à luz das análises de Freud sobre a libido. Franz Neumann em um belíssimo artigo[6] explicitou a complexidade e os problemas subjacentes a relação líder/liderados, suas principais indagações eram : “Como pode acontecer que as massas vendam suas almas a líderes e que os sigam cegamente ? Onde reside o poder de atração dos líderes sobre as massas ? Quais são as situações históricas em que essa identificação de líder e massas é um sucesso, e como é que os homens que aceitam líderes vêem a história ?”[7] Neumann relendo Freud, usa as categorias alienação e ansiedade na tentativa de levantar algumas hipóteses à interpretação desses problemas. Na sua concepção, a sociedade coibe os instintos libidinais e destrutivos forjando enfrentamentos inexoráveis entre os homens. Tais enfrentamentos se tornam mais intensos com o avanço da civilização, pois o desenvolvimento das tecnologias que teoricamente deveriam possibilitar uma maior satisfação aos instintos, não consegue realizá-la. Para Freud, não é possível que uma sociedade seja contemplada, no concernente à libido, com a monogamia, pois a cultura a todo momento remete-se ao sexo em busca de energia. O “ideal concebível” de sociedade calcada no trabalho e na monogamia jamais foi aceito pelo pai da Psicanálise. Assim, as renúncias e limitações impostas pelas instituições sociais são caracterizadas, por Neumann, como a alienação psicológica do homem ou alienação do ego da dinâmica do instinto.[8]
Doravante, torna-se necessário estabelecer a imbricação existente entre a alienação e a ansiedade. Neumann trabalha o conceito de ansiedade em duas vertentes : a verdadeira ansiedade e a neurótica. A primeira, emerge a partir de perigos reais e concretos provenientes de um objeto externo; enquanto a segunda, é produzida pelo ego com o intuito de evitar, antecipadamente, qualquer ameaça de perigo. De que forma ? À luz da adequação da estrutura dos instintos ao mundo exterior mediada pelo ego. Poderíamos dizer, no limite, que trata-se da substituição das satisfações dos instintos por essa forma peculiar de ansiedade.
Concluimos, a partir dessa discussão, que da alienação psicológica do homem, ou seja, das limitações impostas ao id produz-se a ansiedade neurótica que existe, desse modo, como condição permanente. Entretanto, essa ansiedade neurótica em contato com perigos externos pode ser intensificada e, como corolário, assumir um caráter persecutório[9]
Quando Fernando Collor, ainda governador de Alagoas, direciona todos os males da sociedade à figura dos marajás, consciente ou inconscientemente cria um mecanismo de ativação da ansiedade neurótica de perseguição. Basta dizer que amplas parcelas do funcionalismo público foram acusadas de improficiência administrativa, corrupção e, ainda, de possuirem diversos salários e outros benefícios, enfim, de se utilizarem da máquina pública para interesses privados. Entretanto, esses marajás representavam somente uma pequena parte dos funcionários, e não toda a categoria profissional. Através de tais mecanismos, reconhecemos a implementação de uma lógica perversa que tinha como esteio, por um lado, a ocultação das verdadeiras causas da pobreza, principalmente a falta de investimento no social e, por outro, a construção de um elemento parasitário e antinacional,“responsável” por toda infelicidade do povo brasileiro, os marajás.. Neumann chamou esse estratagema político de teoria conspiratória da história, uma teoria que está calcada em uma falsa concretização[10]. Em determinadas situações históricas, as massas galvanizadas por uma ansiedade neurótica de perseguição estabelecem, ao mesmo tempo, uma identificação afetiva (dotada de libido) com um indivíduo e consideram outros verdadeiros conspiradores diabólicos “causadores” de todas as suas angústias e infortúnios. Mas, notem bem, essa identificação não ocorre a partir de uma empatia natural entre líder e líderados, e sim por meio da manipulação do processo histórico que alimenta, portanto, a falsa concretização.
Segundo Neumann, existem dois modelos tipológicos fundamentais de identificação afetiva : a cooperativa e a cesarista. A primeira, tem como base a cooperação mútua de indivíduos, onde seus egos se encontram formando um ego coletivo; a segunda, está calcada na cumplicidade absoluta entre as massas (ou amplas parcelas) e um líder, havendo a eliminação de parte significativa do ego[11].
Em suma, à luz das reflexões que aqui nos propusemos, não seria exagero considerar a existência, no tocante às eleições presidenciais, de uma identificação afetiva-cesarista entre Collor e os eleitores, onde, por um lado, o primeiro, utilizando-se de uma estética moderna, tornou-se o único candidato competente o suficiente para livrar o país do atraso/subdesenvolvimento e, por outro, constituiu-se, através da intensificação da ansiedade neurótica, no líder capaz de suprimir a atuação dos nossos conspiradores diabólicos, os maraj*******************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************************ureiro da campanha eleitoral, Paulo César Farias. Segundo a matéria, a família Collor seria financiada por uma teia de propinas provenientes de empresas particulares que tinham negócios com o Estado. Através de uma CPI liderada pelo senador Almir Lando, descobriu-se que o “Esquema PC”, em apenas dois anos de governo, havia movimentado mais de 250 milhões de doláres, sendo que 10 milhões foram desviados para a conta bancária do Presidente da República para supostamente cobrir “despesas particulares”. O senador ainda alertava que possivelmente tais cifras simbolizavam somente 30% de todo dinheiro obtido pelo “Esquema PC”. A partir desse trágico espetáculo, cujo palco é Brasília, inicia-se um fenômeno de esmaecimento da relação idílica entre Collor e a sociedade brasileira, entre líder e liderados. O então presidente não soube restabelecer os mecanismos de ativação da ansiedade neurótica de perseguição sendo completamente rechaçado por seus antigos simpatizantes.
Com o impeachment de Collor, coube a Itamar Franco, vice-presidente da República, a responsabilidade de reordenar a política nacional. Tratou de amalgamar quase todos os partidos, entre eles o PT e o PDT, em uma tentativa de extirpar a imagem pejorativa herdada da execrável política anterior. Entretanto, o problema da corrupção e da malversação do dinheiro público parecia endêmico. Um exemplo notório fora o escândalo dos Anões do Orçamento, onde um grupo de deputados federais recebia propina para redirecionar recursos públicos para empresas particulares.[12]
Sustentamos a tese de que o rompimento da identificação cesarista com Collor, agravado pelo “Esquema PC” e os “Anões do Orçamento” foram fatores que não determinaram, porém, certamente contribuiram para a constituição de uma apatia política em boa parcela da sociedade brasileira. Um estado de mal-estar/estranhamento onde a população encontra-se descrente de qualquer debate político sobre seu próprio futuro. Neumann demonstra que a palavra “apatia” antevê três reações políticas distintas : primeira, a idéia de que a política não é um universo para o cidadão por tratar-se de um conflito entre pequenos grupos e que, pragmaticamente, não há transformações; segunda, a noção epicurista da política, onde é função do Estado e da política garantir a existência da ordem, sendo secundarizada a participação do homem (o homem deve contribuir apenas para que essa prática política obtenha sucesso); e, finalmente, terceira, o desprezo consciente pelo Sistema político, pois o indivíduo se vê impotente para mudar o que quer que seja no Sistema. É essa última o cerne da alienação política. Se trabalhada dentro da alienação social, ou seja, o medo da degradação social, a alienação política dá margem para o surgimento de um movimento cesarista[13] Aí reside indubitavelmente o principal elemento que proporciona a inteligibilidade da ancensão da personalidade autoritária de Enéas Ferreira Carneiro. Reconhecendo a apatia política vigente, o dirigente do PRONA reforça a desconfiança dos eleitores e refunda o cesarismo anteriormente centrado nos “marajás”. Mas, nesse momento, a fantasmagoria fascista procura outro público-alvo. O ódio e o ressentimento que alimentam a ansiedade persecutória são direcionados para o cerne da apatia política, noutras palavras : para o Sistema democrata-liberal e seus substratos. Percebendo na sociedade um completo estado de desesperança, de incerteza ante ao futuro da nação, Enéas responsabiliza as instituições democráticas por todos os malefícios causados à sociedade. Nas suas próprias palavras : "Nós, brasileiros, de todas as partes, de todas as raças, de todos os credos, de todas as classes, insatisfeitos, preocupados e possuídos de absoluta desesperança com o quadro político vigente, ciente que as organizações políticas atuais não correspondem aos anseios do povo como um todo, decidimos fundar o Partido de Reedificação da Ordem Nacional (...)"[14]
Devido a experiência histórica dos fascismos, em geral; e da política autoritária brasileira dos anos 30 e 60, em particular, não esperamos das armadilhas míticas e ideológicas do neofascismo um discurso franco e aberto contra a Ordem democrática. Daí o uso de expressões como "quadro político vigente" ou "organizações políticas atuais", onde notamos a sofisticação e a sutileza das novas máscaras reacionárias. Para os que ainda ingenuamente insistem em dizer que o fascismo limita-se ao 8 de maio de 1945, concluímos com o alerta de Roberto Romano : "Dentre todas as violências, a primeira é a do verbo"[15]
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Notas
[1] Não estamos preocupados, nesse curto artigo, em analisar a confluência de fatores que propiciaram
ressurgência do fascismo, e sim a atuação desse no Brasil através dos discursos de Enéas Carneiro e do seu partido - PRONA. Para uma discussão inicial sobre o assunto ver : WERNER, Alice Helga e DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Fascismo uma Questão atual ? In : Revista Ciência Hoje. São Paulo : SBPC, Volume 19, número 109, maio de 1995.
[2]Uma boa discussão sobre a discriminação dos homossexuais surge em : MOTT, Luiz. Os Homossexuais: as Principais Vítimas da Violência In : VELHO, Gilberto e ALVITO, Marcos (Organizadores). Cidadania e Violência. Rio de Janeiro : Editora UFRJ/Editora FGV, 1996. O autor trabalha com a expressão homofobia, isto é, intolerância à homossexualidade. Malgrado o desconhecimento de muitos acadêmicos, tal expressão tornou-se popular na Europa e nos Estados Unidos.
[3] Sobre a análise do resultado das eleições presidenciais de 1994 ver : FERNANDES, Luis. Muito Barulho por Nada ? In : Dados/Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro : (?), volume 38, número 1, 1995 e DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Brasil em Direção ao Século XXI, pp. 374-376 In : LINHARES, Maria Yedda (Organizadora). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro : Editora Campus, 6 edição, 1996.
[4] LINHARES, Maria Yedda. Op. Cit. pp. 354-357
[5] Op. Cit. pp. 356
[6] NEUMANN, Franz. Estado Democrático e Estado Autoritário. (?), Editora Zahar, 1969.
[7] Ibidem, pp. 302
[8] Ibidem, pp. 300. Franz Neumann afirma que na concepção de Freud três elementos impedem o princípio do prazer, ou seja, a capacidade natural dos homens de se tornarem felizes, são eles : a natureza externa que não podemos dominar por completo, a suscetibilidade à doença e mortalidade do corpo, e as instituições sociais.
[9] Neumann também menciona um outro tipo de ansiedade neurótica caracterizada como depressiva, entretanto por não ter relação direta com a sua problemática este conceito aparece um tanto vago e inconcluso. Uma outra explicação seria a dificuldade de manter-se fiel as reflexões originais de Neumann, uma vez que o texto foi terminado por Herbert Marcuse após sua morte.
[10] NEUMANN, Franz. Op. Cit. pp. 305-307
[11] Ibidem, pp.305
[12] LINHARES, Maria Yedda. Op. Cit. pp. 362 - 367
[13] NEUMANN, Franz. pp. 317-318
[14] CARNEIRO, Enéas Ferreira. O Grande Projeto Nacional. Rio de Janeiro : (?), 1994, pp. 01
[15] DUTRA, Eliana de Freitas. O Ardil Totalitário. Rio de Janeiro : Editora UFRJ, Belo Horizonte :Editora UFMG, 1997, pp.12
Bibliografia
ALVITO, Marcos e VELHO, Gilberto. Cidadania e Violência. Rio de Janeiro : Editora UFRJ/Editora FGV, 1996
DUTRA, Eliana de Freitas. O Ardil Totalitário. Rio de Janeiro : Editora UFRJ, Belo Horizonte : Editora UFMG, 1997
LINHARES, Maria Yedda. História Geral do Brasil. Rio de Janeiro : Editora Campus, 1996
NEUMANN, Franz. Estado Democrático e Estado autoritário. (?), Editora Zahar, 1969