quarta-feira, 7 de março de 2012

Um texto "antigo"...

A UNIVERSIDADE E O Neo-liberalismo

Roberto Romano/unicamp.

Infelizmente, os senhores convidaram, para falar sobre o tema A Universidade e o Neoliberalismo, um estudioso da Filosofia.

Num primeiro instante, enuncio certos conceitos fundamentais do próprio liberalismo e do Estado para, depois, me referir ao núcleo da questão. Um engano trazido pelo item "neo", aposto ao liberalismo, é o de fazer o espírito olvidar o significado mais duro do próprio liberalismo. Longe de ser um ideário simples e democrático, o conjunto de doutrinas que o termo "liberal" evoca é muito complexo. Ele pode encerrar atitudes libertárias e democratizantes, opostas ao poder absoluto do rei, por exemplo, mas pode também trazer em si mesmo, como veneno escondido, teses contrárias à democracia. Não raro, ele traz alguns dogmas perfeitamente genocidas, justificando as atuais façanhas de seu filho, o suposto "neo" liberalismo. Não existe nenhuma correção de rumos, para pior, no que hoje apontamos sob o "neo". Ele radicaliza os traços mais hediondos do movimento que o gerou nos séculos XVIII e XIX.

Tomemos alguns exemplos teóricos estratégicos. O liberalismo une-se, quase universalmente, ao pensamento de John Locke. Leiamos o que esse pensador afirma no Segundo Tratado sobre o Governo: "o maior e principal fim, pelo qual os homens reúnem-se em sociedade, e se colocam sob um governo, é a preservação da propriedade" (II, 124). Ser homem é ser proprietário, o trabalho fundamentando essa antropologia. Quem não trabalha pode ser, inclusive, escravizado pelos homens "bons", os proprietários. Citemos Locke: um homem, "tendo cometido, por sua falta, um ato que merece a morte, aquele contra o qual foi cometida esta falta, o tem em seu poder, e pode usá-lo, para seu próprio serviço. E isso não é um dano para ele, pois enquanto ele considera o peso de sua escravidão demasiado, diante de sua vida, ele pode, resistindo à vontade de seu senhor, trazer para si a morte que deseja". Comenta a Professora Maria Sylvia Carvalho Franco, em artigo sobre nosso liberal,

"O desleixo no trabalho, atividade basicamente aquisitiva, fundamento da propriedade, justifica, na ordem lógica e ética, no sistema de Locke, o seu confisco e uso em favor dos operosos e racionais. Do mesmo modo, a quebra da paz e harmonia originárias, configurando crime, colocam o delinqüente à mercê do ofendido, cabendo-lhe apreender seus bens–trabalho, propriedades, vida"("All the world was America", Revista USP, Dossiê Liberalismo).

Desse modo,

"a presença do escravo, no Segundo Tratado, nada apresenta de contraditório com o liberalismo: prática e teoricamente (...) a justificativa da escravidão é uma conseqüência última, que deriva dos seus pressupostos: o poder atribuído ao espécime perfeito de confiscar, de modo total, os predicados constitutivos da pessoa humana, naqueles considerados defeituosos e nocivos" (Ibid.).

Nessa tarefa de fundamentar a igualdade dos iguais, os proprietários operosos, Locke move todos os saberes de seu tempo, sobretudo a história natural, classificando os indivíduos segundo suas marcas exteriores. Quem trabalha coloca em operação uma força, oferecida por Deus, e adquire propriedade sobre as coisas exteriores, ao mesmo tempo em que assegura a propriedade de si mesmo. Quem não trabalha não aceita o dom divino, ameaça as propriedades alheias, sobretudo a propriedade sobre o corpo. Desse modo, segundo Locke, os que não trabalham devem ser vistos como "bestas feras" contra as quais os piores castigos precisam ser aplicados e, dentre eles, a perda da existência ou a escravidão.

Quem estuda a história inglesa, desde o final da Idade Média até o século XVII, sabe que os "preguiçosos" compunham, na verdade, a massa de camponeses expulsos de suas terras, as quais passaram ao domínio da aristocracia e dos ricos mercadores. Desse modo, ao atribuir aos desapropriados a "culpa" de sua não propriedade, Locke universaliza argumentos que servem, até hoje, para definir uma desigualdade lógica, fruto de uma desigualdade histórica e economicamente estabelecida.

"A série de argumentos sistematizados por Locke, em sua doutrina, é autoconcludente: o conceito de homem como espécie na ordem natural, a lógica e o entendimento classificatórios que o agrupam e distribuem por uma taxinomia, distinguindo os perfeitos e os degenerados; a atualização de sua potencialidade específica, concebida" (Ibid).

Tudo isso conduz a "um inclemente domínio político e socioeconômico".

Inspecionando as doutrina liberais de Locke e comparando-as às falas "neoliberais", conclui a Professora Carvalho Franco

"Não há como tornar o chamado ‘neoliberalismo’ distinto e menos agressivo que a doutrina clássica: os princípios que sustentam o seu desenvolvimento são os mesmos: propriedade seletiva, mercado soberano, liberdade como prerrogativa de alguns, diferenças, cada vez maiores, atribuídas aos que sucumbem nos processos competitivos" (Ibid).

Esse ponto é nuclear porque, não raro, quando se indicava, antes da onda neoliberal de hoje, certos traços imanentes ao liberalismo, como o perfeito convívio com a escravidão, sempre algum bem pensante dizia não ser possível confundir racismo com liberalismo. Entretanto, o que notamos, nos argumentos de Locke, é a perfeita adequação do principio da propriedade e liberdade de todos os proprietários. Quem não é proprietário é fera que pode e deve ser colocada a serviço dos que são iguais entre si. O escravo pode possuir qualquer pigmentação da pele: basta que ele tenha atentado, ou possa vir a atentar, em algum momento, contra a propriedade, a marca humana dos "homens bons", para ser reduzido ao status de não homem.

Locke não é único liberal prestigioso a proferir essas doutrinas terríveis. Os textos de doutrina jurídica cantam os louvores a I. Kant, o pai do liberalismo e da idéia moderna de autonomia.

Vamos conferir o que diz o teórico da Critica da Razão Pura:

"Os negros da África só receberam da natureza o gosto pelas tolices... Branco e negro, essas duas raças de homens, parecem tão diferentes em sensibilidade quanto na cor. O culto dos fetiches, muito honrado entre os negros, é talvez uma espécie de idolatria tão miserável que parece contradizer a natureza humana. Uma pena de pássaro, um chifre de vaca, uma ostra ou qualquer outra coisa comum, desde que tenha sido consagrada por algumas palavras, torna-se objeto de veneração. Os negros são extremamente vadios e tão tagarelas que é preciso dispersá-los com golpes de bastão" (KANT. Observações sobre o Belo e o Sublime, Quarta Seção, "Sobre os caracteres nacionais").

No juízo negativo, é ressaltado o elemento valorizado no branco europeu: a sua capacidade intelectual, o seu gosto sensível, o seu trabalho. Nesse passo, Kant continua, de modo explícito, um herdeiro direto de Locke, David Hume. No seu ensaio sobre os caracteres nacionais, diz também o liberal Hume:

Suspeito que os negros, e em geral todas as espécies de homem (porque há quatro ou cinco tipos diferentes), são naturalmente inferiores aos brancos. Nunca houve uma nação civilizada de outra compleição, a não ser entre os brancos, nem indivíduo algum tanto nas ações quanto nas especulações. Não existem engenhosas manufaturas entre eles, nem arte, nem ciência (HUME).

Poupo os senhores das teses "científicas" de Hume, um dos mais eminentes filósofos da Luzes, sobre os povos não brancos.

Mesmo Hegel, o poderoso criador da moderna dialética, apresenta uma visão bem definida nesse assunto:

"o negro representa o homem natural em toda a sua selvageria e petulância; é preciso abstrair todo respeito e moralidade, o que chamamos sensibilidade, se desejamos compreendê-lo; nada pode ser encontrado neste caráter que lembre o homem. Os prolixos relatos dos missionários confirmam isto plenamente" (HEGEL. Lições sobre a Filosofia da História).

Termino a inspeção indicando os liberais de nosso tempo. Segundo os patronos da USP, os Mesquita, donos do jornal O Estado de São Paulo, os pretos seriam, e cito diretamente suas frases, "uma toxina", definida pela "massa impura e formidável de dois milhões de negros subitamente investidos das prerrogativas constitucionais (...) fazendo descer o nível da nacionalidade na mesma proporção da mescla operada" (apud: Capellato, 1993).

Com essa visão excludente, eles pensaram a Universidade de São Paulo, produtora de elites acima do povo "impuro". A universidade, para Mesquita Filho, cumpre no "organismo social" o papel do "sistema nervoso no organismo animal". Cabe-lhe, além disso, "restaurar a disciplina na mente popular" (apud: CAPELLATO, 1993 e ROMANO, 1985). Não espanta, pois, se encontramos teses congruentes, nesse plano, mas agora universalizadas para todo o povo brasileiro, preto ou branco, no liberal, neoliberal e fascista Roberto Campos. A sua doutrina é a de que ainda impera, nos meios "realistas" do Estado e da chamada sociedade civil, o eugenismo, sementeira permanente dos vários regimes deste século, de Mussolini a Pinochet. Os textos de Roberto Campos martelam a única solução para o Brasil: colocar-se de quatro diante dos Estados mais fortes e impedir a existência de novos brasileiros.

Comentando o pungente livro de Viviane Forrester (1997) sobre o cassino financeiro, que joga sempre mais desempregados na miséria, disse Roberto Campos: falar em "excluídos", cito as suas palavras grosseiras, é "empulhação". Na verdade, arremata, muitos dos chamados "excluídos", no máximo, "poderiam ser ditos ‘ainda não incluídos’, fabricados pelo espermatozóide delirante. Aos 18 milhões que moravam nas cidades em 1950, foram acrescentados 100 milhões pela paternidade irresponsável". Desse modo, o economista faz as contas e decide o que deve ser feito com os filhos do esperma delirante. Soluções finais não precisam ser apenas as que usam campos de concentração. Pode-se transformar um país inteiro em imenso campo de morte. Somos, hoje, pouco mais de 160 milhões de habitantes. Se, como afirma Roberto Campos, 100 milhões, dentre nós, surgem apenas da loucura, o diagnóstico está pronto. O tratamento usado, por enquanto, reside nos confiscos de rendas, de emprego, de escolas, de hospitais.

Assim, quando nos referimos ao neoliberalismo, esquecendo o seu vínculo com o próprio liberalismo, perdemos uma continuidade histórica, que alicerçou, nas consciências nacionais e nas classes, "argumentos" que hoje servem para colocar nossos povos na passividade diante dos atentados à vida humana, feitos em nome do livre mercado. A consciência moderna está pavimentada por idéias de exclusão, que parecem o seu contrário, a igualdade e a liberdade de todos. Esse é primeiro ponto que eu gostaria de recordar com os senhores.

O segundo gira ao redor de alguns conceitos importantes para entendermos o que se passa, hoje, no plano do Estado e quais as inovações trazidas pelo neoliberalismo. O Estado moderno, surgido das lutas contra o mando feudal e o poder discricionário da nobreza, pouco a pouco concentrou em si três monopólios essenciais, que definem a esfera pública. O primeiro monopólio é o da força física. Somente a instituição estatal possui o direito de polícia e de arregimentar exércitos. Ninguém, ou nenhuma instituição além do Estado, pode constranger corpos dos cidadãos e dos estrangeiros, em caso de grave ruptura com a vida comum, dentro dos limites do país e fora dele. Desse modo, nenhum particular pode armar-se e constranger os outros particulares com a força física.

No Brasil, apenas para exemplo, temos o costume de tomar como fato corriqueiro a contratação de guardas para nossas casas, como os fazendeiros julgam normal contratar capangas e milícias para suas propriedades, matando cidadãos impunemente. Durante a ditadura, tivemos os esquadrões da morte, as organizações secretas de assassinato e tortura, lideradas e executadas por empregados estatais, como alguns militares, mas sem que esses atos fossem oficiais. A força física do Estado só é um monopólio porque, supostamente, é orientada para preservar a vida de todos os cidadãos. Sendo aquelas organizações dirigidas para a morte de alguns cidadãos e, idealmente, de todos os que se opunham ao governo, elas eram, rigorosamente, anti-estatais, embora semi-oficializadas.

O segundo monopólio é o da norma jurídica. Só o Estado tem a prerrogativa de editar leis com vigor universal, valendo para todos e para cada um dos cidadãos. Nesse sentido, ninguém pode definir o que indivíduos, grupos, classes devem fazer obrigatoriamente. Tendo o Estado três faces, a Legislativa, a Executiva e a Judiciária, só em caso de uma ditadura, atingida por meio de golpe de Estado, um dos poderes, quase sempre o Executivo, se apropria ilegalmente desse monopólio, que deve ser repartido entre os três setores, suprimindo ou colocando o Parlamento e os tribunais sob tutela.

No caso da ditadura militar, os "Atos Institucionais" foram uma usurpação, pelo Executivo ocupado pelos castrenses, de prerrogativas que pertenceriam ao Estado na sua integridade. Em nossos dias, as Medidas Provisórias, embora sem a profundidade dos Atos Institucionais, porque supostamente devem ser ratificadas pelo Congresso, usurpam os plenos poderes do Parlamento e do Judiciário.

O terceiro monopólio é a gestão e alocação do excedente econômico. Só o Estado pode impor taxas, definir impostos obrigatórios para todos os cidadãos. Como só ele retira parte da riqueza produzida pela sociedade como um todo sob forma de impostos, só ele pode aplicar esses recursos. Ou seja, tendo o monopólio da força e da norma jurídica, somado ao monopólio da gestão do excedente econômico, só o Estado pode e deve gerir o que se chama de políticas públicas: saúde, educação, lazer, guerra, segurança interna, cultura, etc. Por mais privatizada e privatizadora que seja a instituição estatal, só ela pode definir o que a sociedade como um todo deve fazer nesses setores.

Nossa tradição estatal se caracteriza, desde a Colônia até hoje, pelo excesso no uso centralizado, posto nas mão de um só poder, o Executivo, desses monopólios que deveriam constituir a característica do Estado. Somos uma Federação regida pelo Executivo Federal e, nela, os poderes locais, os municípios, e regionais, os Estados, são entidades totalmente passivas e dependentes do que se passa no núcleo nacional.

Desde a Colônia, sim, mas também durante o Império, as Regências, a Velha República, as ditaduras Vargas e militar, o governo central abusou da força física. Nossa federação foi imposta através dos canhões, abafando tendências autonomistas e, no limite, separatistas de Norte a Sul. Os Farrapos, a Farroupilha, a República do Equador, os Mascates, etc. foram movimentações derrotadas com muito uso de força física. Isso criou o hábito de considerar "normal" que o governo do centro impusesse a sua vontade na ponta das baionetas ou, como ainda em 1932 em São Paulo, nas patas do cavalos, amarrados no obelisco paulista. Desde então, os atos repressivos do governo, com ou sem golpes de Estado, foram uma constante.

O Executivo federativo também abusou da uniformização legal. Entre nós, as normas legais são ideadas e impostas ao todo do país, sem nenhum respeito pelas particularidades regionais e pelos poderes dos Estados e municípios. É o oposto do que ocorreu na federação americana. Todos sabem que a constituição daquele país é centralista (Kramnick, 1993). Mesmo assim, ela mantém grande autonomia dos Estados, em todas as matérias, da educação à saúde e desta às leis penais.

Temos, também, excesso de centralização fiscal, em detrimento de nossos municípios e Estados. O Brasil é uma pirâmide fiscal invertida: ao contrário de outras federações, onde o retorno dos impostos vai diretamente, em primeiro lugar, aos municípios e às províncias, e apenas a menor parte segue para o governo central, dado que as maiores despesas encontram-se na base; aqui a maior parcela, desde sempre, vai para o centro federativo, que "redistribui" os recursos de acordo com suas conveniências, ou seja, as do Executivo. Certas normas fiscais são um verdadeiro atentado a qualquer autonomia regional ou municipal. A "lei Kandir", que arranca verbas dos Estados, prejudicando a saúde, a educação, a pesquisa, é uma dessas teratologias jurídicas.

Semelhantes excessos no três monopólios do poder resultam na hiperbólica centralização das políticas públicas, produzindo a sua ineficiência. São exemplos disso os casos de Caruaru, da retomada das doenças de massa e outros.

Todo esse processo centralizador segue, com lógica férrea, até às últimas conseqüências. A centralização de força, norma jurídica, apropriação do excedente econômico desemboca não só na centralização de tudo no Executivo. No interior deste último, ela se concentra nas chamadas "áreas econômicas". Os seus ocupantes não foram eleitos, nem o serão. Trata-se de um exercício irresponsável como o do rei absoluto. Um gabinete do Banco Central concentra maior poder do que todo o Parlamento e, não raro, do que todos os Tribunais. Os planos econômicos, aplicados na calada da noite, preparados por "técnicos", do plano Cruzado ao Real, passando pelo confisco ocorrido no "governo" Collor, todos constituem verdadeiros golpes de Estado, sem que ninguém possa impedi-los, sem que os cidadãos tenham condições de recusá-los. Impostos como a CPMF são assumidos, desviados de sua finalidade propalada, e nenhuma autoridade responsável pode reverter essa situação.

Termino esse ponto com o seguinte elemento: a política nacional, em todos os níveis, não é federativa, não é democrática, não recolhe a iniciativa de todo o Estado, mas tem a hegemonia do Executivo e, dentro dele, da área econômica, decidindo com raciocínio tacanho a maior parte dos negócios públicos, como a educação, a saúde, a Ciência e Tecnologia, etc. Os gabinetes ministeriais desses setores são apenas servos sob comando de seus superiores, os econômicos. Isso tem sido confessado, clara e distintamente, pelo atuais ministros da Educação, da Ciência e Tecnologia, etc.

Temos, pois, que o neoliberalismo se ergue sobre um passado de justificativa de desigualdades e que ele, no Brasil, teve representantes piores do que seus idealizadores europeus. Perto de Roberto Campos, o nosso "liberal", Locke, Hume e Kant são verdadeiras Madres Tereza de Calcutá. Nossa tradição política e jurídica é centralizadora, com base no abuso dos três monopólios, atributos de todo poder de Estado.

Passemos ao nosso problema. Assistimos, no mundo, sobretudo após a II Grande Guerra, algumas revoluções científicas e tecnológicas. A primeira foi a aplicação intensiva de capitais em técnicas inovadoras (energia nuclear, automação, produtos sintéticos, computadores, eletrônica). A segunda ocorreu nos anos 60, com uma segunda geração de computadores, eletrônicos, sintéticos e novas técnicas de comunicação. A primeira foi uma passagem do trabalho intensivo na indústria para o capital intensivo como o centro da acumulação, em escala mundial. A segunda foi do capital intensivo para a tecnologia e saber intensivos. Desse modo, surgem novas indústrias baseadas na tecnologia de ponta e com conteúdos científicos, como eletrônica e computação, telecomunicações, robótica, cibernética, ciência aeroespacial, biotecnologia. Esses fatos dão-se, não por acaso, nos países do Norte. Os efeitos dessas mudanças se fazem sentir, imediatamente, na quebra das barreiras nacionais. Os países do Norte aumentam em escala inusitada o controle das tecnologias, das informações, dos serviços (sobretudo as finanças) enquanto o trabalho intensivo domina os países do Sul, sem que ele passe para a outra fase, já atingida pelos países do Norte. Desse modo, ocorre uma uniformização econômica mundial, orientada segundo as opções dos Estados que possuem bases para acumular lucros, a partir de seu privilegiado status técnico e científico. Esses países concentram o controle financeiro, técnico, científico em benefício e sob gerência de elites nacionais mas com impacto multinacional.

Com isso, medidas que antes e pouco depois da II Guerra tendiam ao aumento da potência de um país, em detrimento de outros, através imediatamente do uso externo do monopólio da força física (como a doutrina Monroe, com o "big stick") ou como, durante a Guerra Fria, requisitavam o uso da forca física unida aos esforços diplomáticos intensos, mais a espionagem, como ocorreu na maior parte dos países da América Central e do Sul, com os Estados Unidos patrocinando golpes de Estado militar para definir seu controle, passam a ser incômodas ou irrelevantes para a política dessas grandes potências. Claro, se preciso, elas apelam para a força física, como ocorre atualmente no embate entre o governo iraquiano e os Estados Unidos. Mas o eficaz mesmo, no domínio, vem das armas técnicas, de informação, de controle financeiro, etc.

Os capitais dos países do Norte são impostos aos dominados, criando-se elites locais transnacionalizadas, sob o comando das elites hegemônicas. Com esse dado, surgem as teses e as práticas de uma "transnacionalização" dos Estados não hegemônicos. Em cada país dominado, temos elites tecnocráticas lideradas por elites localizadas nos EUA ou na Europa. Os instrumentos dessa hegemonia (técnicas de ponta, serviços que empregam intensamente saberes científicos, finanças, etc.) permanecem nos países citados. As elites "locais", as dos países controlados, tendem a não operar mais na lógica do Estado nacional, com os três monopólios definidos acima. Elas abrem mão de conceitos e práticas tidos como "ultrapassados", como os que definem a idéia de "soberania nacional".

Ocorre que os países dominados não são terra apenas de elites. Eles contam com milhões de seres humanos, cujos padrões de vida diminuem em qualidade, em favor dos trabalhadores dos países que possuem os elementos da segunda revolução científica e tecnológica. Enquanto o desemprego diminui nos EUA, por exemplo, sendo o menor dos 20 últimos anos, ele aumenta nos países que abrem mão do incentivo às técnicas, à educação, às ciências em nível de massa. O Brasil é o quinto importador dos EUA não por acaso. A massa de recursos drenados diretamente para a economia americana deixou de ser algo irrelevante no mercado interno daquele país. Acordos como o do Sivam, sabe-se, assegurariam empregos para americanos do Norte aos milhares. E nada aqui.

Tendo o recurso à força física bruta se revelado ineficaz, com o fracasso das ditaduras militares, e anacrônico em termos da comunicação em escala mundial, o "novo modelo" assumido nas relações de poder, assimétrico entre os países hegemônicos e os dominados, é o da "democracia política", cujo alvo precípuo é o de concentrar as atenções permanentes das massas em processos eletivos, afastando-as o mais possível de suas demandas e exigências sociais. Desse modo, governantes são eleitos, parlamentares idem e seus atos recebem todos os holofotes, de modo a que não se discuta a ação das elites tecnocráticas, não eleitas mas unidas aos centros de decisão transnacionais. O foco principal cai sobre a corrupção dos governantes, no Executivo e nos Parlamentos ou Judiciário, de modo a enfraquecê-los ao máximo, mas sempre em nome da "democracia", ou seja, das eleições permanentes. Nenhuma palavra é permitida sobre os negócios bilionários entre os centros financeiros transnacionais e as elites tecnocráticas subordinadas.

E chegamos ao campo neoliberal. O que significa mesmo esse vocábulo composto? Trata-se de um conjunto discursivo e de um modus operandi destinados, fundamentalmente, a definir condições ótimas para a mobilização total do capital. Por isso, e na lógica que vimos seguindo, o primeiro passo dos seus adeptos e serviçais é o de eliminar, nos Estados submetidos, os três monopólios que indiquei acima. Trata-se de eliminar, ali, o monopólio da força, da norma jurídica e do excedente econômico. Para que o capital tenha certeza de não se perder naquelas terras, urge estabilizar a sua economia, segundo os parâmetros ideais para ele, capital transnacional. E isso deve ser feito no maior número possível de países para que, surgindo dificuldades em um deles, o capital possa dele sair e penetrar, com segurança mínima, nos outros. Se aparece uma zona de turbulência na Ásia, é preciso que o Brasil ofereça condições para o acolhimento desses capitais. Assim, estabilidade financeira, obtida à custa do retraimento das demandas sociais das massas, e juros altos são pólos de atração dos mencionados capitais.

É tempo de introduzirmos um complicador nesse panorama. Falamos dos três monopólios do Estado moderno. Mas esses monopólios, como vimos no caso brasileiro, variam de país a país. Em nosso caso, eles foram açambarcados pelo Executivo federal. Ocorre que, sendo capitalista, nosso Estado, com hegemonia absoluta do Executivo, ainda apresenta uma face dupla e contraditória. Ele, ao mesmo tempo, providencia, através de suas elites irresponsáveis, nos gabinetes econômicos, as condições para a acumulação transnacional dos capitais e ainda representa a nação que não é possível transnacionalizar, a maioria de milhões, marginalizados do movimento financeiro, técnico, científico, educacional, de saúde, etc. Como é evidente a contradição dessas duas faces, os Estados submetidos são claramente entidades hamletianas; para eles, "to be, or not to be, that is the question". Os governantes, não apenas enquanto demagogia, mas por uma contradição real, precisam, ao mesmo tempo, abrir os cinco dedos, indicando políticas sociais responsáveis, e fechá-los, para recolher impostos, definir normas jurídicas, aplicar a força física em proveito do capital transnacional.

Assim, no mesmo passo em que se anunciam programas retumbantes de "comunidades solidárias" e "universidades" idem, os governos devem, como prioridade absoluta, assumir medidas que reduzem os referidos programas à poeira. Eles devem adotar políticas fiscais e monetárias (usando o monopólio do excedente econômico) que assegurem a "estabilidade" para os capitais transnacionais. E precisam providenciar a estrutura básica para a atividade econômica global (aeroportos, portos marítimos, rede de comunicações, sistemas educacionais, de acordo com o que o capital internacional requer de seu país) . Eles devem, além disso, e ao mesmo tempo, prover a ordem social, ou seja, a estabilidade política, o que exige produzir ou manter instrumentos de coerção e controle das consciências.

Ou seja: ao contrário do que se afirma em muitas teses de "ciência política", "filosofia política", "história", "economia", não estamos assistindo ao fim do Estado nacional, com os três monopólios descritos. Existe, sim, a passagem dos Estados nacionais para o status de Estados neoliberais, onde os três monopólios são empregados para conciliar interesses contraditórios: os interesses das grandes massas dos excluídos pelo processo de acumulação de saberes e riquezas e os interesses dos capitais transnacionais.

Chegamos ao tema "A universidade e o neoliberalismo". A universidade reúne o que se chama o setor "intelectual". Nela, residem e operam os grupos e indivíduos que um autor italiano, Antonio Gramsci, indicou como "os técnicos em legitimação". Voltemos rapidamente aos três monopólios: eles só podem ser empregados por longo tempo se forem "legítimos". Quando ocorre o abuso deles, por exemplo, sem que a sociedade civil tenha delegado o seu uso a autoridades eleitas, como na ditadura, os intelectuais unidos ao regime de exceção (caso de Roberto Campos, Delfim Netto e outros) produzem "argumentos" para legitimar tal emprego. Também o Estado neoliberal possui semelhantes "experts" em legitimação. Eles "teorizam" as condições ideais de controle e mando, apresentando a política empírica, a que se faz sob o comando do capital transnacional, como a "única via possível".

Tanto nos países hegemônicos como nos subordinados, a "comunidade" formada pelos "experts em legitimação" produz mais do que simples nexos teóricos. Sem ela, a prática do controle político e econômico é impossível. É de seu interior que surgem os "técnicos" e "assessores" cujo fim, nos ministérios e demais organismos de governo, é a elaboração de políticas públicas que permitam reunir, num só ato, os traços contraditórios: responder às demandas de saúde, educação, etc. das grandes massas e as bases para a expansão, sem demasiados sustos, do capital transnacional.

Hoje, como indica Robert Cox (1987),

"a produção intelectual é organizada como a produção de bens ou de outros serviços. As bases materiais das redes são providas por organizações formais (usualmente não governamentais) como agências mobilizadoras e coordenadoras com diretores de pesquisa e de fundos (de fontes às vezes mais, às vezes menos visíveis) para estudos dirigidos, conferências financiadas e simpósios ou discussões informais (...) A base material das redes responde pela seleção dos participantes, o que garante certa homogeneidade ao redor do centro da ortodoxia a ser implantada".

Ou seja, apesar da ortodoxia, tais redes não deixam de lado, absolutamente, idéias "aceitáveis" para o núcleo. A política dessas redes, continua Cox, e isto é importante para nós, que temos um governo de universitários, é "conseguir intelectuais que tenham influência política, ouvidos pelos que tomam as decisões nas cúpulas, ou mesmo se tornando, eles próprios, os que decidem, formando equipes decisórias em termos políticos". Essa missão foi definida, ampliada e garantida pelo governo dos Estados Unidos, com o rótulo de "luta pela democracia" no mundo. Democracia, é claro, segundo os parâmetros norte-americanos. Termino minha fala mencionando o programa do ex-Secretário de Estado americano, George Schultz (1983), cujo objetivo é o de captar e treinar as elites universitárias do mundo inteiro, para que apliquem a "democracia", estilo USA, nas terras dominadas .

O primeiro item, diz Schultz, é o "treino das lideranças", o que envolve um amplo leque de atividades para selecionar e treinar uma base extensa de líderes intelectuais, em terras estratégicas, através de seminários e outros meios, em programas das universidades estadunidenses.

O segundo item refere-se à "educação", ou seja, "inculcar os princípios e práticas da democracia e o caráter e valores dos Estados Unidos nos sistemas educacionais de outros países". Isso implica, adianta o político norte-americano, penetrar nos sistemas educacionais e na midia dos países alvo.

O terceiro item é o de "fortalecer a democracia", ou seja, organizar, fundar, aconselhar partidos, uniões, midia, negócios e grupos civis nos países alvo. "Aqui, novamente", diz o secretário, "devemos reunir organismos não governamentais norte-americanos para a maior parte do trabalho".

O quarto item é o de "dirigir idéias e informações", organizando fóruns e publicações, todos dirigidos para as elites, de um lado, e, através de campanhas na midia, atingir consenso e influência nas massas, com a noção dos padrões americanos de vida.

Finalmente, o quinto item diz respeito ao desenvolvimento de laços pessoais e institucionais entre equipes americanas e dos países alvo. Esses itens entram numa agenda completa de captação e cooptação de universitários dos países alvo, para as "reformas" requeridas pela política econômica e social americana.

Nesse aspecto William I. Robinson (1996) tem um trabalho estratégico, que deve ser lido, analisando o que se passa, hoje, nas relações entre Estados Unidos e Chile, Filipinas, Nicarágua, Haiti. O modus operandi, entretanto, é similar ao aplicado ao Brasil, cabendo nos itens estabelecidos por Schultz. Boa parte do que indiquei acima, vem dessa análise.

Como os senhores constatam, não me detive, nesse quadro, nas "reformas" definidas para a Universidade brasileira. Em primeiro lugar, indiquei a ideologia que sustenta o neoliberalismo, a qual lança raízes no próprio liberalismo, ou seja, na idéia de que o centro antropológico fundamental é a propriedade e que este é o valor a ser protegido, acima de tudo. A propriedade e o mercado onde ela se movimenta. Em segundo lugar, sugeri que, longe de ser uma abolição do Estado, a prática e o ideário neoliberal consistem no uso do mesmo, com os seus três monopólios, para servir ao capital transnacional, cuja sede reside nos países hegemônicos, em especial nos EUA.

No caso brasileiro, essa tarefa é facilitada, considerando-se a enorme concentração de poderio no governo federal, o que torna toda a máquina do Estado dócil para as diretivas transnacionais. Ao mesmo tempo, considerando-se as grandes massas urbanas brasileiras e sua pressão constante por serviços sociais, essa tarefa torna-se mais complicada. Daí, advêm a imensa propaganda, nos meios persuasivos na midia, e a cooptação exacerbada das supostas elites acadêmicas, com programas como o Pronex, enquanto recursos são extraídos aos milhões da pesquisa e da formação acadêmica, nos campi e nos laboratórios de pesquisa. Uma excelente análise desse ponto encontra-se na coletânea A quem pertence o amanhã?, especialmente nos artigos de Malaguti (1997) e Carcanholo (1997).

Cabe insistir, entretanto, que não é fácil para o governo subordinado agradar ao mesmo tempo aos donos do capital e atender aos requisitos mínimos das massas, como a saúde, etc. Daí, a permanente exposição, diante da midia, de "salvadores da saúde", da "universidade", etc., mesmo que se tratem de pessoas que, em curto prazo, desmintam seu papel soteriológico, transformando-se em coveiros daqueles setores, em proveito do livro caixa.

Em último lugar, sugeri que, não raro, lemos análises sobre o neoliberalismo como se ele fosse autônomo do fato bruto, antigamente chamado "imperialismo" na teoria política, o que torna as mesmas análises algo subjetivas (a "culpa" seria deste ou daquele governante, tomado isoladamente) e desligadas da política internacional.

Termino dizendo que os EUA receitam o Estado mínimo, para nós, com função definida de proteger os capitais dos países hegemônicos, garantindo para si o uso dos três monopólios, não só em plano interno aos EUA, mas sobretudo em plano externo. O monopólio da força eles o exercem de modo imperial, inclusive com a adesão de países, como o Brasil, que até hoje mantinham certa autonomia nesse plano. O atual presidente da República brasileira, pressuroso, mostrou-se disposto a mandar soldados brasileiros ao Iraque, com a desculpa de "obter pontos" junto ao Grande Irmão do Norte, na disputa por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.

O monopólio da norma jurídica eles o exercem inclusive com explícitos atentados ao direito internacional, como a "lei" que garante aos EUA invadir, com suas polícias e até exércitos, países onde criminosos ou supostos criminosos estejam, mesmo que estes indivíduos não sejam cidadãos norte-americanos. Além disso, eles exercem esse monopólio do jurídico, em defesa da sua propriedade, através de pressões diretas ou indiretas sobre os países dominados, como no caso da lei de patentes.

O monopólio do excedente econômico eles o exercem através de um protecionismo ímpar e sanções a produtos vindos dos países subordinados e através de instituições de controle como a Alca, cujos fins colidem, em substância, com as tímidas tentativas dos governos sul-americanos de se protegerem minimamente nesse trato assimétrico, através de instrumentos como o Mercosul. Antes de discutir, portanto, as medidas tópicas que estão sendo tomadas contra as universidades públicas, os institutos de pesquisa, etc. pelo governo subordinado do Brasil, pareceu-me importante lembrar esses pontos lógicos, históricos, econômicos, para que não tombemos na luta contra os efeitos, sem considerar as causas. Estas são múltiplas e complexas. Enfatizei apenas algumas, para permitir nossa discussão. Se me excedi no tempo, abusando da vossa paciência, peço-vos desculpas e coloco-me ao dispor para as críticas e perguntas julgadas necessárias.

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