Textos literários em meio eletrônico
Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, de Padre António Vieira.
Si
dixero quia non scio eum, ero similis vobis, mendax (1).
§ I
A verdade e a
mentira: a verdade do pregador e a mentira dos ouvintes. As três espécies de
mentiras com que os escribas e fariseus hoje contradisseram, caluniaram e
quiseram afrontar e desonrar o Filho de Deus.
Temos
juntamente hoje no Evangelho duas coisas que nunca podem andar juntas: a
verdade e a mentira. E por que não podem andar juntas, por isso as temos
divididas; a verdade no pregador, a mentira nos ouvintes; o pregador muito
verdadeiro, o auditório muito mentiroso. Uma e outra coisa disse Cristo aos
escribas e fariseus, com quem falava. O pregador muito verdadeiro: Si
veritatem dico vobis (2);
o auditório muito mentiroso: Ero similis vobis, mendax (3).
De três modos
- que há muitos modos de mentir - mentiram hoje estes maus ouvintes.
Mentiram, porque não creram a verdade; mentiram, porque impugnaram a verdade;
mentiram, porque afirmaram a mentira. Não crer a verdade é mentir com o
pensamento; impugnar a verdade é mentir com a obra; afirmar a mentira é
mentir com a palavra. Tudo isto lhe tinha profetizado a Cristo seu pai Davi,
quando disse: In multitudine virtutis tuae mentientur tibi inimici tui (4).
De muitos modos mostrareis eficazmente a verdade de vosso ser, mas vossos
inimigos vos mentirão também por muitos modos; mentir-vos-ão não crendo;
mentir-vos-ão impugnando; mentir-vos-ão mentindo, como hoje fizeram.
Disse-lhes Cristo que era Filho de Deus verdadeiro, a quem eles chamavam Pai
sem o conhecerem: disse-lhes que os que recebessem e observassem sua doutrina
viveriam eternamente, e aqui mentiram não crendo a verdade: Si veritatem dico
vobis, quare non creditis mihi (5)?
Disse-lhes mais, que Abraão desejara ver o seu dia, isto é, o dia em que
havia de descer do céu à terra, e nascer homem entre os homens, e que,
finalmente, o vira com grande júbilo e alegria da sua alma, e aqui mentiram
impugnando a verdade: Quinquaginta annos nondum habes, et Abraham vidisti (Jo
8, 57)? Tu não tens ainda cinqüenta anos, e viste Abraão? - E o bezerro que
vós dissestes que vos livrara do Egito, quantos anos tinha? Não era nascido
e gerado naquele mesmo dia? O ditame com que o tivestes por Deus era falso,
mas a suposição com que entendestes que em Deus podia haver duas gerações,
uma antes e outra depois, era verdadeira. Respondeu Cristo: Antequam Abraham
fieret, ego sum (Jo 8, 58): Antes que Abraão fosse, eu já era. - Mas este
era, declarou-o pela palavra Ego sum: eu sou para que entendessem que era
aquele mesmo Deus, que quando se definiu a Moisés disse: Ego sum qui sum (Êx
3, 14): Eu sou o que sou porque no eterno não há passado, nem futuro: tudo
é presente. Enfim, mentiram afirmando a mentira, porque disseram que Cristo
era samaritano e endemoninhado: Samaritanus es, et daemonium habes
(6). E para mentirem duas
vezes em uma mentira, repetiram a mesma blasfêmia ratificando o que tinham
dito e alegando-se a si mesmos: Nonne bene dicimus nos (7)?
Mal é dizer mal, mas depois de o haverdes dito, dizerdes ainda que dizeis
bem, é um mal maior sobre outro mal, porque é estar obstinado nele.
Estas são as
mentiras com que os escribas e fariseus hoje contradisseram, caluniaram e
quiseram afrontar e desonrar ao Filho de Deus, como o Senhor lhes disse: Ego
honorifico Patrem meum, et vos inhonorastis me (8).
Mas, posto que a Sabedoria eterna fosse caluniada e injuriada por semelhante
gente, nem por isto ficou afrontado nem desonrado Cristo, porque tudo o que
disseram dele e lhe fizeram foi por inveja, por ódio, por raiva, por vingança,
e quando as causas são estas, as injúrias não injuriam, as afrontas
desafrontam, as desonras honram. Não está muito honrado Cristo? Dizei-o vós.
Ora eu, que pregarei neste dia, em que tanto se espera o assunto dos
pregadores? Hei também de dizer-vos uma grande injúria, uma grande afronta e
uma grande desonra da vossa terra. Contudo, ainda que as verdades causam ódio,
espero que não haveis de ficar mal comigo, porque hei de afrontar todos para
desafrontar a cada um. O discurso dirá como. Ave Maria.
§II
O Domingo das
verdades. No Maranhão a corte da mentira. O galante apólogo do diabo. O M de
Maranhão. No Maranhão até o sol e os céus mentem.
Si dixero quia
non scio eum, ero similis vobis, mendax (9).
A este
Evangelho do Domingo Quinto da Quaresma chamais comumente o domingo das
verdades. Para mim todos os domingos têm este sobrenome, porque em todos
prego verdades, e muito claras, como tendes visto. Por me não sair, contudo,
do que hoje todos esperam, estive considerando comigo que verdades vos diria,
e, segundo as notícias que vou tendo desta nossa terra, resolvi-me a vos
dizer uma só verdade. Mas que verdade será esta? Não gastemos tempo. A
verdade que vos digo é que no Maranhão não há verdade.
Cuidavam e
diziam os sábios antigos, que em diferentes ilhas do mundo reinavam
diferentes deidades: que em Creta reinava Júpiter, que em Delos reinava
Apolo, que em Samos reinava Juno, que em Chipre reinava Vênus, e assim de
outras. Se o império da mentira não fora tão universal no mundo, pudera-se
suspeitar que nesta nossa ilha tinha a sua corte a mentira. Todas as terras,
assim como tem particulares estrelas, que naturalmente predominam sobre elas,
assim padecem também diferentes vícios, a que geralmente são sujeitas.
Fingiram a este propósito os alemães uma galante fábula. Dizem que quando o
diabo caiu do céu, que no ar se fez em pedaços, e que estes pedaços se
espalharam em diversas províncias da Europa, onde ficaram os vícios que
nelas reinam. Dizem que a cabeça do diabo caiu em Espanha, e que por isso
somos furiosos, altivos, e com arrogância graves. Dizem que o peito caiu em
Itália, e que daqui lhes veio serem fabricadores de máquinas, não se darem
a entender, e trazerem o coração sempre coberto. Dizem que o ventre caiu em
Alemanha, e que esta é a causa de serem inclinados à gula, e gastarem mais
que os outros com a mesa e com a taça. Dizem que os pés caíram em França,
e que daqui nasce serem pouco sossegados, apressados no andar, e amigos de
bailes. Dizem que os braços com as mãos e unhas crescidas, um caiu na
Holanda, outro em Argel, e que daí lhes veio - ou nos veio - o serem corsários.
Esta é a substância do apólogo, nem mal formado, nem mal repartido, porque,
ainda que a aplicação dos vícios totalmente não seja verdadeira, tem
contudo a semelhança de verdade, que basta para dar sal à sátira. E,
suposto que à Espanha lhe coube a cabeça, cuido eu que a parte dela que nos
toca ao nosso Portugal é a língua, ao menos assim o entendem as nações
estrangeiras que de mais perto nos tratam. Os vícios da língua são tantos,
que fez Drexélio um abecedário inteiro e muito copioso deles. E se as letras
deste abecedário se repartissem pelos estados de Portugal, que letra tocaria
ao nosso Maranhão? Não há dúvida, que o M. M - Maranhão, M - murmurar, M
- motejar, M - maldizer, M - malsinar, M - mexericar, e, sobretudo, M -
mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os
pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente. Novelas e
novelos, são as duas moedas correntes desta terra (10),
mas têm uma diferença, que as novelas armam-se sobre nada, e os novelos
armam-se sobre muito, para tudo ser moeda falsa.
Na Bahia, que
é a cabeça desta nossa província do Brasil; acontece algumas vezes o que no
Maranhão quase todos os dias. Amanhece o sol muito claro, prometendo um
formoso dia, e dentro em uma hora tolda o céu de nuvens, e começa a chover
como no mais entranhado inverno. Sucedeu-lhe um caso como este a D. Fradique
de Toledo, quando veio a restaurar a Bahia no ano de mil seiscentos e vinte e
cinco. E tendo toda a gente da armada em campo para lhe passar mostra,
admirado da inconstância do clima, disse: En el Brasil hasta los cielos
mientem. Não sei se é isto descrédito, se desculpa. Que mais pode fazer um
homem, que ser tão bom como o céu da terra em que vive? Outra terra há em
Europa ( * ), na qual eu estive há
poucos anos, em que se experimentaram cada dia as mesmas mudanças, pelas
quais Galeno não quis curar nela; porém, ali há outra razão, porque como a
terra tem jurisdição sobre o céu, segue o céu as influências da terra.
Mas o que se disse do Brasil por galanteria, se pode afirmar do Maranhão com
toda a verdade. É experiência inaudita a que agora direi, e não sei que fé
lhe darão os matemáticos que estão mais longe da linha. Quer pesar o sol um
piloto nesta cidade onde estamos, e não no porto, onde está surto o seu
navio, senão com os pés em terra: toma o astrolábio na mão com toda a
quietação e segurança. E que lhe acontece? Coisa prodigiosa! Um dia acha
que está o Maranhão em um grau, outro dia em meio, outro dia em dois, outro
dia em nenhum. E esta é a causa por que os pilotos que não são práticos
nesta costa, areiam, e se têm perdido tantos nelas. De maneira que o sol, que
em toda a parte é a regra certa e infalível por onde se medem os tempos, os
lugares, as alturas, em chegando à terra do Maranhão, até ele mente. E
terra onde até o sol mente, vede que verdade falarão aqueles sobre cujas
cabeças e corações ele influi. Acontece-lhes aqui aos moradores o mesmo que
aos pilotos, que nenhum sabe em que altura está. Cuida o homem nobre hoje que
está em altura de honrado, e amanhã acha-se infamado e envilecido. Cuida a
donzela recolhida que está em altura de virtuosa, e amanhã acha-se murmurada
pelas praças. Cuida o eclesiástico que está em altura de bom sacerdote, e
amanhã acha-se com reputação de mau homem. Enfim, um dia estais aqui em uma
altura, e ao outro dia noutra, porque os lábios são como o astrolábio. É
isto assim? A vós mesmos o ouço, que eu não o adivinhei. vede se é certa a
minha verdade: que não há verdade no Maranhão.
§ III
A influência
do clima no nascimento de vícios e virtudes. Os dois vícios dos cretenses:
mentira e preguiça. As mais desfechadas mentiras que nunca se ouviram nem
imaginaram. A mentira, filha primogênita do ócio. A proposição de Davi. O
juízo temerário. A língua, a fera mais dificultosa de enfrear.
Ora, eu me pus
a especular a causa por que o clima e o céu desta terra influi tanta mentira,
e parece-me que achei a causa verdadeira e natural. Assim como o céu com uma
virtude influi outra virtude, assim o clima, que também se chama céu, com um
vício influi outro vício. Ponhamos o exemplo na verdade, que é a virtude
contrária da mentira: Veritas de terra orta est (Sl 8, 12), diz Davi: A
verdade nasceu da terra. - E logo advertiu que a terra de que falava não era
toda a terra, senão a sua: Et terra nostra dabit fructum suum
(11). Mas donde lhe veio aquela terra - que era a de
Promissão - donde veio uma virtude tão singular no mundo, que nascesse dela
a verdade? O mesmo profeta o disse: Veritas de terra orta est, et justitia de
coelo prospexit
(12).
Toda esta virtude da terra veio-lhe do céu. Influiu o céu na terra a justiça,
e nasceu nela a verdade. A verdade é filha legítima da justiça, porque a
justiça dá a cada um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a
verdade, ao contrário da mentira. A mentira, ou vos tira o que tendes, ou vos
dá o que não tendes; ou vos rouba, ou vos condena. A verdade não: a cada um
dá o seu, como a justiça. E porque o céu influiu naquela terra a justiça,
por isso influiu e nasceu nela a verdade. Influiu uma virtude, e nasceu outra.
O mesmo passa
nos vícios. Se o clima influi soberba, nasce a inveja; se influi gula, nasce
a luxúria; se influi cobiça, nasce a avareza; se influi ira, nasce a vingança.
E para nascer a mentira, que é o que influi? Ociosidade. Onde o clima influi
ócio, dá-se a mentira a perder. Nasce, cresce, espiga, e de um não-sei-quê,
tamanho como um grão de trigo, podeis colher mentiras aos alqueires. Estes são
os dois vícios do Maranhão, e estas as duas influências deste clima - ócio
e mentira. - O ócio é a primeira influência, a mentira a segunda; o ócio a
causa, a mentira o efeito. Não há terra no mundo que mais incline ao ócio
ou à preguiça, como vós dizeis, e esta é a semente de que nasce tão má
erva. Ouvi a S. Paulo. Fala o apóstolo da Ilha de Creta, que é a Cândia,
que hoje vai conquistando o turco, e diz assim : Cretenses semper mendaces,
ventres pigri (13): os cretenses têm
dois vícios, que sempre se acham neles: mentirosos e preguiçosos. Pudera
dizer mais, se falara da nossa ilha, e de toda esta terra? Digam-no os
naturais. Nem a sua diligência nem a sua verdade o pode negar. Não há gente
mais mentirosa nem mais preguiçosa no mundo. Deitados na sua rede: Ventres
pigri; ouvidos nas suas palavras: semper mendaces. Mas como estas virtudes vêem
do céu, como são influências do clima, pegaram-se também aos portugueses.
Falta a verdade, porque sobeja a ociosidade. Dai-me vós homens ociosos, que
eu vo-los darei mentirosos. E se não, vamos ao Evangelho.
As mais
desfechadas mentiras, que nunca se ouviram nem imaginaram, foram as que hoje
lhe disseram a Cristo na cara os escribas e fariseus, pelas quais o mesmo
Senhor lhes chamou mentirosos: Ero similis vobis, mendax (Jo 8, 55). Disseram
que era samaritano e endemoninhado. E não só o disseram esta vez, como
advertiu Orígenes, mas assim o diziam publicamente; Nonne bene dicimus nos,
quia samaritanus es tu, et daemonium habes (14)
? E notai o que disseram mais abaixo: Nunc cognovimus, quia samaritanus est
tu, et daemonium habes (Jo 8, 52): (15).
Agora conhecemos que és samaritano e endemonhinhado. - Pois, se agora o
conhecestes, como o dizíeis dantes? Porque os mentirosos dizem as coisas
antes de as saberem. Mas, tornemos à substância da mentira. Cristo lançava
os demônios de todos os corpos, e eles chamam-lhe endemoninhado; Cristo era
galileu natural de Nazaré, e chamam-lhe samaritano. E se o diziam pela religião
e pelos costumes, os samaritanos eram idólatras e apóstatas da lei, e Cristo
era o legislador e reformador dela. Estas eram as mentiras que diziam os
escribas e fariseus. E o povo, que dizia? Dizia a verdade: que Cristo era um
grande profeta, que era o Rei prometido de Israel, que era o Messias. Pois, se
o povo simples e sem letras conhecia e dizia a verdade, os escribas e
fariseus, que se prezavam de sábios, como cuidavam e diziam tão desatinadas
mentiras? Porque os escribas e fariseus era gente abastada e ociosa, e o povo
não. Ide-lhe ver as mãos, achar-lhas-eis cheias de calos. Quem trabalha,
trata da sua vida; quem está ocioso, trata das alheias. Quem trabalha, como
cuida no que faz, fala verdade, porque diz as coisas como são. O ocioso, como
não tem que fazer, mente, porque diz o que imagina.
Esta é a razão
por que a mentira é filha primogênita do ócio. Vede como se forma dentro em
vós mesmos este monstruoso parto. Quem está ocioso não tem mais que fazer
que pôr-se a imaginar; da ociosidade nasce a imaginação, da imaginação a
suspeita, da suspeita a mentira. É a imaginação no ocioso como a serpente
de Eva. Estava ociosa Eva no paraíso, entrou a serpente coleando-se
mansamente sem pés, mas com cabeça; começou pela especulação, e acabou
pela mentira. Começou pela especulação: Cur praecepit vobis Deus (16);
e acabou pela mentira, e duas mentiras: Nequaquam moriemini: eritis sicut dii (17).
Consentiu Eva na mentira peçonhenta: de Eva passou a Adão, de Adão ao gênero
humano. Não sucede assim às mentiras imaginadas, que vós, como bicho da
seda, gerastes dentro em vós mesmos, fabricando de vossas entranhas a
mortalha para vós e o vestido para os outros? Meterá a língua a tesoura; e
sem tomar as medidas à verdade, vós lhes cortareis de vestir. Por que
cuidais que se dizem tantas coisas mal feitas? Por que se fizeram? Não, que a
mim me consta do contrário. É porque se imaginaram; e tanto que vieram à
imaginação, já estão na prancha da língua.
Que bem o disse
Davi: Tota die iniquitatem cogitavit lingua tua (Sl 51, 4): Todo o dia a vossa
língua estava cuidando e imaginando maldades (18).
Tota die: todo o dia. Vede se era ocioso aquele de quem falava Davi: todo o
dia não tinha outra coisa que fazer. E que fazia? Estava a sua língua
cuidando e imaginando maldades. Não sei se reparais na impropriedade das
palavras. O cuidar, o imaginar, é obra do entendimento, não é da língua: a
língua fala, o entendimento imagina. Pois, se a imaginação está no
entendimento, como diz Davi que estes fabricadores de maldades imaginavam com
a língua: Tota die iniquitatem cogitavit lingua tua? Falou Davi com esta que
parece impropriedade, para declarar com toda a propriedade o que queria dizer.
Não diz que imagina com a língua, porque a língua imagine, que isso não
pode ser; mas diz que imaginam com a língua, por duas razões: primeira,
porque a sua língua não diz o que é senão o que imagina; segunda, porque
quanto lhes vem à imaginação, logo o põe na língua. O mesmo Davi:
Cogitaverunt et locuti sunt iniquitatem (19):
Em imaginando a maldade, logo a dizem, sem outra causa para a dizerem mais que
a sua maldade, sem outro fundamento mais que a sua imaginação. Por isso lhes
chama o profeta verba praecipitationis (20),
tão precipitados em afirmar quanto imaginam sem consideração, sem advertência,
sem reparo, sem escrúpulo, sem temor de Deus, sem meter espaço nem fazer
diferença entre o imaginar e o dizer, como se tiveram a imaginação na língua,
ou a língua na imaginação, como se a língua fôra a que imagina, ou a
imaginação a que fala: Cogitavit injustitiam lingua tua. Quantas vezes se
diz do honrado e da honrada, do inocente e da inocente o que nunca lhes passou
pela imaginação? Mas basta que o maldizente o imagine ou o queira imaginar,
para o pôr na conversação e na praça, e o afirmar com tanta certeza, como
se o lêra em um Evangelho. Deus nos livre de tais línguas, e muito mais de
tais imaginações, porque se a vossa honra lhes entrou na imaginação,
nenhum remédio tendes: não há de parar aí, há de passar à língua:
Cogitaverunt, et locuti sunt (21).
Daqui
entendereis a razão de um notável preceito de Deus, que por uma parte parece
rigoroso, e, por outra, menos necessário. Proíbe Deus, sob pena de pecado
mortal e de inferno, que ninguém tenha juízo temerário do seu próximo. Juízo
temerário é cuidar eu e julgar mal de meu próximo dentro do meu pensamento.
Pois, se o meu juízo fica dentro do meu pensamento, e não sai fora, nem pode
fazer bem nem mal ao próximo, por que o proíbe Deus com tanta severidade?
Primeiramente notai e adverti quão estimada é, e quão delicada para com
Deus a honra e a reputação de cada um de nós. Nem cá dentro no meu
entendimento, nem cá dentro na minha imaginação quer Deus que estejais mal
reputado. Zela Deus e cia a vossa honra e a vossa reputação, até de mim
para comigo. Vede quanto ciará e sentirá que passe aos ouvidos, e ande pelas
bocas de uns e outros. Daqui nasce a razão por que Deus proíbe tão
rigorosamente os juízos temerários. Não quer que haja juízos temerários,
para que não haja falsos testemunhos. Os falsos testemunhos formam-se na língua:
os juízos temerários formam-se na imaginação; e como da imaginação à língua
há tão pouca distância, para que não haja falsos testemunhos na língua,
proíbe que não haja juízos temerários na imaginação. Não se contentou
Deus com meter o inferno entre a imaginação e a língua, com um preceito de
pecado mortal, mas meteu outra vez o inferno entre o entendimento e a imaginação,
para que com estes dois muros de fogo tivesse defendida a nossa honra das
nossas línguas. E, contudo, isto não basta. Por que? Porque em se passando a
primeira muralha, está vencida a segunda; em chegando à imaginação, já
está na língua: Cogitaverunt, et locuti sunt.
Senhores meus,
vivemos em uma terra muito ociosa, e por isso muito sujeita a imaginações.
Aqui se há de pôr o remédio. Diz o apóstolo S. Tiago que não há fera
mais dificultosa de enfrear que a língua. Para se pôr o freio na língua, hão-se
de meter as cabeçadas na imaginação. Nos vossos engenhos, para que não
corra a levada, pondes o resisto no açude. O primeiro a quem mentis é a vós.
Não mentiram as línguas a todos se as imaginações não mentiram a cada um.
Aqui é que se há de pôr o resisto. Jó, que conhecia muito bem a simpatia
das potências com os sentidos, dizia: Pepigi faedus cum oculis meis, ut ne
cogitarem de virgine (22): Fiz
concerto com os meus olhos, para estar seguro dos meus pensamentos. -
Concertai-vos com os vossos pensamentos, se quereis estar seguro das vossas línguas.
Mas porque dais entrada a quanto quereis no pensamento, por isso dizeis tantas
coisas que nunca passaram pelo pensamento.
§ IV
Quantas voltas
dão as palavras desde a boca até os ouvidos. O exemplo dos apóstolos. Os
que ouvem pelos ouvidos e os que ouvem pelos corações. O que ouviram Moisés
e Josué ao descer do Sinai. As mentiras e as formas do fundidor. O notável
artifício com que a natureza formou os nossos ouvidos. Como saíram torcidas
da boca dos fariseus as palavras de Cristo. A quimera e a mentira. A primeira
mentira que no mundo se disse foi feita de duas verdades. As falsas
testemunhas diante de Pilatos.
Vejo que estão
agora alguns no auditório mui contentes, dizendo consigo que isto não fala
com eles, porque é verdade que não são mudos, e que quando se acham em
conversação também falam nas vidas alheias; mas que não são homens que
digam o que imaginam: dizem o que ouvem, e quem diz o que ouve não mente.
Ora, estai comigo. Se vós soubéreis quantas voltas dão as palavras desde a
boca até os ouvidos, não houvéreis de dizer isso, ainda que foreis mui
verdadeiros. Quero-vos pôr o exemplo na melhor boca e nos melhores ouvidos do
mundo. Perguntou S. Pedro a Cristo que havia de ser de S. João. Respondeu o
Senhor: Sic eum volo manere (Jo 21, 22): Quero que fique assim. - Isto é o
que Cristo disse. E os apóstolos que disseram? Exiit sermo inter fratres,
quod discipulus ille non moritur: Começaram a dizer uns com os outros que S.
João não havia de morrer. - E acrescenta o Evangelista: Et non dixit Jesus
non moritur, sed sic eum volo manere (Jo 21, 23): E Cristo não disse que ele
não havia de morrer, senão que queria que ficasse assim. - Pois, se Cristo o
não disse, como o disseram os apóstolos? Eles é certo que não quiseram
dizer uma coisa por outra, mas desde a boca aos ouvidos são tantas as voltas
que dão as palavras, ou no que soam, ou no que significam, que o que na boca
de Cristo é ficar, nos ouvidos dos apóstolos é não morrer. Não podia
haver nem melhor boca que a de Cristo, nem melhores ouvidos que os dos apóstolos;
e se entre o dizer de tal boca e o perceber de tais ouvidos sucedem estas
contradições, que será quando a boca não é de Cristo, e quando os ouvidos
não são de S. Pedro nem de S. João? Quantas vezes vos disseram uma coisa e
percebestes outra? Quantas vezes ouvis o que não ouvis? Quantas vezes entre a
boca do outro e os nossos ouvidos ficou a honra alheia pendurada por um fio? E
queira Deus que não ficasse enforcada. Isto acontece quando os homens ouvem
com os ouvidos; mas quando ouvem com os corações, ainda é muito pior. E os
corações também ouvem? Nunca vistes corações? Os corações também têm
orelhas, e estai certos que cada um ouve, não conforme tem os ouvidos, senão
conforme tem o coração e a inclinação.
Enquanto Moisés
estava no Monte Sinai recebendo a lei de Deus, pediram os judeus a Arão que
lhes fundisse um bezerro de ouro. E como era o primeiro dia da dedicação
daquela imagem, celebraram-no eles com grandes festas. Desce do monte Moisés
com Josué, ouviram as vozes ao longe: disse Moisés: - Eu ouço cantar a
coros; - disse Josué: - Não é senão tumulto de guerra (Êx 32, 18). Aqui
temos choros castrorum (23). Se as
vozes eram as mesmas, como a um parecem música e a outro parecem trombetas? A
razão é clara. Moisés era religioso, Josué era soldado: ao religioso,
parecem-lhe as vozes do côro; ao soldado, de guerra. Cada um ouve conforme o
seu coração e a sua inclinação. Deus nos livre de um coração mal
inclinado. Se ouvir um Te Deum laudamus há de dizer que ouviu uma carta de
excomunhão. Os que ouvem são os ouvidos, mas os que ouvem bem ou mal são os
corações. Tudo o que entra pelo ouvido faz eco no coração, e conforme está
disposto o coração, assim se formam os ecos. Ainda vos hei de declarar isto
com outra comparação mais própria. Na fundição de Arão a temos.
Quer um
fundidor formar uma imagem. Suponhamos que é de S. Bartolomeu com o seu diabo
aos pés. Que faz para isto? Faz duas formas de barro, uma do santo e outra do
diabo, e deixa aberto um ouvido em cada uma. Depois disto derrete o seu metal
em um forno, e, tanto que está derretido e preparado, abre a boca ao forno,
corre o metal, entra por seus canais no ouvido de cada forma, e em uma sai uma
imagem de S. Bartolomeu muito formosa, noutra uma figura do diabo, tão feia
como ele. Pois, valha-me Deus, que diferença é esta? O metal era o mesmo, a
boca por onde saiu a mesma, e, entrando por um ouvido faz um santo, entrando
por outro ouvido faz um diabo? Sim, que não está a coisa nos ouvidos, senão
nas formas que estão lá dentro. Onde estava a forma do diabo, saiu um diabo;
onde estava a forma do santo, saiu um santo. Senhores meus, todos os nossos
ouvidos vão a dar lá dentro em uma forma, que é o coração. Se o coração
é forma do santo, tudo o que entra pelo ouvido é santo; se é forma do
diabo, tudo o que entra pelo ouvido é diabólico.
Querei-lo ver?
Olhai para o nosso Evangelho. Disse Cristo aos escribas e fariseus: Ego
honorifico Patrem meum (Jo 8, 49): Eu honro a meu Pai: Ego non quaero gloriam
meam (ibid. 50): Eu não busco a minha glória: Si quis sermonem meum
servaverit, mortem non videbit in aeternum (ibid. 51 ): Se alguém guardar os
meus preceitos, viverá eternamente. - Ouvidas estas palavras, quem não
diria, quando menos, que era um santo quem as dizia, principalmente tendo
provado a sua doutrina com tantos milagres? E os escribas e fariseus que
disseram? Nunc cognovimus quia daemonium habes (ibid. 52): Agora conhecemos
que trazes dentro em ti o demônio. - Pois, também de umas palavras tão
santas e tão divinas formam estes homens um conceito tão diabólico? Sim,
também, porque tais eram as formas em que receberam o que lhes entrou pelos
ouvidos. Aqueles malditos homens eram filhos do diabo, como Cristo lhes disse
nesta mesma ocasião: Vos ex patre diabolo estis (24)
- e de uns corações diabólicos, de umas formas endemoninhadas, ainda que o
metal fosse tão divino, que havia de sair senão um demônio: daemonium habes?
Isto sucedeu às palavras de Cristo, para que vejamos o que pode suceder às
demais. É verdade que as formas não são todas umas. Assim como sai um diabo
e outro diabo, pode sair também um S. Bartolomeu; mas, ainda assim, o melhor
é não entrar por ouvidos de homens, posto que as formas não sejam do diabo,
senão do santo, porque se a forma é do diabo, ficais diabo, e se é de S.
Bartolomeu, ficais esfolado. Ninguém passou pelos dois estreitos da boca e
ouvidos humanos que não deixasse neles, quando menos, a pele.
Notável é o
artifício, com que a natureza formou os nossos ouvidos. Cada ouvido é um
caracol, e de matéria que tem sua dureza. E como as palavras entram passadas
pelo oco deste parafuso, não é muito que quando saem pela boca, saiam
torcidas. Tornemos às de Cristo hoje. Disse o Senhor aos seus ouvintes:
Abraham exsultavit ut videret diem meum vidit, et gavisus est (Jo 8, 56): Abraão
desejou ver minha vinda ao mundo, viu-a, e alegrou-se. - Isto é o que entrou
pelos ouvidos dos escribas e fariseus. E que é o que saiu pelas bocas?
Quinquaginta annos nondum habes, et Abraham vidisti (Jo 8, 57 )? Ainda não
tens cinqüenta anos, e viste Abraão? - Vede como saíram torcidas as
palavras dos ouvidos à boca. Cristo disse que Abraão vira a ele, e os
fariseus dizem que dissera que ele vira a Abraão: Et Abraham vidisti. Assim
torceram o nome, e mais o verbo. Ao nome mudaram-lhe o caso, e ao verbo a
pessoa. Cristo disse o nome em nominativo, e eles puseram-no em acusativo;
Cristo disse o verbo na terceira pessoa, e eles puseram-no na segunda. De
Abraham vidit, formaram Abraham vidisti. Eis aqui como saem as palavras dos
ouvidos à boca, torcidas e retorcidas: torcidos os nomes, torcidos os verbos,
torcidas as pessoas; torcidos os casos. Então dizeis que dissestes o que
ouvistes.
Mais sucede
nesta passagem dos ouvidos à boca. Como os ouvidos são dois, e a boca uma,
sucede que, entrando pelos ouvidos duas verdades, sai pela boca uma mentira.
Parece coisa de trejeito, mas é tão certa, que a primeira mentira que se
disse no mundo foi desta casta: uma mentira feita de duas verdades. Antes que
vo-la diga, quero-vos mostrar como isto pode ser. Quando quereis dizer que
fulano é grande mentiroso, dizeis que é uma quimera. Mas que coisa é
quimera? Mui poucos de vós deveis de o saber. Quimera é um animal fingido,
composto de dois animais verdadeiros: um monstro, meio homem, meio cavalo, é
quimera; um monstro, meio águia, meio serpente, é quimera; um monstro, meio
leão, meio peixe, é quimera; mas não há tais monstros nem tais quimeras no
mundo. De maneira que as ametades são verdadeiras; os todos, ou monstros que
delas se compõem, são fingidos. As ametades são verdadeiras, porque há
homem e cavalo, há águia e serpente, há leão e peixe; os monstros que se
compõem destas ametades são fingidos, porque não há tal coisa no mundo.
Isto mesmo fazem os mentirosos: partem duas verdades pelo meio, e, sem mudar
nem acrescentar nada ao que dissestes, de duas verdades partidas fazem uma
mentira inteira. Tal foi a mentira que disse o diabo a nossos primeiros pais,
e foi a primeira mentira que no mundo se disse: Cur praecepit vobis Deus, ut
non comederetis de omni ligno paradisi (Gên 3, 1 ) ? Por que vos mandou Deus
- diz o diabo a Eva - que de todas as árvores, quantas há no paraíso, não
comêsseis? - Há tal mentira como esta? E foi feita de duas verdades. Deus
deu a nossos primeiros pais uma permissão e um preceito: a permissão foi:
comei de todas as árvores; o preceito foi: não comais desta árvore. E que
fez o diabo? Do comei de todas as árvores, tomou o de todas as árvores, e do
não comais desta árvore, tomou o não comais, e, ajuntando o não comais com
o de todas as árvores, disse que mandara Deus que de todas as árvores não
comessem. Pode haver maior mentira? Pois foi grudada de duas verdades.
Defendei-vos lá agora das vossas mentiras, com dizer que dissestes as mesmas
palavras que ouvistes e que não acrescentastes nada. Que importa que não
acrescenteis, se diminuístes? Pior é uma verdade diminuída, que uma mentira
mui declarada, porque a verdade diminuída na essência é mentira, e tem aparências
de verdade; e mentiras que parecem verdades são as piores mentiras de todas.
Mas por que
acabemos de uma vez com as mentiras de ouvidas, para que seja mentira o que
dizeis, não é necessário que oiçais mal nem que diminuais ou acrescenteis
o que ouvistes: pode um homem dizer pontualmente o que ouviu, e ouvir
pontualmente o que disseram, e com tudo isso mentir. Quando os judeus acusaram
a Cristo diante de Pilatos, buscavam diversos falsos testemunhos, e nenhum
concluía. Ultimamente, diz o Evangelista que vieram duas testemunhas falsas,
as quais disseram que ouviram dizer a Cristo que, se o Templo de Jerusalém se
desfizesse, ele o reedificaria em três dias. Para inteligência deste
testemunho havemos de saber que, entrando Cristo no Templo de Jerusalém, e
achando que nele estavam comprando e vendendo, fez um azorrague das cordas que
ali estavam, e a açoites lançou fora os que compravam e vendiam. Espantados
eles da resolução de Cristo, disseram que lhes desse algum sinal do poder
com que fazia aquilo. Respondeu o Senhor: Solvite templum hoc, et in tribus
diebus excitabo illud (25). Pois,
se Cristo disse, derribai o Templo, e em três dias o levantarei, e eles
testemunharam o que lhe ouviram, como eram testemunhas falsas: Venerunt duo
falsi testes (26)? O Evangelista o
declarou: Ille autem dicebat de templo corporis sui (Jo 2, 21 ): Falava do
templo do seu corpo - o qual templo o Senhor excitou três dias depois de
derrubado, que foi no dia da ressurreição. E como Cristo disse aquelas
palavras em um sentido, e eles as referiram em outro, ainda que as palavras
eram as mesmas que tinham ouvido, sem mudar, nem acrescentar, nem diminuir, as
testemunhas eram falsas. Cuidais que para mentir e para dizer testemunhos
falsos é necessário mudar, diminuir ou acrescentar as palavras que ouvistes?
Não é necessário nada disso: basta mudar-lhes o sentido, ou a intenção,
ainda que as não entendais, porque haveis supor que as podem ter, e mais
quando as pessoas são tais - como era a de Cristo - que podem falar com mistério.
Quantas vezes se dizem as palavras sinceramente com uma tenção muito sã, e
vós as interpretais e corrompeis de maneira que de um louvor fazeis um
agravo, de uma confiança uma injúria, de uma galantaria uma blasfêmia, e de
uma graça levantais uma tal labareda, que se originaram dela muitas desgraças.
E se isto sucede quando os homens dizem o que ouviram, e só o que ouviram,
que será quando dizem o que imaginaram, e o que sonharam, ou que ninguém
imaginou nem sonhou?
§V
A mentira dos
olhos. Quais toram as coisas de que se formou o engano dos moabitas na
campanha contra os reis de Israel. O cego do Evangelho. O que aconteceu aos
cegos vigiadores, que vão estudar de noite o que hão de rezar de dia. O
negrume das nuvens e da água.
Também contra
este segundo discurso há quem cuide que está adargado. Dizem alguns, ou diz
algum: não sou eu daqueles, porque a mim nunca me saiu pela boca coisa que me
entrasse pelos ouvidos: para afirmar, hei de ver com os olhos primeiro; e se
para isso for necessário que os olhos não durmam quarenta noites, estando
vigiando a uma esquina, hei-o de fazer sem descansar, até ver averiguada a
minha suspeita. Ah! ronda do inferno! Ah! sentinela de Satanás! Este mesmo,
se lhe mandar o confessor que faça exame de consciência meio quarto de hora
antes de se deitar, não o há de poder fazer com o sono. Mas, para destruir
honras, para abrasar casas, estará feito um Argos quarenta noites inteiras. Não
cuidem, porém, estes malignos vigiadores, que por aí se livrarão de
mentirosos. Fostes, vigiastes, observastes, vistes, dissestes, e tendes para vós
que falastes verdade? Pois mentistes muito grande mentira. Os olhos mentem de
dia, quanto mais de noite. Grande caso! No Livro quarto dos Reis, capítulo
terceiro ( 4 Rs 3, 22) : Saíram em campanha contra os moabitas el-rei de
Israel, el-rei de Judá e el-rei de Edon. Estavam ainda os exércitos para dar
batalha na manhã seguinte: eis que, ao romper do sol, olharam os moabitas
para os arraiais dos inimigos, e viram que pelo meio deles corria um rio de
sangue. Começaram a aclamar com grande alegria: - Sangue, sangue, sem dúvida
que os três reis pelejaram esta noite entre si, e mataram-se uns aos outros:
vamos a recolher os despojos. - Saíram os moabitas correndo tumultuariamente;
mas eles foram os despojados e os vencidos, porque o sangue que viram, ou se
lhes afigurou que viram, não era sangue. Foi o caso que passava um rio por
meio dos arraiais dos três reis, e como ao sair do sol feriram os raios na água
que ia correndo, fez tais reflexos a luz, que parecia sangue. E esta aparência
de sangue, tão enganosamente visto, e tão falsa, e tão facilmente crido,
foi o que precipitou aos moabitas, e os levou a meterem-se nas mãos de seus
inimigos. Se reparais no caso, as duas coisas mais claras que há no mundo é
o sol e a água. Os nossos provérbios o dizem: Claro como a água, claro como
a luz do sol. E quais foram as coisas de que se formou aquele engano nos olhos
dos moabitas, com que cuidaram que o rio era sangue? Uma coisa foi o sol, e
outra coisa foi a água: o sol, porque feriu com seus raios as águas, e as águas
porque, feridas, deram com os reflexos aparências de sangue. De sorte que se
enganaram os olhos nas duas coisas mais claras que há no mundo. Pois, se os
olhos se enganam nas coisas mais claras, como se não enganarão nas mais
escuras, e às escuras? De dia, engana-vos o sol, e, de noite, quereis-vos
desenganar com as trevas?
Dir-me-eis que
havia lua e estrelas quando vistes. Essa pequena luz é a que cega mais,
porque faz que umas coisas pareçam outras. Trouxeram um cego a Cristo,
pos-lhe o Senhor as mãos nos olhos, e perguntou-lhe se via? Respondeu o cego:
Video homines velut arbores ambulantes (Mar 8, 24): Senhor, vejo os homens
como árvores que andam. - Mais cego estava agora este cego que dantes, porque
dantes não via nada, agora via umas coisas por outras. Os homens que são de
tão diferente figura e estatura, via-os como árvores, e as árvores que estão
presas com raízes na terra, via que andavam como homens. Eis aqui o que tem
ver com pouca luz. O mesmo acontece a estes cegos vigiadores, que vão estudar
de noite o que hão de rezar de dia: Video homines velut arbores ambulantes. O
cego de Cristo, figurava-se-lhe que os homens eram árvores, e estes cegos do
diabo, figura-se-lhes que as árvores são homens. Põem-se a espreitar, veem
uma árvore em um quintal: eis lá vai um homem. A árvore está tão pregada
pelas raízes que dois cavadores a não arrancarão em um dia, e ele há de
jurar aos Santos Evangelhos, que viu entrar e sair aquele vulto; arbores
ambulantes. Oh! maldito ofício! oh! infernal curiosidade! Já se os olhos
levarem alguma nuvenzinha, como sempre levam, ou de desconfiança, ou de ódio,
ou de inveja, ou de suspeita, ou de vingança, ou de outra qualquer paixão, aí
vos gabo eu: Tenebrosa aqua in nubibus aeris (27).
Notou Davi admiravelmente que a água nas nuvens é negra. Vedes lá vir um
aguaceiro escuro mais que a mesma noite: que negrume é aquele? Não é mais
que água e nuvem: a nuvem é um volante, a água é um cristal; e destes dois
ingredientes tão puros e tão diáfanos se faz uma escuridade tão negra e tão
espessa. Se quem vai vigiar e espreitar a vossa vida e a vossa honra levar
alguma nuvem diante dos olhos, ainda que seja tão delgada como um volante,
por mais que a vossa vida e a vossa honra seja tão clara e tão pura como um
cristal, há-lhe de parecer escura e tenebrosa: Tenebrosa aqua in nubibus
aeris. Finalmente, reduzindo todo o discurso, ou discursos: mentem as línguas,
porque mentem as imaginações; mentem as línguas, porque mentem os ouvidos;
mentem as línguas, porque mentem os olhos; e mentem as línguas, porque tudo
mente, e todos mentem.
§ VI
A consolação
e a desafronta da mentira. Bem-aventurados vós, quando os homens disserem
todo o mal de vós, mentindo. A razão por que Cristo, quando o diabo o nomeou
por Filho de Deus, lhe mandou que calasse. O engano e a falsa suposição em
que estão os que não tem prática interior da terra. A confissão dos falsos
testemunhos.
Tenho acabado
de provar a matéria que propus. Mas parece-me que estais dizendo - como disse
no princípio - que tenho dito muitas afrontas à vossa terra. Porém eu digo
- como também prometi - que antes a tenho desafrontado. E senão, pergunto:
Qual vos está melhor: que seja verdade o que se diz, ou que sejam mentiras? Não
há dúvida que vos está melhor que sejam mentiras. Pois isto é o que eu
tenho dito. Se fora verdade o que se diz, era grande afronta vossa; mas, como
tenho mostrado que tudo são mentiras, ficais todos muito honrados.Hoje vos
restituí vossa honra, porque provei que mentem todos os que dizem mal de vós.
Vós bem sabeis melhor que eu que tudo são mentiras; mas eu tomei por minha
conta este manifesto por amor dos forasteiros que me ouvem, que não são práticos
nos costumes da terra. Dos apóstolos de Cristo se diziam e se haviam de dizer
muitos males, porque é uso do mundo dizer mal dos bons. E o Senhor, para os
desafrontar e animar disse-lhes esta divina sentença: Beati eritis cum
maledixerint vobis homines, et dixerint omne malum adversum vos mentientes (Mt
5, 11): Bem-aventurados vós, quando os homens disserem todo o mal de vós
mentientes: mentindo. Nesta palavra está a consolação e a desafronta. Se os
homens dizem mal, falando verdade, é grande desgraça; mas se eles dizem mal
mentientes: mentindo, não importa nada. Por isso disse, e quero que saibam
todos, que o que nesta terra se diz são mentiras. O mentiroso conhecido há
de se entender às avessas; e entendido às avessas, nem afronta, nem mente,
porque diz verdade. E assim haveis de entender tudo o que ouvis. Guarde-vos
Deus de que o mentiroso diga bem de vós, porque é sinal que sois o contrário
do que ele diz. Essa foi a razão porque Cristo, quando o diabo o nomeou por
Filho de Deus, lhe mandou que calasse, porque, como o diabo é pai da mentira,
em dizer que era Filho de Deus dizia que o não era. E esse foi também o modo
geral com que o mesmo Senhor hoje se desafrontou de todas as injúrias que os
escribas e fariseus lhe tinham dito, qualificando-os por mentirosos: Ero
similis vobis, mendax. (28)
É verdade que
os forasteiros a quem eu prego esta doutrina fazem um terrível argumento
contra a nossa terra. Chegam a este porto, põem os pés em terra, e, ouvindo
dizer mal de todos e de tudo, fazem este discurso: Ou estes homens mentem, ou
falam a verdade; se falam verdade, esta é a mais má terra de todo o mundo,
pois, nela se cometem tantas maldades; e se mentem também a terra é muito má,
pois os homens tem tão pouca consciência, que levantam tantos falsos
testemunhos. - Este é o argumento que parece não tem fácil solução. Mas
eu respondo a uma e outra parte dele. Quanto à primeira, digo que as maldades
que se dizem são falsas, e que, como falsas, não se devem crer. São falsas?
- insta a outra parte - logo onde os homens levantam tantos falsos
testemunhos, não pode ser senão a pior terra do mundo. Eis aí o engano e a
falsa suposição em que estão os que não têm prática interior da terra.
No Maranhão é verdade que há muitas mentiras, mas mentirosos, isso não;
muito falso testemunho, sim, mas quem levante falso testemunho, por nenhum
caso. Pois, como pode isto ser? Como pode ser que haja falsos testemunhos, sem
haver quem os levante? Eu vo-lo direi. Nas outras terras os homens levantam os
falsos testemunhos; nesta terra os falsos testemunhos levantam-se a si mesmos.
Se vos parece dificultosa a proposição, vamos à prova. Confessa-se um
homem, e, chegando ao quinto mandamento, diz: Padre, acuso-me que eu desejei a
morte a um homem, e o busquei para o matar, e propus de lhe fazer todo o mal
que pudesse. - E por quê? - Porque me tirou a minha honra com um falso
testemunho de que eu estava tão inocente como S. Francisco. - Irmão,
perdoai-lhe, para que Deus vos perdoe. - Passamos adiante, chegamos ao oitavo
mandamento: - Levantastes algum falso testemunho? - Não, Padre, pecado é de
que nunca me acusei, seja Deus louvado. - Vem uma mulher, chega ao quinto:
Digo a Deus minha culpa, que eu há tantos meses que tenho ódio a uma mulher,
e roguei-lhe muitas pragas, que a fala e a confissão lhe faltasse na hora da
morte, e que nem nesta vida nem na outra lhe perdoava; que seus filhos visse
ela mortos diante de si a estocadas frias. - Por quê? - Porque me levantou um
aleive a mim e a uma filha minha, com que nos infamou em toda esta terra, e não
me atrevo a lhe perdoar. - Ora, senhora, estamos em Quaresma; alguma coisa
havemos de fazer por amor de um Deus que padeceu tantas afrontas e se pôs em
uma cruz por amor de nós. - Enfim, compungiu-se, prometeu de perdoar. Chega o
confessor ao oitavo mandamento. - E vossa mercê levantou algum falso
testemunho? - Senhor padre, melhor estréia me dê Deus: muito grande pecadora
sou, mas nunca Deus permita que eu diga das pessoas o que nelas não há; se
ouço alguma coisa, ajudo também, mas levantar falso testemunho, nunca em
minha vida o fiz. - Isto que aqui vos pus em dois, acontece infinitas vezes.
De maneira que no quinto todos se queixam que lhes levantam falsos
testemunhos; no oitavo ninguém se acusa de levantar falso testemunho. Logo,
bem dizia eu que nesta terra os falsos testemunhos se levantam a si mesmos. Em
suma, que temos aqui os pecados, mas não temos os pecadores: temos os falsos
testemunhos, mas não temos as falsas testemunhas. Isto é o que posso cuidar.
Mas, se acaso é o contrário, miseráveis daqueles que assim vivem! Grande
miséria é que os falsos testemunhos se levantem; mas maior miséria é, que,
depois de levantados, se faça deles tão pouco caso e tão pouco escrúpulo.
Ou deixais de confessar o falso testemunho, conhecendo que o levantastes ou não
o conhecendo: se o deixastes de confessar conhecendo-o, mentis a Deus; se o
deixais de confessar pelo não conhecer, mentis-vos a vós. E uma e outra
cegueira, é bem merecido castigo: que minta a Deus e que se minta a si mesmo,
quem mentiu tão gravemente contra seu próximo, e que de um ou de outro modo
se vá ao inferno!
§ VII
Aborrecer a
mentira não só por consciência mas por conveniência. Quantas mentiras se
dirão cada dia no Maranhão? Quantas cabem a cada casa? O pecado que mais
facilmente se comete e com mais dificuldade se restitui. Exortação.
Senhores meus,
se algum sermão não tinha necessidade de exortação era este. Só vos digo,
como a homens e como a cristãos, que não só por consciência, mas por
conveniência se deve aborrecer a mentira e amar a verdade. Por conveniência,
porque viveis em uma terra muito pequena. Em toda a parte fazem muito mal as
mentiras, mas nas terras grandes têm saca e têm muito por onde se espalhar;
nas terras pequenas, todas ali ficam. Em Lisboa muita mentira se diz, mas
repartem-se as mentiras por todo o reino e por todo o mundo. Chegou navio de
Levante, fala-se nas guerras do turco, nas do veneziano, nas do tártaro, nas
do polaco; fala-se no Papa, nos cardeais, nos outros príncipes e potentados
de Itália: dizem-se muitas mentiras, mas repartem-se; umas caem em
Constantinopla, outras em Veneza, outras em Roma, outras na Toscana, Sabóia,
etc. Vem navio do Norte, fala-se em el-rei de França, no imperador, no sueco,
no parlamento de Inglaterra, nos Estados de Holanda e Flandres: dizem-se
muitas mentiras, mas repartem-se, por Paris, por Londres, por Viena de Áustria,
por Amsterdam, por Estocolmo, etc. Partem também os nossos correios todos os
sábados, e levam grande cópia das mentiras por todo o reino e o mesmo é das
frotas do Brasil e da Índia; porém as mentiras do Maranhão não têm nem
outra parte donde vir nem outra parte para onde ir: aqui nascem e aqui ficam;
e quando as mentiras todas ficam na terra, e todas vos caem em casa, ainda por
conveniência e razão de estado as haveis de lançar fora. E se não,
fazei-me por curiosidade duas contas, as quais eu agora não posso fazer. Uma
é: quantas mentiras se dirão cada dia no Maranhão? A outra: quantas casas há
nesta cidade, e logo reparti as mentiras, e vereis quantas cabem a cada casa!
E que será em uma semana, que será em um mês, que será em um ano?
Pois, se tudo
isto vos fica em casa, e é força que assim seja, não é muito pouca razão
de estado, e muito grande sem-razão, que vos andeis levantando falsos
testemunhos, que vos andeis infamando e afrontando uns aos outros? Não fora
muito melhor serdes todos muito amigos, muito conformes, amardes-vos todos,
honrardes-vos todos, autorizardes-vos todos, e poupardes todos desgostos? Há
outros pecados que parece que os pode desculpar o gosto ou o interesse; mas o
mentir e o levantar falso testemunho? Que dão a um homem por mentir? Que
gosto se pode ter em levantar um falso testemunho? Se é por me vingar de meu
inimigo, muito maior mal me faço a mim que a ele, porque a ele, quando muito,
tiro-lhe a honra: a mim condeno-me a alma. Ora, cristãos, por reverência
daquele Senhor - que sendo Deus se preza de se chamar Verdade - que façamos
hoje uma muito firme e muito verdadeira resolução de não haver paixão
nenhuma, nem respeito, nem interesse que vos faça torcer nem faltar um ponto
à verdade; quanto ao passado, que examinemos muito devagar e muito
escrupulosamente se temos faltado à verdade em alguma coisa, principalmente
em matéria da honra de nossos próximos. Olhai, senhores, que este, este é o
pecado que mais facilmente se comete, e com mais dificuldade se restitui.
Olhai, cristãos, que as balanças em que se pesam as consciências na outra
vida são muito delicadas, e que será grande desgraça ir ao inferno para
sempre por um falso testemunho. O remédio está em uma consciência muito bem
examinada, em uma confissão muito bem feita, e em uma satisfação muito
verdadeira, advertindo-vos e protestando-vos da parte de Deus, que sem estas
três condições, nem nesta vida podeis alcançar a graça, nem na outra
merecer a glória.
(1)Se
disser que o não conheço serei como vós, mentiroso (Jo 8,55)
(2)
Se eu vos digo a verdade (Jo 8, 46).
(3)
Serei como vós, mentiroso (Jo 8, 55).
(4)
Por ocasião do teu grande poder se convencerão de mentira os teus inimigos (Sl
65, 3).
(5)
Se eu vos digo a verdade, por que me não credes (Jo 8; 46)?
(6)
Tu és um samaritano, e tens o demônio (Jo 8, 48).
(7)
Não dizemos nós bem (Jo 8, 48)?
(8)
Eu dou honra a meu Pai, e vós a mim desonrastes-me (Jo 8, 49).
(9)
Se disser que o não conheço, serei como vós, mentiroso (Jo 8, 55).
(10)
A moeda corrente nesta terra são novelos de fio de algodão.
(*)
Roma.
(11)
E a nossa terra produzirá o seu fruto (Sl 84, 13).
(12)
A verdade nasceu da terra, e a justiça olhou desde o céu (Sl 84, 12).
(13)
Os de Creta sempre são mentirosos, ventres preguiçosos (Tit 1, 12).
(14)
Não dizemos nós bem que tu és um samaritano e que tens demônio (Jo 8, 48)?
(15)
A Vulgata (Jo 8, 52) traz apenas: Nunc cognovimus quia daemonium habes.
(16)
Por que vos mandou Deus (Gên 3, 1)?
(17)
Bem podeis estar seguros que não morrereis de morte: sereis como uns deuses (Gên
3, 4 s).
(18)
A Vulgata traz injustitiam e não iniquitatem (Sl 51, 4).
(19)
Cogitaram e falaram iniqüidade (Sl 72, 8).
(20)
Palavras de precipitação (Sl 51, 6).
(21)
Cogitaram, e falaram (Sl 72, 8).
(22)
Fiz concêrto com os meus olhos de certamente não cogitar nem ainda em uma
virgem (Jó 31, 1).
(23)
Coros de música no campo dos exércitos (Cânt 7, 1)
(24)
Vós sois filhos do diabo (Jo 8, 44).
(25)
Desfazei este templo, e eu o levantarei em três dias (Jo 2, 19).
(26)
Chegaram duas testemunhas falsas (Mt 26, 60).
(27)
Água tenebrosa nas nuvens do ar (Sl 17, 12).
(28)
Serei semelhante a vós, mentiroso (Jo 8, 55).