Quinta, 23 de janeiro de 2014
“O cyberbullying é democrático, atinge todas as classes sociais”. Entrevista especial com Maria Tereza Maldonado
“Diferente do bullying tradicional, no cyberbullying,
como a plateia é instantânea e gigantesca, às vezes um único ataque tem
efeitos esmagadores”, alerta a psicóloga.
Foto: stopchildbullying.org |
Com a portabilidade dos dispositivos eletrônicos e as facilidades de
acesso à internet, a vida de crianças e jovens da nova geração torna-se
cada vez mais conectada. Bastam alguns cliques e uma mensagem ou foto
pode ganhar a rede, espalhando-se espontaneamente por milhares de
usuários. Neste contexto, de acordo com a psicóloga Maria Tereza Maldonado, mais do que nunca é preciso estar atento e tomar alguns cuidados.
“Na medida em que a tecnologia avançou, a crueldade online passou a
se fazer presente”, relata ela. Ainda que faça parte da vida destas
pessoas, a relação com a internet ainda é uma novidade, que gera muita
confusão. “As pessoas acreditam que podem difamar e falar coisas
horrorosas a respeito de outras pessoas por ter direito à liberdade de
expressão. O próprio anonimato na rede ou a possibilidade de criar
perfis falsos influenciou na noção de respeito.”
Estas facilidades levaram também para o ambiente da web um problema constantemente enfrentado no dia a dia: o bullying. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Maldonado explora as consequências do bullying e do cyberbullying tanto para a vítima como para o agressor, as motivações para a autoexposição na rede e os cuidados necessários na relação segurança x privacidade do jovem.
Maria Tereza Maldonado é graduada em Psicologia pela PUC-Rio
e possui mestrado em Psicologia Clínica pela mesma universidade.
Atualmente atua como consultora e palestrante. Desde 2010 utiliza também
a música para sintetizar a mensagem de suas palestras. Figura constante
em diversos programas de TV, possui 37 livros publicados, entre os
quais destacam-se Bullying e cyberbullying – o que fazemos com o que fazem conosco? (São Paulo: Moderna, 2011) e A Face Oculta - Uma História de Bullying e Cyberbullying (São Paulo: Saraiva, 2009).
Confira a entrevista.
Foto: Divulgação |
IHU On-Line - Que dados são disponíveis sobre a incidência de bullying e de cyberbullying na sociedade brasileira?
Maria Tereza Maldonado – Há uma grande pesquisa da ONG Plan Brasil (www.plan.org.br) que mostra o aumento da incidência do bullying e do cyberbullying no Brasil. Especialmente do cyberbullying,
pois, na medida em que a tecnologia avançou, a crueldade online passou a
se fazer presente. Há também uma confusão de conceitos, como, por
exemplo, o da “liberdade de expressão”. As pessoas acreditam que podem
difamar e falar coisas horrorosas a respeito de outras pessoas alegando o
direito à liberdade de expressão. O próprio anonimato na rede ou a
possibilidade de criar perfis falsos influenciou na noção de respeito ao
outro. Muitos pensam que podem falar sobre o que não gostaram da
maneira que desejarem, por vezes de modo totalmente desrespeitoso. Esses
conceitos são muito confundidos, principalmente por quem faz os ataques
do cyberbullying.
IHU On-Line - Nesta praça pública que é o ambiente virtual, é
possível pensar que o cyberbullying é uma extensão da agressão cometida
na escola? Ou a face oculta do agressor pode nada ter a ver com este
espaço?
Maria Tereza Maldonado – O cyberbullying é o bullying feito através dos meios tecnológicos. Isso mexeu muito com o conceito do próprio bullying,
que inicialmente era definido como um padrão sistemático de agressão
entre pares no ambiente escolar. Isso causa muita confusão, pois muitas
famílias procuram as escolas alegando que seu filho está sofrendo bullying
porque um colega dele o empurrou, ou o chamou de idiota. Se isso é um
episódio isolado, é uma agressão, mas não constitui padrão de bullying.
Com o tempo, os autores começaram a observar que o bullying não se restringe à escola.
É, antes de tudo, um padrão de agressão de maneira sistemática,
proposital, em uma relação desigual de poder em que uma pessoa vai
ameaçar, intimidar, humilhar, constranger outra pessoa para demonstração
de poder ou para obter ganhos materiais — como na questão da chantagem.
Assim, os autores perceberam que este padrão também existiria na
relação entre irmãos, por exemplo, ou na relação de pessoas no mesmo
condomínio ou até mesmo no trabalho — um conceito traduzido
anteriormente como assédio moral. Tanto que muitos autores passaram a
falar em bullying no local de trabalho.
Esse conceito veio sendo ampliado até o ponto em que, no cyberbullying, eu posso ser alvo de ataques
tanto de uma pessoa conhecida ou não. Se eu reproduzo um ataque porque o
recebi de um amigo que está ofendendo um colega dele, eu sou coautor
deste cyberbullying. No entanto, eu não conheço a
pessoa atacada, conheço apenas a que repassou o ataque para mim. Em uma
agressão tecnológica, muitas vezes não se conhece o alvo, mas se ataca
assim mesmo. Outra diferença é quanto ao padrão de sistematização dos
ataques. Diferente do bullying tradicional, no cyberbullying,
como a plateia é instantânea e gigantesca, às vezes um único ataque tem
efeitos esmagadores. Então isso também mexeu com a definição. Não
precisa ser repetitivo e sistemático, basta apenas a repercussão de uma
única ação.
IHU On-Line - Na internet há ainda o fenômeno da cauda longa, em que uma postagem continua ganhando mais e mais repercussão conforme o tempo passa.
Maria Tereza Maldonado – Não sai nunca mais. Se você altera e faz montagem em uma foto, se cria uma comunidade ou grupo “eu odeio fulano” — como na época do Orkut —, se faz uma campanha pela rede social, isso fica rodando e não sai mais. A reverberação desse ataque continua para sempre.
IHU On-Line - Quais são os tipos mais comuns de cyberbullying?
Maria Tereza Maldonado – São as mensagens
difamatórias e as fotos íntimas. Um namorado que recebe um fora,
primeiro, fica chateado, depois, esse sentimento se torna raiva, ódio e
desejo de vingança. Movido por isso, ele pode expor alguma foto ou vídeo
de sexo da época do namoro. Este é um ataque extremamente comum, de
pessoas cuja relação acabou e restou apenas a mágoa. A outra forma
frequente são os ataques difamatórios, o ato de caluniar uma pessoa,
falar coisas horrorosas sobre ela e espalhar pela rede, o que também
causa um prejuízo considerável.
IHU On-Line - Acompanhando as redes sociais, podem-se
observar muitas páginas de humor que se apropriam de postagens de jovens
e usam aquilo para chacoteá-los. Isso leva a um bullying massivo, pois
estas páginas geralmente têm milhares de seguidores...
Maria Tereza Maldonado - Exatamente. Então a
vingança por uma relação desfeita ou então a raiva ou o ódio levam à
calúnia, à difamação, a prejudicar a imagem da outra pessoa.
IHU On-Line - Você falou sobre a exposição de fotos íntimas. O
uso não controlado do ambiente virtual aliado à descoberta da
sexualidade leva a um momento-chave para o jovem. Muitas jovens têm suas
fotos e vídeos íntimos expostos na internet por falta de segurança
digital, por invasão de contas ou mesmo pela questão da vingança, mas há
também muitos casos de exibicionismo via webcam. A própria pessoa se
expõe e isso acaba sendo prejudicial no futuro. O que leva uma jovem a
expor sua intimidade desta maneira?
Maria Tereza Maldonado – Novamente, uma confusão de
conceitos. Nós estamos vivendo uma era de pouca valorização da
privacidade do próprio corpo ou da própria pessoa. É a era dos reality
shows, em que você exibe a sua privacidade em público. Assim muitas
jovens, adolescentes, não medem as consequências. Não pensam que isso
pode perdurar, se desdobrar em situações que vão prejudicá-las no
futuro. Então elas mostram seu corpo, fazem selfies e as colocam na rede
em poses íntimas e sensuais. A noção da autoproteção, a noção dos
riscos que correm com esta superexposição, isso fica muito diluído. E
muitas pessoas acabam incorrendo nestas situações. Por isso é tão
importante que a família e a escola
possam fazer este trabalho em conjunto, de alertar para a questão dos
riscos, para a questão da autoproteção e também do respeito ao outro.
IHU On-Line – E a questão da portabilidade? Temos notebooks,
tablets, smartphones, podemos levá-los a qualquer lugar. Há relação
entre o grau de exposição e a plataforma usada pelo jovem? Em quais
redes as agressões são facilitadas justamente por esta portabilidade?
Maria Tereza Maldonado – Isso é um problema sério
para as famílias. A dificuldade de acompanhar a vida online dos filhos
por conta dessas múltiplas possibilidades das redes sociais, dos
comunicadores instantâneos, postagem de fotos, esta série de coisas.
Realmente não há como colocar filtros em tudo. Então é necessária muita
conversa sobre estas questões, comentar notícias que saem nos jornais
sobre o que está acontecendo em termos de cibercrimes, em relação à
consequência da exposição de fotos, alertar que o cyberbullying
é crime, que os menores de idade também sofrerão consequências se forem
pegos e que o anonimato na rede é relativo. São vários os temas de
conversa que as famílias e as escolas precisam ter. Por isso é tão
importante a parceria família—escola,
para promover a alfabetização digital, para falar sobre a questão da
ética digital, da ética dos relacionamentos no mundo digital, que abre
possibilidades maravilhosas, mas, por outro lado, abre riscos imensos
também.
IHU On-Line - Ao mesmo tempo que a tecnologia permite a
exposição, ela também gera alternativas para este problema. Softwares
com soluções de gerenciamento familiar, por exemplo, permitem que o pai
acompanhe o tempo que o filho navega na internet, quais aplicativos está
abrindo e com quem está conversando (no pc, tablet ou smartphone). Como
conciliar a segurança e a orientação com a privacidade que o jovem
necessita?
Maria Tereza Maldonado – A questão que precisa ficar
bem clara na conversa familiar é a seguinte: os pais são legal e
amorosamente responsáveis pelos seus filhos. A liberdade é uma conquista
progressiva, que precisa vir junto com a capacidade do autocuidado.
Assim como o pai ou a mãe não largam sozinho o filho de dez anos em um
lugar completamente desconhecido, não pode largar completamente na praça
pública do ciberespaço uma criança ou um adolescente. Então é preciso
que haja esclarecimentos: haverá um acompanhamento, sim, haverá
conversas a respeito disso, sim, porque não se pode deixar o filho
completamente solto. A questão da liberdade, da privacidade, vai até o
limite do cuidado e do acompanhamento necessários para que as crianças e
os adolescentes cresçam com algum tipo de proteção necessária e
indispensável.
IHU On-Line - A partir de que momento e por meio de que
sinais de maturidade é possível diminuir este tipo de controle e deixar o
filho completamente livre para navegar?
Maria Tereza Maldonado – À medida que o
comportamento do dia a dia desses filhos e as conversas familiares forem
mostrando que eles podem cuidar bem de si mesmos e, portanto, não
precisam de tanto acompanhamento. Assim, esse acompanhamento pode ir
diminuindo progressivamente.
Não é uma questão de idade. Há pessoas de 30 anos que estão caindo em
armadilhas e estão correndo riscos impressionantes sem se dar conta
disso. E há pessoas de 14, 15 anos que estão sabendo cuidar melhor de si
próprias. É uma questão de conversa familiar e de observação atenta com
relação ao crescimento dos filhos e à capacidade deles de cuidar de si
próprios e de respeitar os outros também.
IHU On-Line – Um novo fenômeno que vem surgindo é o do autobullying, em que as próprias pessoas criam perfis fakes para se diminuírem. De onde vem este desejo de se autoagredir?
Maria Tereza Maldonado – Essa é mais uma questão da
dificuldade de conceito. Diminuir, intimidar, ameaçar as outras pessoas;
achar que é uma brincadeira criar um perfil para fazer isso consigo
própria... Mas essa noção do que é uma brincadeira saudável, do que é um
instrumento de autoagressão, ou de agressão aos outros, deve ser melhor
trabalhada.
IHU On-Line - Quais são as consequências psicológicas deste
tipo de violência para a vítima? E para o agressor? Que tipo de sujeito é
constituído a partir desta relação de agressão impune?
Maria Tereza Maldonado - Você falou em A Face Oculta, que é o título de um dos meus livros. Outro livro meu é Bullying e cyberbullying
- O que fazemos com o que fazem conosco?, um livro teórico para pais,
educadores e adolescentes. Eu coloquei esse título justamente para
marcar bem essa questão de que os efeitos para quem sofre o bullying e para quem o pratica são muito diferentes dependendo das pessoas.
Em primeiro lugar quem sofre e quem pratica não são características
distantes. A gente trabalha sempre tendo em mente a rede de
relacionamentos. Quem pratica bullying hoje já pode ter sofrido bullying
ou vir a sofrer. Quem está como plateia, observando como plateia omissa
ou como plateia participadora, também pode vir a sofrer ou praticar.
Se uma pessoa sofre bullying, o que ela vai fazer
com isso? Ela poderá reforçar os seus mecanismos de autoproteção; poderá
ampliar a sua capacidade de assertividade para dizer “eu não quero ser
tratada dessa forma”, e conseguir parar a ação de quem está praticando
isso com ela; ou poderá se afundar em uma depressão, ou ficar fechada e
querer ficar invisível para não ser mais alvo de ataque. Enfim, há uma
gama de possíveis reações dessa pessoa.
Quem pratica poderá acentuar essa falta de respeito e de percepção do
outro, achar que ela tem direito de fazer tudo o que quiser e bem
entender, e se esse padrão se cristalizar como adulto essa pessoa estará
mais propensa a praticar atos de calúnias, injúrias e difamações, ou de
ser uma pessoa que faz agressões dentro dos próprios círculos de
relacionamento afetivo.
Outra possibilidade é ela se dar conta de que o que está fazendo é
uma falta de respeito ao outro, e que isso não é brincadeira coisa
nenhuma. Brincadeira é quando todo mundo se diverte; quando alguém se
diverte humilhando o outro, isso não é brincadeira, é agressão. Então a
pessoa que era líder dessa agressão poderá usar as suas capacidades de
liderança de uma maneira mais benéfica do que dessa forma. Portanto, as
reações são variáveis, depende do que fazemos com o que fazem conosco.
IHU On-Line - As pessoas hoje estão conectadas o tempo inteiro à internet. Não seria um equívoco considerar que existe uma vida real e outra virtual, quando uma tem consequências sobre a outra?
Maria Tereza Maldonado - A questão é que a pessoa que faz ataque de cyberbullying
é uma pessoa superinibida no contato pessoal, que não aparece, mas
quando está na internet ela deixa transparecer a “face oculta”. Da mesma
forma uma pessoa pode ser muito tímida nos relacionamentos, e no
relacionamento virtual ela se solta. Nós temos várias facetas dentro do
nosso ser, umas aparecem mais explicitamente e outras não.
IHU On-Line - O cyberbullying atinge que perfil de pessoas de
forma mais intensa? É possível compreendê-lo de maneiras diferentes a
partir de diferentes idades e classes sociais?
Maria Tereza Maldonado - O ataque de cyberbullying
geralmente é muito massacrante, mas, de novo, é o que fazemos com o que
fazem conosco. Independente de faixa etária ou classe social, é como a
pessoa vai lidar com aquela questão, se vai também se tornar um
agressor, se vai se afundar na história ou se vai ver que este é um
alerta de que precisa se proteger melhor, que não deve aceitar todo
mundo na sua rede social, enfim, o que vai se desdobrar na vida dela a
partir daquela situação que ocorreu. O bullying, assim como o cyberbullying, é democrático, atinge todas as pessoas, em todas as classes sociais.
(Por Andriolli Costa e Luciano Gallas