Ingratos!
29 de janeiro de 2014 | 2h 07
Roberto Romano* - O Estado de S.Paulo
Ao falar sobre defeitos e virtudes humanos, Spinoza
afirma que "só os homens livres têm reciprocamente, uns para com os
outros, o mais alto reconhecimento" (Ética). Quando, sob pressão
oficial, a um povo é subtraída a escolha efetiva, torna-se uma perigosa
crueldade dele exigir gratidão pelos feitos dos governantes. A lição foi
dada a Spinoza por Maquiavel.
Os palácios brasileiros, movidos pela propaganda, tentam coibir a
oposição e a crítica usando a chantagem orçamentária ou abusando da
força física. Acostumada à demagogia que, desde Vargas, lhe rende uma
legitimidade de encomenda, a cortesania não aceita que o povo,
presumidamente beneficiado por suas administrações, recuse praticar as
zumbaias e os rapapés tão comuns nos gabinetes. Com muitos eleitores
ainda funciona o "é dando que se recebe". Mas graças às formas de
comunicação como a internet, tal prática se atenua a olhos vistos. O
controle face a face, tradicional no Brasil, perde terreno para formas
coletivas de trato entre mandatários e cidadania. Exigir gratidão pelo
favor recebido mostra pleno anacronismo e sinaliza uma tendência
reacionária dos governantes.
Segundo entoam os atuais ocupantes do poder federal, imitados por
seus bajuladores, vivemos sob um governo de esquerda. Toda crítica aos
dirigentes é vista como atentado ao processo revolucionário que habita a
alma dos líderes e militantes, mas é invisível aos seres humanos
comuns. Quem está a par da teoria leninista conhece a distinção lógica
entre o bom proletário e a massa apegada às reivindicações "puramente
econômicas" (aumento de salário, condições de consumo, etc). O primeiro
sacrifica tudo, até a vida, em favor do socialismo. A segunda só
chegaria à lucidez sob o guante dos intelectuais (a consciência vinda de
fora...) e do partido. Sem tal obediência o trabalhador é visto como
inimigo pelos apparatchiks. Se for grato e adiar suas reclamações
financeiras ou políticas, ele é reconhecido pelo Estado, recebe medalhas
como digno êmulo de Alexei Stakhanov. Com semelhante domesticação se
construiu o poder estatal na pátria do socialismo.
Ainda hoje, na mente de muitos líderes nominalmente de esquerda e
modernizadores, a massa popular tem apenas o direito de ser tangida
pelos iluminados que, em seu nome, a conduzem rumo ao melhor dos mundos
possíveis. Josef Stalin, num retrocesso histórico à guisa de realismo
político, retomou com mão de ferro os ritos czaristas para impor os seus
planos à plebe ignara (leia-se O Homem, o Capital Mais Precioso). Nos
governantes brasileiros de agora se afirma o mesmo sestro contrário à
soberania popular.
Em comícios, Luiz Inácio da Silva repreende a massa e define quem
deve ser por ela enaltecido ou excomungado. Na faina de controlar os
adeptos e com abuso do cajado no pastoreio, chegou ao ponto sublime no
enunciado (com sotaque do Antigo Regime) de que José Sarney não é um
cidadão comum. A populaça levanta-se contra o patrimonialismo maranhense
porque, imagina o Grande Líder, ignora o saber político. Ela precisa
aprender históricas lições de realismo tendo em vista a governabilidade,
ou seja, a grata obediência ao oligarca. Outra cena caricata e trágica
de retorno ao passado ocorreu nos jardins da casa de Paulo Maluf num
abraço que apunhalou a própria elite esquerdista.
O dono do partido considera a política pública que, desde o Plano
Real, incluiu no mercado milhões de brasileiros um favor devido à sua
pessoa. Stalin regrediu ao período monárquico, unindo a honraria de ser
"pai do povo" (título comum aos reis europeus antes da Revolução
Francesa) ao populismo sem peias. Herdeiro da cultura política imposta
pelo absolutismo português, o Brasil jamais aniquilou a prática do
favor, da clientela, da suposta gratidão dos pobres diante dos
"benfeitores". Tais costumes vêm da República Romana, que jamais foi
democrata. Nela a fé pública dependia do rico que mantinha a plebe na
abjeta dependência. O favor prestado pelo patrão era retribuído
agradecidamente pelo favor do voto. Como a soberania popular era um mito
a ser respeitado, embora desobedecido, mesmo o aristocrata que
concorria aos cargos era obrigado a pedir o voto dos clientes como se
fosse um beneficium.
O eufemismo ainda encobre o controle político. Poucos (fora os
ditadores que se atribuíram o título de Benefactor, como Anastasio
Somoza) ousam exigir "gratidão" das massas por suas benfeitorias, reais
ou imaginárias. Gilberto Carvalho, secretário da Presidência, rompeu a
barreira das formas decorosas ao evidenciar o seu estado de espírito em
face das manifestações populares (que ameaçam retornar em ano
eleitoral). Em junho de 2013, confessa ele, "houve quase que um
sentimento de ingratidão, de dizer: 'fizemos tanto por essa gente e
agora eles se levantam contra nós'". O lapso revela muito da alma
governista.
Temos, ademais, notícias de preparo das Forças Armadas e da polícia
para a próxima Copa do Mundo. No manual repressivo com normas para o uso
da força física pelos agentes oficiais (o Ministério da Defesa prepara
uma edição mais branda, para inglês ler) o inimigo é o povo ingrato.
Este não amadureceu o bastante para reconhecer os benefícios trazidos
pelos patrões do Planalto. A fala do ministro evidencia: se houve ideal
modernizante em sua grei, ele foi sepultado na vala do realismo
político.
De tanto se unir aos oligarcas que forçam seus eleitores a ver como
"um favor" as obras públicas e os recursos arrancados do campo federal,
os governistas os mimetizam. Nunca antes neste país os nhonhôs foram tão
gratos aos que habitam os palácios. A palavra "esquerda" é folha de
parreira que encobre uma prática que deveria, se exibida na TV, ser
proibida aos menores de idade. "Ah, sai daí", senhor ministro!
*Roberto Romano é professor da Universidade Estadual de Campinas e autor de 'O Caldeirão de Medeia' (Perspectiva).