sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Unicamp perde Eustáquio Gomes

Unicamp perde
Eustáquio Gomes

31/01/2014 - 10:24


 

É com incomensurável tristeza que a Assessoria de Comunicação e Imprensa (Ascom) da Unicamp noticia o falecimento do jornalista e escritor Eustáquio Gomes, enquanto dormia, nesta sexta-feira, 31. Todos da Ascom, especialmente, e todos da Unicamp que tiveram a sorte de conhecer sua generosidade, talento e competência, já vinham sentindo a sua falta desde que ele teve uma rica trajetória abalada por problemas de saúde. Ainda não há notícias de velório de Eustáquio Gomes e horário de sepultamento.

Eustáquio Gomes implantou a Ascom em 1982 e, salvo um breve hiato, comandou o trabalho de interface entre a Unicamp e a mídia externa, respondendo também pelo Jornal da Unicamp e pelo conteúdo noticioso do Portal da Unicamp, até março de 2012. Em dezembro, foi homenageado em sua residência com o título de Servidor Emérito da Universidade, proposta aprovada por unanimidade pelo Conselho Universitário (Consu).

Nascido no povoado de Campo Alegre (MG) em 1952, o filho de lavradores contou com a ajuda de amigos para realizar seus primeiros estudos, formando-se depois em jornalismo pela PUC-Campinas e tornando-se mestre em letras pela Unicamp. Trabalhou em jornais do interior, principalmente nos diários de Campinas, tendo atuado também nas áreas de comunicação das empresas Bosch do Brasil e White Martins. Como colaborador regular do campineiro Correio Popular, publicou cerca de 800 crônicas, além de reportagens especiais, entrevistas culturais e outros textos.

O escritor Eustáquio Gomes é autor do romance A Febre Amorosa (1994), possivelmente seu livro mais conhecido, adaptado para o teatro em 1996 e traduzido para o russo em 2005. Ao todo, ele produziu 16 obras, entre elas: Cavalo Inundado (poemas, 1975), Mulher que Virou Canoa (contos, 1978), Os Jogos de Junho (novela, 1982), Hemingway: sete encontros com o leão (ensaio biográfico, 1984), Jonas Blau (romance, 1986), Ensaios Mínimos (ensaios, 1988) e Os Rapazes d’a Onda e Outros Rapazes (ensaio, 1992).

Para a comunidade acadêmica, em particular, Eustáquio Gomes escreveu O mandarim: história da infância da Unicamp (biografia, 2006), contando como foram os primeiros anos da vida da Universidade, a partir do levantamento de documentos históricos e do depoimento de personagens que ajudaram a construir a instituição.

Por ocasião do título de Servidor Emérito, seu filho, Leandro Gomes, declarou: “É notória sua admiração pela Unicamp e pelas pessoas que a integram. Ele sempre ressalta o quanto aprendeu com a diversidade de ideias e conhecimentos que circulam no meio universitário e com os quais teve contato ao longo dos anos. Este reconhecimento por parte da instituição à qual consagrou parte significativa da sua vida é uma grande honra para meu pai e nossa família, coroando uma carreira dedicada à divulgação da Universidade e do conhecimento nela produzido”.

Pausa para o Almoço
Clayton Levy

Na hora do almoço, ele passa na minha sala e seguimos de carro para uma cantina próxima à Universidade. Durante a refeição, ele conta os sonhos da noite anterior. Impressiona-me sua facilidade para achar o significado de cada vivência onírica. Aprendeu isso com Jung, de quem se tornou admirador. Também acostumou-se a anotar os sonhos assim que abre os olhos, quando as imagens ainda estão frescas na memória. Até pouco tempo, vinha colhendo material para um novo livro cujo título, a princípio, seria Sonhos Constelados.

Entre uma garfada e outra, a conversa muda de rumo. Agora falamos sobre a morte. Não de um jeito tétrico, mas com a naturalidade que o assunto pede. Uma de suas preocupações é saber se poderá continuar escrevendo. Outra é saber se no além haverá bibliotecas, pois sem bibliotecas nem o paraíso valeria a pena. Tudo isso porque, entre outras coisas, mesmo depois de morto, não pretende interromper o hábito de escrever diários.

Essa coisa de diários vem de longe. É um jeito de “filtrar os venenos” do cotidiano. Boa parte dos livros que publicou, 16 ao todo, nasceram desses manuscritos íntimos. Até pouco tempo ainda registrava tudo a mão. Um dia abriu o armário e mostrou-me mais de 20 cadernos recheados de anotações. O segredo está em não banalizar o dia a dia. Miudezas opacas ganham brilho após ser banhadas na riqueza intelectual de seus neurônios. Personagens apagados emergem do anonimato de um jeito que jamais foram vistos.

A conversa dá mais algumas voltas, e ele agora fala do passado. Atravessou parte da infância num seminário, mas desistiu da vida eclesiástica a tempo de tornar-se escritor. No início, temeu que Deus punisse a falta mandando-o para o inferno. Mas depois, ao saber que o inferno estava cheio de escritores, passou a olhar o problema com outros olhos. Afinal, se já estavam aceitando essa gente por lá, não devia ser tão mal assim. Conta-me essas histórias e ri do tom caricato com que descreve a si mesmo.

Depois do almoço, caminhamos até o sebo que fica ali perto. Ele adora sebos. Conhece todos os que há na cidade, bem como os inquilinos ilustres que habitam cada uma de suas prateleiras. Com paciência e generosidade, apresenta-me um a um: Kafka, Camus, Mann... Pode ter desistido do seminário, mas mantém uma relação religiosa com a literatura. É devoto de Machado de Assis.

Corre o dedo pelas lombadas e puxa um volume: O eu profundo e outros eus, de Fernando Pessoa. Abre uma página ao acaso e começa a ler em voz alta: “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, nunca foi senão príncipe, todos eles príncipes, na vida... Quem me dera ouvir de alguém a voz humana...” Dois estudantes param de conversar e olham com o rabo do olho. A gerente estica o pescoço para certificar-se do que está acontecendo.

Ele não dá bola e segue adiante: “...Quem me dera ouvir de alguém a voz humana, que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; que contasse, não uma violência, mas uma covardia! Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos...”

A essa altura, já há uma rodinha de curiosos ao nosso redor. Eu, que não sou escritor nem sei declamar, sinto que estou sobrando na cena. Tento esgueirar-me, sair de fininho, mas estou encurralado por pilhas de livros. A plateia entra numa expectativa muda, esperando o próximo ato. Ele se empolga:

“... Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado, podem ter sido traídos, mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, vil no sentido mesquinho e infame da vileza.”

Um dos estudantes começa a bater palmas. Os demais vão atrás. Aliviado, porém orgulhoso, sigo a plateia. Ele ajeita os óculos, fecha o volume e devolve-o à prateleira. Depois, dá uma risadinha sardônica e começamos a sair.  Lá fora, o ruído de um monomotor chama nossa atenção. Como num sonho, ganha altura, faz uma curva e some atrás das nuvens.

Clayton Levy é assessor-chefe da Assessoria de  Comunicação e Imprensa (Ascom) da Unicamp