quarta-feira, 15 de julho de 2009

Correio Popular de Campinas, 15/07/2009

Publicada em 15/7/2009


Mario Simas (final)

Roberto Romano

Grito de Justiça, livro de Mario Simas, ultrapassa as conjunturas políticas e históricas. O seu tema é a defesa dos direitos humanos, luta infinda e sempre necessária. Após a onda totalitária que desgraçou o mundo no século 20 e dos regimes ditatoriais na América do Sul, erra quem imagina ter desaparecido o sentimento de ódio instalado nas almas. Tal paixão, transmitida não raro de maneira subterrânea, silente, a cada instante é difundida na mídia e na internet. Pouco a pouco ele se instala em corpos e mentes jovens, na universidade ou em outras instituições estatais ou da sociedade civil.

Ainda ontem ouvi de um militar, em palestra por fim proferida, que “direitos humanos, só para quem é humano”. A mesma pessoa justifica a tortura, ao dizer que a sofrera em treinamentos. Visto que os inimigos podem usar o recurso, arrazoa, é preciso conhecer tal forma “técnica”. Assim, a unanimidade contra a tortura se transforma no seu contrário, em seu favor. Retorno triunfal ao fascismo ou às duas ditaduras que amordaçaram a consciência brasileira no século 20. Caiu G. W. Bush, vítima de sua própria política contra os direitos dos cidadãos e dos direito humanos. Seu conselheiro John Yoo ficou famoso pelo memorando (agosto de 2002) redigido para proclamar que os EUA não mais seriam uma república democrática, porque não valeria, naquelas terras, a separação dos poderes. Yoo afirma que o chefe de Estado não pode ser constitucionalmente impedido de ordenar a tortura, mesmo que o Congresso vote uma lei que a proíba. Se a Constituição, adianta Yoo, faz do presidente o “comandante em chefe”, nenhuma lei pode obstruir as ações empenhadas por ele na guerra. (David Cole, What Bush wants to hear, New York Review of Books, vol. 52, número 18, 17/11/2005, no endereço http://www.nybooks.com/articles/18431). O retorno ao fascismo (mesmo na maior democracia do mundo, antes da Segunda Guerra existiam admiradores de Hitler, cujos filhotes hoje integram comandos racistas, nas sarjetas e na internet) possibilita ler ou escutar coisas semelhantes, sem reação.

Como é possível notar, o livro de Mario Simas possui interesse permanente, porque levaremos milênios, talvez a eternidade, para superar o comportamento chamado, com enorme eufemismo, “a guerra de todos contra todos”. Nela, os indivíduos, grupos, sociedades, Estados não deixam de experimentar a verdade da frase terrível: homo homini lupus. A covardia do torturador prova o ponto.

Gritos de Justiça reúne um prefácio emocionante de Sobral Pinto (o advogado que alegou a lei de proteção aos animais, para conseguir proteção a um seu cliente famoso) e capítulos que narram a experiência de Simas nos tribunais. Dos operários metalúrgicos que defendeu de 1958 até 1975, ele avança para o processo dos professores da USP (Medicina) e vai aos desmandos praticados contra os professores da Filosofia (São José do Rio Preto). Dali, vai às acusações contra os sargentos e chega ao processo dos frades dominicanos. Depois surgem os tormentos vividos em relação à VPR, ao PCBR, ao PORT, ao POC, à APML, ao estudante Alexandre Vanucchi Leme. Conhecer o significado de tais siglas é tarefa histórica. Ler o escrito de Simas, é função da verdade histórica.

Cristão convicto, Simas foi eficaz auxiliar de dom Paulo Arns na Comissão de Justiça e Paz. Nela, ele batalhou pela vida de todos. Ao contrário de muitos operadores do direito que se intimidaram ou foram cúmplices da tirania, Simas exerceu o seu múnus com a coragem de leão.

A leitura de Gritos de Justiça, de Mario Simas, é antídoto contra a banalização da tortura; o retorno do nazifascismo; o apodrecimento das instituições democráticas no Executivo, Legislativo, Judiciário. Os pais prudentes devem colocar o livro ao alcance dos filhos e estes, se tiverem a vontade reta, muito aprenderão sobre o nosso passado. E este aprendizado poderá impedir que o pretérito volte. Caso contrário, fiquemos cientes: ele ampliará sem medida os tormentos vividos pelos pobres e fracos, a imensa maioria do planeta. Deus lhe agradeça, Mario Simas!