sábado, 18 de junho de 2011

Para Marta Bellini. A Venus Negra ? Não, senhor, era a Venus de bunda feia, para os machos da universidade francêsa. Ainda hoje, pouco mudou.

Há bom tempo, no seu livro sobre Diderot e o Materialismo Encantado, E. De Fontenay analisava criticamente a exposição, no Museu do Homem (!) em Paris, do esqueleto de Bartman, cortado de mil modos pelos olhares machistas, olhares "escalpelo". O filme vem indicar o quanto os machos do Ocidente são ferozes, covardes, sanguinários. Não sei quanto ao filme, mas o livro de Fontenay é um chute nas entranhas da "civilização cristã". Ah, para finalizar : Bartman era "propriedade" de um bispo anglicano, inglês. Depois foi vendida para espetáculos na polida França, a terra da "Liberdade, Igualdade, Fraternidade". E terminou nas vitrines "científicas" do Museu do Homem, o lugar certo, em cultura masculinizante. Rabisquei algumas coisas sobre o tema, também há bom tempo, no artigo "A mulher e a des-razão Ocidental"(in Roberto Romano, Lux in Tenebris, São Paulo, Unicamp Ed., 1985).

PS: os moralmente superiores "cientistas"machos da França não apelidaram Bartman como "Venus Negra"como sugere, com eufemismo, o repórter da Folha. Eles a chamaram "Venus esteatopígia"(Venus de bunda feia), comparando-a à Venus kalipígia (de bunda bonita), que está no Museu do Louvre. Eles, os "cientistas"seguiam a doutrina de Aristóteles (na Política), segundo a qual os povos do Norte eram valentes e burros e os do Oriente eram inteligentes e covardes. Homens, de fato, eram os gregos: inteligentes e valentes. O resto, bem, o resto, não era propriamente composto de homens. Agora, quanto às mulheres, pode-se concluir pela história de Bartman.

RR








São Paulo, sábado, 18 de junho de 2011





Cineasta recupera trágica exploração do corpo negro

"Vênus Negra" narra a história de africana exibida como fera na Europa

Abdellatif Kechiche, diretor do filme, diz que a obra reflete o olhar que os europeus lançam sobre os estrangeiros

ANA PAULA SOUSA
DE SÃO PAULO

Exibido pela primeira vez no Festival de Veneza, em 2010, "Vênus Negra" causou impacto na plateia cinéfila e majoritariamente branca.

Parte do público, concluídas as duas horas e 40 minutos de projeção, aplaudiu fortemente o filme. Parte, respirou com alívio: tinha acabado o sofrimento.
Para recuperar a tragédia de Saartjie Baartman, a Vênus do título, mulher que foi tirada da África no século 19 para fazer "espetáculos" na Europa, o diretor Abdellatif Kechiche colocou o espectador do século 21 no lugar dos espectadores da época.

O filme refaz, passo a passo, o curso da mulher que, pela diferença física, atraiu o olhar burguês. Exibida primeiro como fera e depois como "artista", Saartjie iniciou seu périplo em Londres e terminou a vida em Paris.

Nos salões de luxo e luxúria, tinha os seios apalpados pelos homens e o cabelo tocado pelas mulheres. Sua voz jamais era ouvida.

É sobretudo na reconstituição dos "espetáculos" feitos por esse corpo que se apoia a narrativa de "Vênus Negra". E foi a reiteração dessas cenas que motivou algumas críticas feitas a Kechiche em Veneza -apesar de os elogios prevalecerem.

Dois dias após a exibição do filme, o diretor conversou com a Folha. Era visível sua irritação com tais críticas. "Me assusta e me incomoda alguém achar que eu possa ter passado do limite. Não aceito que questionem minha liberdade."

Nascido na Tunísia e radicado na França, Kechiche, 50, participou de vários filmes como ator antes de estrear na direção. O cineasta interessou-se pela história quando, no ano 2000, a África do Sul pediu a reconstituição do corpo de Saartjie, que passara 200 anos num museu francês.

"Não se trata necessariamente de uma história do passado", diz. "Esse corpo foi exibido até o fim do século 20. E o que aconteceu com ela não me parece tão distante do terrível discurso de certos políticos franceses."

O cineasta se refere ao olhar que os europeus -e os franceses, em especial- depositam sobre os estrangeiros neste início de século.

"Proponho uma reflexão sobre nosso olhar não apenas sobre os outros, mas sobre as imagens que consumimos."

As cenas que Kechiche deseja entregar não apaziguam nem divertem. "O cinema pode apenas entreter. Mas eu acredito na força espiritual do cinema, acredito que podemos comunicar algumas coisas aos homens por meio dele", reitera.

Em "Vênus Negra", parte dessa força vem do rosto da atriz Yahima Torres, de origem cubana, que faz aqui sua estreia no cinema. "Seu rosto carrega toda a experiência, toda inteligência e todo o sofrimento pelo qual a Saartjie passou."

VÊNUS NEGRA

DIREÇÃO Abdellatif Kechiche
PRODUÇÃO França/Itália/, 2010
COM Yahima Torres, André Jacobs
ONDE nos cines Espaço Unibanco Pompeia, Frei Caneca e Reserva Cultural
CLASSIFICAÇÃO 16 anos