terça-feira, 13 de março de 2012

Entrevista antiga, ao Jornal do Advogado. A clepsidra brasileira segue lenta, para a democracia, rápida para a ditadura.



Jornal do Advogado, OAB Edição de Outubro de 2005



A estrutura do Estado brasileiro

Roberto Romano é filósofo, professor titular de ética e filosofia política da Unicamp (Universidade de Campinas), e autor, entre outras obras, de Moral e ciência : a monstruosidade no século 18 e Desafio do Islã e outros desafios.

Nesta entrevista ao Jornal do Advogado, Romano analisa a estrutura do Estado brasileiro e afirma que enquanto existir foro privilegiado para políticos não teremos uma verdadeira Repíblica.
O filósofo condena, veementemente, as invasões de escritórios de advocacia, que considera próprias dos regimes autoritários: "o respeito à profissão de advogado é uma espécie de indício da existência de democracia ou de autoritarismo".

P: A OAB lançou, no final de 2004, a Campanha Permanente em Defesa da República e da Democracia. Diante dos acontecimentos mais recentes, pode dizer-se que a República foi para o brejo?

RR: No sentido pleno da palavra, não temos, e nunca tivemos, República. Podemos dizer que o Poder Executivo herdou, de forma silenciosa, prerrogativas do poder moderador imperial. O Executivo, sem dúvida nenhuma, se coloca acima do Legislativo e do Judiciário. Isso explica o fato de, sempre que o governo não tem maioria no parlamento, interferir, oferecendo recursos para alcançar essa maioria. Aí chega noutro ponto: a concentração dos monopólios do Estado, que deveria ser distribuída pelos Três Poderes de uma forma harmônica e não é. O Estado tem o monopólio da força física, com a Polícia e o Exército, da norma jurídica, dos impostos. Esses três monopólios são desigualmente usados e controlados pelos Três Poderes. Então, o Poder Executivo concentra todos esses monopólios, o que faz com que ele tenha uma hegemonia sobre os outros poderes. Os deputados sabem que, se quiserem obter recursos para as suas regiões, ou batalham na oposição e correm o risco de nada conseguir, ou entregam seus votos para o Executivo.

P: Como foi na eleição do novo presidente da Câmara?

RR:Pois é. Nem pudor restou. O governo disse, e todo o mundo ficou sabendo, que o dinheiro liberado foi da ordem de R$ 700 milhões, e que esse foi um elemento essencial na escolha do senhor Aldo Rebelo. O que lhe retira muita legitimidade. Dificilmente ele poderá enfrentar o Poder Executivo. É uma situação que mostra como um dos poderes da República, o Legislativo, é, na verdade, um sub-poder. E o Judiciário, infelizmente, é cercado. Tivemos a reforma do Judiciário imposta a toque de caixa. Claro que as reformas são necessárias, mas a minha pergunta é: por que não a reforma do Executivo? Porque sempre são os outros poderes que devem ser reformados? Então, precisamos lutar para que a República real chegue o mais próximo possível da República definida formalmente na Constituição. Nesse ponto apóio totalmente a campanha da OAB. Nós somos uma República oligárquica, dirigida por partidos oligárquicos, sem o respeito mínimo ao conceito de igualdade, que é a essência da idéia de República.

P: Isso passa pela questão do foro privilegiado para os políticos?

RR: Claro. Enquanto existir foro privilegiado para político não tem República. Não posso aceitar que um regime seja dito republicano quando existem cidadãos de duas classes: uns de uma classe superior e os outros de uma classe inferior. Enquanto um deputado disser que se recusa a ser julgado por um juizinho de primeira instância não existe República. E o pior é que esses deputados são eleitos em processos republicanos, mas quando penetram no parlamento transformam-se em oligarcas. Porque aristocratas eles não são. São tudo, menos aristocratas. Eles são de um baixíssimo nível. Boa parte deles tem um nível de compromisso ético baixíssimo, só defendem os interesses pessoais e familiares. No máximo, defendem os interesses do seu partido. Então, é um fábrica de despotismo, de tirania.

P: A ética dos políticos continua sendo a do é dando que se recebe?

RR: É. E isso aí tem explicações históricas. Há uma superconcentração fiscal e os municípios não recebem em tempo certo a quantidade certa de recursos. Veja, no recente episódio da eleição do presidente da Câmara, no dia anterior tivemos, mais uma vez, uma marcha de prefeitos a Brasília para pedir recursos. Em qualquer país decente, o mais caro são as obras municipais: esgoto, água, estrada, hospital, escola etc. É a parte mais dura do orçamento. Bom, aqui os recursos vão todos para Brasília, para o Ministério da Fazenda, e depois são distribuídos de acordo com a adesão ao governo. Então, os municípios estão sempre à míngua. E essa é a grande fonte da corrupção. Temos prefeitos cobrados pela população para que façam as obras imediatamente. Eles cobram dos deputados federais, que cobram dos senadores, que cobram do ministro. Se não tiverem o poder da oligarquia, eles voltam aos seus municípios de mãos vazias. Então, os prefeitos vão cobrar dos seus deputados federais a venda do voto no parlamento, e eles, naturalmente, tenderão a apoiar o governo de plantão. Não podemos esquecer que metade dos nossos municípios não tem renda própria.



P:E há a Lei de Responsabilidade Fiscal...

RR: Pois é. Esse é outro aspecto. No final do mandato, esses prefeitos têm de se deparar com essa lei, que é uma das coisas mais esquisitas já produzidas. Pune-se um governante por ter avançado o sinal, do ponto de vista do orçamento, para atender às necessidades básicas do eleitor que paga impostos. Sim, é muito boa a responsabilidade fiscal, desde que a responsabilidade seja exercida em cima de recursos existentes. E quando os limites fixados na lei forem excedidos, é preciso saber se foram desviados para o bolso do prefeito ou se foram gastos em obras necessárias. A população não pergunta se há dinheiro, ela quer as obras.

P: Com um Congresso cheio de vícios como os que o senhor já apontou aqui, é prudente falar em reforma política agora?

RR: Não gosto de metáforas médicas, mas a idéia da reforma política a toque de caixa faz com que eu me permita usá-las. Temos um doente com câncer, com metástase, e aplicamos um belo esparadrapo. É disso que se trata. Essas coisas todas que têm vindo à tona nos últimos tempos deixaram um mal-estar no ar, parece que há um mal-estar coletivo. Com o Termidor, o fim da Revolução Francesa, retirou-se do espaço público a discussão sobre os valores. Esse ideal do cidadão honesto, virtuoso, que levou a excessos, no caso dos Jacobinos, essa imagem do republicano não existe mais na prática estatal, desde o golpe do Termidor. Essa história do Estado imperial centralizado no Executivo é uma herança do Termidor. O predomínio da economia sobre a ética, também. O cidadão virtuoso e obediente às leis era o melhor. Mais tarde, isso mudou e o melhor passou a ser o proprietário. Foi aí que mudou o eixo, quando o mercado passou a ser mais importante do que o cidadão. Os "valeriodutos" de hoje são consequências dessa tese. Quem é o elemento a quem o Estado deve prestar contas? À propriedade e ao mercado. De tal maneira que, hoje, a importância do mercado suplantou a do Estado. Vivemos, em termos mundiais, um momento em que as soberanias nacionais estão sendo questionadas, estão diminuindo enormemente, o que traz uma série de problemas para os operadores do Direito. Veja no campo dos direitos humanos e dos direitos trabalhistas. Há mais de 10 anos, juristas discutem situações que não são só ideais. Por exemplo, via internet, alguém que mora em Bombaim pode ser "empregado" de uma pessoa em Salvador, de outra em Nova Iorque (EUA) e de outra em Moscou (Rússia). Isso chegou a ser visto como uma maravilha por parte da imprensa. Mas, e quando essa pessoa ficar doente, envelhecer, quem vai garantir hospital, aposentadoria etc? Qual é a soberania que lhe garante a proteção à vida? Estamos numa fase absolutamente incerta, nebulosa, em relação a quem garante os direitos. Atualmente, está em pauta a necessidade de se discutir como se podem defender os direitos humanos dentro das grandes corporações. Porque elas são tão poderosas que, muitas vezes, as leis imperativas do Estado em que elas estão não funcionam dentro delas. Quem vai obrigar uma empresa a respeitar a individualidade, ou um grupo? Esse é um problema para o qual não existe resposta.

P:Então, nós vivemos numa era de transição?

RR: É uma onda planetária de mudança de paradigma. Isso é muito difícil de ser enfrentado. É assustador. A corrupção, por exemplo, tem de ter uma dimensão mundial, porque o Brasil não é campeão de corrupção, não. A Rússia tem problemas muito mais sérios . A Itália, não faz muito tempo, com a operação Mãos Limpas. Na Alemanha, o caixa dois. Agora mesmo, nos EUA, tem a denúncia de caixa dois. Então, essa missão não pode ser pensada apenas em termos nacionais.


P: O que o senhor pensa da proposta da universidade para todos?

RR: É o tipo da coisa que tem intenções interessantes e a realidade é desastrosa. Pergunto : se este governo tem índole democrática, por que questões cruciais como esta não são apresentadas em forma de documento para ser amplamente discutido, da favela até a própria universidade? Este governo retrocedeu. Em vez de ampliar a discussão, a análise etc, restringiu o debate a meia dúzia de tecnocratas e de políticos ligados ao partido do governo.

P: Para finalizar, o que o senhor nos diz sobre as recentes invasões de escritórios de advocacia?

RR: Como professor de ética acompanho essa ação do governo, e preocupa-me muito a falta de limite no respeito à profissão de advogado. Isso indica que o Executivo, que já abusa dos três monopólios exacerba o da força física, o que é próprio de um regime autoritário. A grande diferença dos regimes totalitários para os democráticos do século XX é justamente o respeito à autonomia do advogado. Na Alemanha nazista, na União Soviética, na Itália fascista, no Brasil de Vargas, não havia a real liberdade e respeito ao advogado, porque todo o sistema de Justiça estava controlado verticalmente. O respeito ao advogado indica a existência de democracia ou autoritarismo. Com essas invasões e apreensão de todos os documentos que encontram nos escritórios, computadores etc, foi transposto um limite que nem na ditadura militar ocorreu. Isso não é uma questão dos advogados, diz respeito a todos nós.