O texto abaixo foi publicado pela primeira vez no Folhetim da Folha de São Paulo, em 03/04/1987, pp. 5-7. Depois integrou a
coletânea intitulada Lux in Tenebris
(Unicamp/Cortez, 1987). Eu o copiei e o publico neste Blog, com alguns
acréscimos, sobretudo nas referências bibliográficas. Acho que num país onde as
mulheres ainda são massacradas pelos seus maridos, namorados, amantes, e onde o
machismo impera no Estado (nas suas três faces, Executiva, Legislativa,
Judiciária), é preciso pensar sobre as raízes venenosas que nutrem semelhante
cultura da morte. Nada falo de fanatismos exteriores ao pensamento cristão.
Creio que os fatos, nas estruturas sob o controle supostamente islâmico, são
tão graves quanto os vividos no catolicismo ou protestantismo. Mas genocídio é
genocídio, qualquer que seja o símbolo que o justifica, se a cruz, se o
crescente. RR
A mulher e a desrazão ocidental
Roberto Romano
“Chamamos contra a
natureza o que ocorre contra o costume (…)
Que esta razão universal e natural
expulse de nós o erro e
o espanto trazidos pela
novidade”(Montaigne, D’un enfant monstrueux).
Razões e lógica
não raro engendram monstros. Acostumados a certas identificações entre figura e
fundo, os virtuosos eternizam sínteses efêmeras ao produzirem atos e falas.
Controlando o mutável, o intelecto agarra todas as manifestações espirituais
alheias às normas. Heidegger: nas sociedades onde se olvidou o Ser e o tempo o
mando impiedoso do “se” opaco define as relações dos humanos entre sí e com a
natureza. Face ao inesperado, surgem gargalhadas mordentes e recusa espantada,
ironia voraz e anátema fanático. Reações conformes à regra impessoal e absurda
: aqui “nós” pensamos assim.
Definidas as
formas corretas, desviantes são lançados no registro da morte e doença. Vítimas
propiciatórias, cuja missão é corrigir o curso normal da existência. Para
acalmar a sede inesgotável de segurança, que permeia as dobras da alma
ocidental e cristã, foi preciso produzir para tudo, e todos, um “significado”
estável. A doença, como a monstruosidade, arranca o filistino deste conforto
ideal, ameaçando seu Ego pequeno com a pura insignificância do zero absoluto, a
morte. Com ela, ficam claras as linhas assintóticas que deslizam entre forma e
conteúdo, fazendo a vida inteira brotar como infinita surpresa, anamorfose.
Vemos hoje, ao
lado das habituais presenças da morte, a desagregação causada pela AIDS.
Atingindo sua pessoas que sempre estiveram for a das trilhas oficiais, da
“normalidade”, sua irrupção espalha o terror entre os apologetas do costumeiro
e da moral. Os seus portadores são empurrados para o deserto, carregando todas
as angústias sociais. Não comovem as iniciativas eclesiásticas para instalar um
hospital isolado, visando ao tratamento dos novos monstros: “o religioso”, diz
René Girard, visa sempre o controle da violência, impedindo-a de se
desencadear”. Administração das fobias populares, não significa abolir seu
perigo latente. Pelo contrário: o poder religioso, com seus mandamentos
terroristas, gera fúrias punitivas. Controlando racionalmente os impulsos
primitivos, o padre define limites para a tolerância caridosa, mas idealiza a
figura do Outro a ser expulso pelos zelotas. Quando a loucura coletiva escapa
das mãos ungidas ( e untuosas), o Estado assume o comando do sacrifício ritual.
Sacralidade identifica-se com separação.
Sábias frases de
Girard: “o relacionamento entre a vítima potencial e a vítima atual não deve
ser definido em termos de culpa ou inocência. Nada há para ser ‘expiado’. A
sociedade procura desviar, em direção a uma vítima indiferente, vítima
‘sacrificável’, a violência que ameaça ferir seus próprios membros, os que ela
pretende proteger acima de tudo”. Lí, recentemente, o seguinte comentário: “Se
não for controlada, a AIDS destruirá toda a humanidade antes do século 21. O
governo, com a dengue, mata os mosquitos e não busca ‘compreendê-los’. Com a
AIDS o mesmo deve ser feito. Urge extinguir os homossexuais, os drogados,
etc.”. Tamanha solicitude encontra-se numa revista protestante que, por ironia,
chama-se Palavra da Vida.
Se a norma fosse
o horror, a própria identidade, hoje costumeira, seria um acaso na voragem do
existente. Puro jogo, racional e irracional. O que fascina no monstro é seu
desafio à percepção estulta do necessário. O ser que está aí, na sua
irredutível diferença, não é passível de justificação lógica. Diante dele o
discurso se esgarça, perde o sentido. Surge o desejo e a inveja: ele não está
preso pelo banal, o bom senso cotidiano, o “se”.
O medo, o pavor
da morte em vida, o desespero do lugar comum se desdobram, face ao monstruoso,
em delírio povoado por fantasmas. A maneira estranha de corpos e ações
impressiona o intelecto pelo artifício da memória e do sonho. Esmaecem as
fronteiras entre consciência e alienação, tempo e espaço, masculino e feminino.
As palavras adquirem a superfície singela do físico, de sons que, reunidos,
significam o Nada.
Pergunta Hamlet:
“que é um homem?”. Única resposta possível : “a beast, no more”. A razão pode
ser dita de muitos modos, bem como a necessidade por ela determinada. São
tênues os cordões entre o mais refinado convívio democrático e a violência
tirânica dos humanos, sem nenhuma exceção, salvo a dos hipócritas:
Parecemos alegres, mas no fundo somos todos mal-humorados, e
temos grande apetite. Lobos não são mais esfaimados; tigres são menos cruéis.
Devoramos como lobos (…) como tigres, tudo o que é bem sucedido (Diderot. O
Sobrinho de Rameau).
O próprio diabo
teme a racionalidade quando exercida para a destruição do Outro : “Er nenn’ts
Vernunft und braucht’s allein, Nur tierischer als jedes Tier zu sein”. (Goethe,
Fausto).
Estas reflexões
sobre o monstro e a necessidade, a inteligência nos seus brilhos e sombras, o
natural e o costumeiro –physis e nomos– surgem ao
considerarmos certos homens e mulheres jogados a toda hora no fogo
propiciatório. Refiro-me aos indivíduos denominados Aussenseiter por Hans Meyer: o judeu, a mulher, o homossexual. Os
três foram estigmatizados pela marca da monstruosidade, perseguidos pelas
inquisições e também pela política totalitária. As maneiras de seu holocausto
variaram. Mas o ímpeto de abafar, de forma racional, sine ira et studio, sua existência ameaçadora, se origina já nas
primeiras representações masculinizantes do Ocidente, potenciando-se com a
unidade entre o Logos da Grécia e a
catequese cristã.
No Simpósio
sobre a Inquisição, cuja primeira parte já se efetivou em Portugal (a segunda
se realizará brevemente no Brasil), muito se falou, e se discutirá, sobre a
razão eclesiástico-estatal e seus perseguidos. Muita luz será lançada em pontos
sórdidos do catolicismo, várias hermenêuticas serão revistas, documentos
encontrarão explicações mais concretas. Comunicações sobre os judeus, os
heterodoxos sexuais, as mulheres acusadas de bruxaria, serão lidas e publicadas
para refrescar a memória das bestas feras e para reconforto dos humilhados.
Evocando o signo
da monstruosidade, agora, pretendo apenas chamar a atenção para as figurações
lógicas do Necessário, tecidas pelo pensamento masculinizante e suas
consequências terríveis, sobretudo para as mulheres. Não por acaso as bruxas
serviram como alvo exemplar na moderna domesticação feminina. Os famosos K (Kirche, Küche, Kinder), símbolo do
nazismo, não caíram na Alemanha e no mundo como raio em dia claro. Tiveram
atrás de si uma lenta e cruel elaboração teórica que, somada à disciplina
costumeira e às injunções da fé, encerrou as mulheres nos estábulos da
moralidade viril, enquanto seus parceiros de exclusão foram arrastados para os
campos e fornos crematórios.
Os monstros, diz
o crítico contemporâneo, não brilham sob a luz do imperativo categórico
kantiano: sua atividade não se converte em norma universal. Assim, ou é preciso
pensar o próprio estatuto da teratologia ou identificá-la ao Todo natural,
predicando-lhe essencialmente a falsidade. O regular, no humano, é apenas
aparente.
Consta a humanidade (…) só de elementos igualitários,
homens, mulheres, raças, complexos espirituais, corporais, anímicos? Ou mais
exatamente: os monstros de toda espécie entram na Humanidade de forma que também
para eles esteja destinada a luz da Aufklärung? Esta fracassou, até hoje,
diante desta antinomia. Falhou face aos marginalizados (Hans Mayer).
O mesmo Kant,
que defendeu a saída corajosa da Humanidade de seu estado infantil, menor,
mantém este último para a mulher, assim definindo seu estatuto:
Para a (…) indissociabilidade de uma união, o encontro
ocasional de duas pessoas não basta; um elemento deve submeter
o outro, e, recíprocamente, deve ser superior para poder comandar e
governar (…) a mulher, pela faculdade
natural de submeter-se à inclinação
que o homem tem por ela e a governar (Antropologia do ponto de vista pragmático). ([1])
O controle
utiliza a máscara da natureza. Se há repressão do mais forte sobre o mais
fraco, é culpa da sábia Natura. Se
quisermos modificar este ponto, loucos seremos nós.
Sigo a citação
do famoso iluminista:
Não é possível caracterizar o sexo feminino pelo fim que
propomos a nós mesmos, mas servindo-nos do fim da natureza, na constituição da
feminilidade; uma vez que este fim, por meio da loucura (Torheit) dos homens, deve ser sabedoria segundo as intenções da
natureza, estes fins supostos poderão servir para indicar o princípio desta
característica : este princípio não depende de nossa escolha, mas de uma intenção
mais elevada relativa à sexualidade humana. Trata-se: a) da conservação da
espécie; b) da cultura da sociedade e de seu refinamento pela feminilidade.
(op. cit). ([2])
Se há um plano
onde não ocorreu a “revolução copernicana”, é este. Ainda notamos, aqui, a
sombra de um ente exterior , a “natureza”, intrometendo-se nas relações dos
sujeitos humanos. Neste palimpsesto filosófico revela-se, sob a camada crítica,
a doutrina aristotélica dos “fins naturais”e sua meticulosa necessidade
interna.
Lembremos a
Física: “Natural é aquilo que tem em si mesmo um princípio de movimento ou de
fixidez, uns quanto ao lugar, os outros quanto ao crescimento ou diminuição” ([3])
O perfeito possui em si mesmo o seu próprio fim. Que significa o vocábulo
“mulher”? A resposta carregada pelo saber masculino foi dada de modo
interrogativo e maroto por Rabelais: “o que faz o lobo sair do bosque? Falta de
carne. O que torna as mulheres rebeldes? Vós me compreendeis muito bem”. A
mulher não se pertenceria, sendo submetida aos movimentos das paixões que nela
se agitam de acordo com a sua natureza geradora, “para o bem da espécie”.
A essência da
mulher seria uterina. A matriz genital engendra humores:
Quando o flegma ácido ou salgado, ou quando humores amargos
e biliosos, quaisquer que eles sejam, erram pelo corpo sem encontrar uma via de
escape e, girando pelo interior o impregnam fortemente com sua humidade,
misturando-se uns aos outros (…) produzem doenças de toda espécie na alma, mais
menos fortes, mais ou menos numerosas”(Galeno).
Considerada a
sua peça mais importante, a doença feminina por excelência é a histeria,
“sufocação da matriz”. Em Aristóteles o útero é o orgão essencial da mulher.
Mas ele nao produz semente fértil, pois a mulher gere e não gera o embrião.
Procriar um garoto é sinal de perfeito acabamento. Já o contrário…([4])
Não se trata apenas de uma antropologia, mas de um sistema masculinizante que
abrange o universo. Aristóteles explica: os termos “macho”e “fêmea”usados pelos
homens comuns para designar o cosmos mostram bem que “a natureza da terra é
algo feminino e por isto ela é chamada ‘mãe’. Eles dão ao céu e ao Sol e tudo o
mais desta espécie o título de ‘gerador’ e ‘pai’ (Geração dos Animais,
716a). ([5])
O macho possui o
princípio (arché) do movimento e da geração. A fêmea, o princípio da matéria
(hylé). O macho gera em outro, a fêmea em si mesma. Assim, macho e fêmea
diferem segundo seu próprio logos. Na fêmea a parte especial é o útero e no
macho os testículos e o pênis. Dedução política da taxinomia: o homem é
superior à mulher pelo uso do logos. “A relação do macho face à fêmea é
naturalmente a de superior para inferior, o macho é o governante, a fêmea é
súdito” (Política, 1254b). No mesmo trecho, o filósofo estabelece
relação homóloga entre senhor e escravo. ([6])
A fêmea fornece
a matéria, o macho a forma. A matéria cobiça a forma (a natureza busca o
melhor…) “como a fêmea deseja o macho e o feio, o bonito”(Física, 192a). ([7])
A semente masculina supre o princípio ativo da geração e da alma racional e sensitiva.
A mulher, macho infértil ou “macho deformado” tem descarga menstrual que é sêmen
“em condição impura; falta-lhe um constituinte e um apenas, o princípio da
alma” (Geração dos Animais, 737a) ([8])
Na Idade Média
Santo Alberto Magno afirma : para a produção de um feto masculino, semelhante
ao pai, é preciso “uma vitória total da semente viril sobre a matéria
feminina”. A questão é tratada nas “Questões sobre os animais”. ([9])
Para Tomás de Aquino a mulher (mas occasionatus, homem falho) é
naturalmente sujeita ao homem porque neste último predominaria a faculdade racional.
Deus, em sua sabedoria, deixou o homem livre para perseguir fins intelectuais,
superiores à capacidade da mulher.
“Nisi
ergo esset aliqua virtus quae intenderet femineum sexum, generation feminae
esset omnino a casu, sicut et aliorum monstrorum”. (Questiones Disputatae De
Veritate 5, 9, d. 9) Ou seja: “Se não fosse por algum poder que trouxe o
sexo feminino à existência, o nascimento da mulher bem poderia ser um outro
acidente, como o dos monstros”. (
[10])
O homem é em si e para si, a mulher é apenas em outro. Logo,
trata-se de um ser imperfeito definido por uma das suas partes. Famosa é a
distinção do tratado hipocrático De locis in homine, 47 : “o útero é
a causa de todas as doenças da mulher”. (
[11]) O aforismo percorreu todo o saber médico até data recente.
Se abrirmos o livro de Frei Antonio de Fientelapeña, El ente dilucidado, tratado de
monstruos y fantasmas (1676), veremos o frade refutando uma opinião
espalhada em seu tempo. Poder-se-á instar, diz ele, “que também a mulher é
monstro e prvá-lo assim: a causa de uma coisa monstruosa segundo Aristóteles
(…) provém de não alcançar a natureza seu fim perfeitamente, que é o de
engendrar cada um o seu semelhante, de sorte que, não o alcançando, é monstro o
que se engendra segundo aquela parte em que se diferencia de seu princípio. As
mulheres não chegam à perfeição de seu gerador que é o homem. Logo, de algum modo,
elas são monstros”. (
[12])
Embora negando
tal extremo o religioso citado aduz, em poucas palavras que o
Sexo masculino é mais perfeito (…) pois a mulher está
sujeita ao varão e não o contrário, e as mulheres são incapazes para o
sacramento da Ordem por direito divino (…) isto é tão certo que alguns quiseram
dizer que na Ressurreição geral, toda a linhagem humana ressuscitaria no sexo
viril… (idem).
Rondibilis,
personagem de Rabelais, diz o seguinte das mulheres:
Platão[13]
não sabe em que lugar devemos colocá-las: ou entre os racionais ou entre as
feras; pois a natureza lhes colocou no interior do corpo (…) um animal, um
membro não possuído pelos homens. Nele, algumas vezes se engendram ceros
humores nitrosos (…) acres, mordentes, lancinantes, que coçam com amargor. Por
sua picada dolorosa (…) todo o corpo é abalado, tomados todos os sentidos,
todas as afecções substituídas, todos os pensamentos confundidos; se a natureza
não lhes tivesse colocado sobre o rosto um pouco de vergonha, vós a veríeis
correr (…) como nas Bacanais… ([14])
Histéricas, as
mulheres vivem para o acasalamento, onde encontram cura para seu mal, sob
domínio do corpo e da fala masculinos. Dito já recolhido por Jean de Meung de
forma satírica: Toutes estes, serez ou
futes/ De fait ou de volonté putes. Doutrina da histeria já enunciada pelos
egipcios, vinte séculos antes de Cristo e ampliada nos seus “refinamentos. Cura
proposta por Ambroise Paré no século 16 de uma histérica: “Tire-se os cabelos
de suas temporas e os localizados atrás do pescoço ou então o das suas parte
vergonhosas, a fim de que não apenas ela seja despertada mas ainda que, pela
dor excitada embaixo, o vapor que sobe para o alto e a sufoca seja retirado e
trazido para baixo por revulsão”. O autor que cita uma longa série desses
tratamentos assim se exprime de forma
distinta:
Claro, esta concepção da doença histérica nos parece
insólita –e no entanto a cura que ela sugere vale mais do que as fogueiras das
bruxas acesas às centenas no momento em que surge a obra de Ambroise Paré. Além
disso, sob uma forma simplificada este tratamento durou até o século 20. Os
vidros de ‘sais’amoníacos que toda mulher do mundo deveria
ter em caso de vapores, nada mais eram afinal em seu princípio ativo do que as
‘velhas urinas’ que Areteu da Capdócia aplicava nas narinas de suas pacientes,
no primeiro século de nossa era.([15])
Constatação
banal: nos últimos dias do século 19 os Annales médico psychologiques trazem
novas figuras do tratamento. Não mais agir sobre o útero, mas causar terror na
sua proprietária:
Se ameaça, com efeito, a doente de lhes colocar ferros em
brasa nos ovários, indo até, para garantir a ilusão, a lhe aplicar sobre o
abdomem o cautério, ‘subrepticiamente esfriado’(idem).
Se esta é a
concepção do espírito do renascimento e na da modernidade “progressista”, por
que o espanto se, em 1486, na pena dos inquisidores dominicanos a mulher é
considerada como a principal acolhedora do demônio enquanto feiticeira,
justamente devido ao seu fraco intelecto e à sua excessiva luxúria? Assim diz o
Malleus
Maleficarum, uma das grandes manchas na história do catolicismo: “toda
feitiçaria nasce da luxúria carnal e esta, nas mulheres é insaciável. Leia-se Provérbios
XXX : ‘Há três coisas que nunca estão satisfeitas’ sim, e uma quarta que não é
dita, e que é o bastante, a lingua do ventre. Para satisfazer sua luxúria elas
unem-se sempre com os diabos”. Como
discute Brian Easlea parafraseando o Malleus : “os demônios são
onipresentes. Em particular como súcubos eles visitam os feiticeiros masculinos
à noite, e de cujo sêmen usam, agora como íncubos, para impregnar fêmeas
feiticeiras e, pois, aumentar o número dos servos de Satã”. ([16])
A conclusão
genocida e religiosa (nos século 16 e 17 os crimes de feiticaria imputados às
mulheres produziram mais condenações à morte do que todos os demais crimes
reunidos) recolhe toda uma
sistematização racional sobre a mulher, sua essência e qualidade. Mas, como
ainda mostra Brian Easlea, trata-se de uma ratio
masculinizante mais do que machista. Não se reúnem naquela fala apenas o
preconceito e a truculência, ditados por conjunturas das várias sociedades e
suas experiências econômicas ou políticas/ É uma fria forma mentis transformada em transcendental, verdadeiro a priori nos livros e atos modernos.
Mesmo Trevor Roper, tão preocupado em denunciar o terror inquisitorial, aceita
sem maiores prudências a tese da histeria na versão de Vicente de Moray para
explicar a bruxaria. “O diabólico íncubo é apenas a forma do século 16 de um
tipo de histeria sexual, familiar para todo psiquiatra do século 20”. Ou então
No passado, os neuróticos e histéricos da cristandade
centralizaram suas ilusões ao redor da figura do Diabo, como os místicos
centralizaram as suas ao redor de Deus ou Cristo ([17])
Este conjunto
ideal tornou-se avassalador pela aceitação feminina de sua própria figura,
astuciosamente construída pelo homem:
A imagem da mulher significa a imagem masculina que a mulher
toma, aceita voluntariamente e imita, até o ponto de poder apresentar, de fato,
esta imagem para si mesmam como se ela fosse a imagem feminina. (Hans Mayer,
comentando o livro de Pascal Lainé, La femme et ses images).
Da cosmologia masculinizante
à antropologia que assegura a forma feminina como imperfeição, seguindo-se a
consequência violenta de sua minoridade politico-social e sua constante
qualidade de ente adoecido, histérico, chegamos ao Malleus maleficarum. Nada
há, substancialmente que separe a recta ratio do fanatismo praticado por machos
responsáveis pela purificação mental e corpórea do gênero humano. Isto foi
justificado por filósofos, de Aristóteles até Kant. Sobre este último diz
certeiramente Gérard Lebrun:
Com efeito, como poderia a razão orientar a ação humana, se
não propusesse a esta última pelo menos o equivalente de uma certeza teórica? É
justamente isto que torna tão ambiguo, em Kant, o estatuto da ‘existência de
Deus’ ou da ‘imortalidade da alma’ enquanto postulados práticos. Certamente, já
não se trata de enunciados teóricos, mas de enunciados pseudo-teóricos são
autorizados pela razão prática. O que não temos direito de afirmar
teoricamente, diz Kant, devemos pelo menos admitir como real em função do
interesse prático. ([18])
O que diz Lebrun
sobre “Deus” ou “imortalidade da alma”, pode ser enunciado para o estatuto da
mulher na Antropologia kantiana. Trata-se certamente de fórmulas
pseudo-teóricas mas com uma história muito antiga. Aliás, serve também para
nosso assunto a conclusão que tira Lebrun da estranha idéia de uma razão
prática: “A este respeito”, diz ele, “podemos nos perguntar se a idéia de
‘postulação prática’ não contem em germe a justificação de muitos fanatismos. O
que é um fanatismo senão o fato de aceitar a contaminação da teoria pelo
interesse prático?”. O teólogo, canonista e intelectual formado na escola
aristotélica, Kramer, autor do Malleus, bem poderia responder a
esta interrogação….
Entre a austera
filosofia de Aristóteles e suas consequências, se estabelecem atos loucos,
estarrecedores recolhidos por Trevor-Roper, Robert Mandrou, Keith Thomas,
Norman Cohn e todos os autores sensíveis e inteligentes horrorizados com o
crime definido e feito em nome da Fé e da Razão por sacerdotes da Igreja e de
certa ciência. Nem todos pensaram e agiram deste modo. Mas o “nós”, o costume,
garantiu a predominância do maior número. E não foi só no registro filosófico
ou histórico que tal misoginia trouxe graves consequências. Basta ler os
escritos de Mario Praz (La carne, la morte e il diavolo nella
litteratura romantica), Shoshana Felman (La folie et la chose littéraire,
e também Le scandale du corps parlant), Hans Mayer (Aussenseiter). Alí, de
forma plasticamente superior discutem-se as metamorfoses do monstro sem alma
(como quer Aristóteles) nas figuras de
Judite, Dalila e Salomé ([19])
passando por Lady Macbeth, Joana d’Arc e atingindo Lulu, todas mulheres vampiro
(este, como a fêmea na sabedoria masculinizante, vive em outro, sua vítima), do
teatro e cinema.
Hoje, no Brasil,
as mulheres buscam definir seu espaço político. Não se animem as inteligentes
que nesta tarefa pretendem encontrar alguma ajuda na filosofia “dialética”.
Basta abrir a Filosofia do Direito hegeliana, escrita situada entre as mais
tolas da razão ocidental, para perder as ilusões.
Se as mulheres estão no ápice do governo, o Estado corre
perigo pois elas não agem segundo as exigências do Universal mas segundo
inclinações e opiniões contingentes. A formação das mulheres se faz, não
sabemos bem como, por impregnação da atmosfera difundida pela representação, ou
seja, mais pelas circunstâncias da vida do que pela aquisição de conhecimentos.
O homem, ao contrário, só impõe a si mesmo pela conquista do pensamento e numerosos
esforços de ordem técnica. (§ 166, nota).
A irmã de Hegel
enlouqueceu. “Ela acreditava ter-se transformado num pacote que, selado, seria
posto no Correio; a cada vez que percebia um estranho, tremia com todos os seus
membros; terminou jogando-se na água”. ([20])
Com semelhante irmão, este era o único fim previsível. Hoje, felizmente, o eixo
da racionalidade inclina-se para as mulheres. Resta esperar que elas não o
forcem demasiado, para si. A reação poderá ser violenta, como a definida em
dois mil anos de racionalismo cristão, em conúbio com a tese aristotélica da
vida. E da morte…
Roberto Romano
da Silva
Professor do
Departamento de Filosofia, Unicamp.
[1] “Zur Einheit und
Unauflöslichkeit einer Verbindung ist das beliebige Zusammentreten zweier
Personen nicht hinreichend; ein Theil musst dem andern unterworfen und
wechselseitig einer dem andern irgendworin überlegen sein, um ihn beherrschen
oder regieren zu können”.
[2] “Mann
kann dadurch, dass man, nicht was wir uns zum Zweck machen, sondern was Zweck
der Natur bei Einrichtung der Weiblichkeit war, als Princip braucht, zu der
Charakteristik dieses Geschlechts gelangen, und da dieser Zweck selbst
vermittelst der Thorheit der Menschen doch der Naturabsicht nach Weisheit sein
muss: so werden diese ihre muthmasslichen Zwecke auch das Princip derselben
anzugeben dienen können, welches nicht von unserer Wahl, sondern von einer
höheren Absicht mit dem menschlichen Geschlecht abhäng. Sie sind 1. Die
Erhaltung der Art, 2. Die Cultur der Gesellschaft und Verfeinerung derselben
durch die Weiblichkeit”.
[3] Livro II, 192b in
Aristote, Physique (Paris, Belles Lettres, 1952), p.58.
[4] Knibiehler, Yvonne e
Fouquet, Catherine : La femme et les medecins (Paris,
Hachette, 1983), p. 33.
[5] Cf. Aristotle, Generation
of animals in Loeb Classical Library, V. XIII (Cambridge, Harvard
University Press, MCMLXXIX), p. 10. “Segundo Aristoteles (Geração dos animais,
716a, 727a–729b, 765b) a fêmea proporciona não só espaço mas também a matéria
para o desenvolvimento do embrião. Esta matéria, no entanto, é vista como
totalmente passiva; o macho supre o
princípio do movimento e da vida. A geração ocorre quando o ingrediente ativo,
o sêmen, entra em contacto com o sangue menstrual e dá forma a este material
inerte. A criança, diz o filósofo, pode ser dita originária do pai e da mãe
apenas no sentido de que uma cama tem origem no lenho e no carpinteiro. Esta
análise do processo reprodutivo é baseado na crença aristotélica sobre a
inferioridade essencial da mulher: ‘a mulher é um macho infértil. Ela é mulher,
de fato, devido a um tipo de inadequação’(Geração dos Animais, 728a).
Blundell, Sueli : Women in Ancient Greece (Harvard University Press, 1995) p.
106
[6] Todo o contexto elogia a
dominação do homem sobre animais, escravos, mulher. A passagem inteira fala da
vantagem para o dominado (corpo, animal, escravo mulher) em ser dominado. Cf. Política,
I, II, 9-13, 1254b: Aristotle Politics in
Loeb Classical Library, V. XXI, pp. 20-21. Cf. Easlea, Brian: Witch-hunting
Magic & the new philosophy, an introduction to the debates of the
scientific Revolution, 1450-1750 (Sussex, Harvest Press, 1980). Retiro
a maior parte destes pontos daquela obra.
[7] Cf. Stephen David Ross: The
gift of touch: embodying the good (Albany, State of New York Press,
1998). p. 60 e ss.
[8] Cf. Aristóteles, Geração
dos Animais in Loeb Classical Library, XIII, pp. 174-175. Cf. Allen,
Prudence: “Woman as infertile, imperfect and deformed man”in The
concept of Woman, the aristotelian revolution, 750B.C. –A.D. 1250
(Michigan, B. Eerdmans Publishing &Co. 1985), p. 95 e ss.
[9] Jacquart, Danielle e
Thomasset, Claude: Sexualité et savor médical au Moyen Âge (Paris, PUF, 1985), p.
194. Cf. Albert the Great, Questions concerning Aristotle’s on Animals,
in The
fathers of the Church (Washington, The Catholic University of America
Press, 2008).
[10] “9.
Differentiation of the sexes must be attributed to celestial causes. Our reason
for saying this is as follows: Every agent tends to form to its own likeness,
as far as possible, that which is passive in its respect. Accordingly, the
active principle in the male seed always tends toward the generation of a male
offspring, which is more perfect than the female. From this it follows that
conception of female offspring is something of an accident in the order of
nature-in so far, at least, as it is not the result of the natural causality of
the particular agent. Therefore, if there were no other natural influence at
work tending toward the conception of female offspring, such conception would
be wholly outside the design of nature, as is the case with what we call
“monstrous” births. And so it is said that, although the conception of female
offspring is not the natural result of the efficient causality of the
particular nature at work—for which reason the female is sometimes spoken of as
an “accidental male”—nevertheless, the conception of female offspring is the
natural result of universal nature; that is, it is due to the influence of a
heavenly body, as Avicenna suggests.” De veritate, Sobre a Providência, in Questiones
Disputatae de Veritate, by Thomas Aquinas, Html edition by Joseph
Kenny, O.P. http://dhspriory.org/thomas/QDdeVer.htm
[11] Elaine Hobby (ed.) The
midwives Book, or the whole art of midwifry discovered (Oxford,
University Press, 1999), p. 100; Manuli,
P. “Fisiologia e patologia del femminile”in III Colloque International
Hippocratique, Grmek, M.D. (ed.) : Hippocratica
(Paris, CNRS, 1980), p. 397. Cf. Helen King: “Once upon a text: hysteria from
Hippocrates” in Sander L. Gilman (e outros, ed.) Hysteria before Freud
(Berkeley, University of California Press, 1993), p. 3 e ss.
[12] Madrid, Ed. Nacional,
re-edição de 1978, pp. 162-163.
[13] Timeu, 42 e 90c-91d. Como
demonstra Charpentier (nota abaixo), em Platão os dois sexos possuem uma
espécie de animal dentro de si que não escuta
a razão no desejo do acasalamento para procriar. É conhecida a diferença entre o pensamento de
Platão sobre as mulheres e os pósteros, a começar com Aristóteles.
[14] Pantagruel, Livro
Terceiro capítulo 32. Cf. Charpentier, Françoise: “Notes pour le Tiers Livre de
Rabelais, chap. 32: le discours de Rondibilis”in Revue Belge de philologie et
d’histoire, 1976, volume 54, pp. 780-796
[15] Morel, P. e Quêtel, Cl, :
Les
médecins de la folie (Paris, Hachette, 1985), pp. 34-35.
[16] (Tradução inglêsa editada
por Digireads. Com Book, 2009). Em 1490 O Malleus foi posto no Index
librorum prohibitorum, livros vetados pela Igreja, mas os estragos
foram feitos.
[17] Trevor-Roper, H. R. : The european
Witch-Craze of the 16th and 17th Centuries
(Penguin /books, 1969), pp. 50-53. Sob outro aspecto, cf. Céard, J.: “Folie et
démonologie au XVIe siècle” in Folie et déraison à la renaissance
(Paris, Vrin, 1976), pp. 129 e ss.
[18] Passeios ao Léu (São Paulo,
Brasiliense, 1983), p. 71.
[19] Cf. o belo estudo de René
Girard, “La danse de Salomé”in L ‘auto-organisation, de la physique au
politique (Paris, Seuil, 1983), p. 336 e ss.
[20] Grasset, Idées
médicales (Paris, Plon, 1910), p. 282.