Santa Teresa de Jesus, crítica da ética
Roberto Romano
Nada mais estranho à experiência mística do que o automatismo ético. A
primeira abre sendas para o Absoluto, e o segundo fecha almas e corpos
nos ritos estereotipados do cotidiano e dos preconceitos. Flaubert
narra, no conto “Um coração simples”, o drama religioso de uma pobre
alma que perdeu gradativamente as referências objetivas do mundo.
Felicidade, nome da mulher que auxilia uma senhora morta há pouco tempo
e cuja habitação se esvaziou de móveis e de gente, segue um calvário de
ilusões e tristezas. A piedosa Felicidade confunde seu papagaio com o
ser divino: “Envolvendo-o com um olhar angustiado, ela implorava ao
Espírito Santo e contraiu o hábito idólatra de rezar, ajoelhada, diante
do papagaio. Algumas vezes, o sol penetrava pela janela e feria seu olho
de vidro, fazendo jorrar um grande raio luminoso que a punha em
êxtase”.
Insistamos nos elementos dessa narrativa. A relação com o divino,
como nas grandes experiências religiosas e filosóficas ocidentais,
valoriza os olhos. A humilde Felicidade retoma um culto ao Sol bem
anterior ao cristianismo, cerimônia que surgiu de remotas eras e chegou
ao século 18, à época das Luzes. O platonismo que molda boa parte do
pensamento cristão insiste no vínculo entre os olhos e a divinização
humana. O ápice dessa doutrina verificou-se, pouco antes de Flaubert, no
pensamento europeu dos séculos 18 e 19. Das páginas redigidas pelo
Pseudo-Dionísio Areopagita (que viveu no quarto ou quinto século depois
de Cristo) aos escritos de Goethe, a semelhança entre o Absoluto e o Sol
define as formas contemplativas do Ocidente. Indica o Pseudo-Dionísio:
“Porque como o nosso astro solar – não por cálculo ou escolha, mas pelo
seu próprio ser, ilumina todas as coisas para espalhar sua luz, cada um
em seu grau – , assim o Bem, como superior ao Sol, como arquétipo por
excelência, está acima de toda imagem obscura e envia para todas as
coisas os raios de sua bondade, segundo as suas capacidades. Por esses
raios subsistem todas as essências inteligíveis e inteligentes com suas
energias e poderes” (Sobre os nomes divinos).
“Deus”, afirma Tomás de Aquino, um seguidor parcial do
Pseudo-Dionísio, “não quer que se faça o mal, nem quer que não se faça; o
que Ele quer é permitir que se faça, e isto é bom” (Summa Theologica, 1
q. de 19 a 9). O espelho terrestre foi embaçado pelo hálito pestilento
do mal, mas pode ser limpo e resplandecer novamente. A criaturas
atingem a perfeição no campo iluminado pelo brilho divino. No capítulo
sobre a luz e a visão dos homens, Aquino refuta a aproximação entre os
últimos e o morcego “que não pode ver o mais visível, o Sol, por causa
precisamente do excesso de luz”. Os homens não nasceram para a
lamentável escuridão, e seu alvo é a perfeita alegria da vista: “Como a
suprema felicidade do homem consiste na mais elevada de suas operações, a
do intelecto, se este nunca pudesse ver a essência divina, segue-se que
o homem nunca alcançaria a felicidade, ou que esta é algo distinto de
Deus, o que se opõe à fé (…) uma coisa é tanto mais perfeita, quanto
mais se une ao princípio”. Logo, “os bem-aventurados vêem a essência
divina” (Summa, 1 q., de 12 a 1).
Mas como pode o homem unir-se ao
divino? Os anjos e a sua hierarquia, espelhada na hierarquia
eclesiástica, dão a primeira resposta. A segunda foi explicitada por
Tomás de Aquino: “É indispensável que, em virtude da Graça, seja-lhe
concedido o poder intelectual e este acréscimo de poder é o que chamamos
iluminação do intelecto, bem como chamamos luz ao objeto inteligível.
Esta é a luz de que fala o Apocalipse referindo-se à sociedade dos
bem-aventurados que vêem a Deus, que a claridade de Deus a ilumina e
graças a esta luz se fazem deiformes, isto é, semelhantes a Deus (idest
Deo similes)” (Summa, 1 q. de 12 a 5). Os entes humanos, pela Graça,
tornam-se iguais a Deus na contemplação beatífica, na transcendência
eterna.
Passaram-se os tempos e no século 19 lemos no “Prefácio” da
Doutrina das cores, escrito polêmico de Goethe contra Isaac Newton: “Se o
olho não fosse solar, como poderíamos ver a luz? Se em nós não vivesse a
própria força divina, como poderia extasiar-nos o que é divino?”.
Retomada por Schelling, filósofo e místico do idealismo alemão, a
fórmula recebera um tratamento irreligioso na pena dos Enciclopedistas
franceses. Sem Deus, pensam os Philosophes, os olhos expressam o
espírito que nos resta e o melhor em nós. “O olho pertence à alma mais
do que todos os demais órgãos, ele exprime… as paixões mais vivas, as
emoções mais tumultuosas, assim como os movimentos mais suaves e o
sentimentos mais delicados; ele as mostra em toda a sua força, toda sua
pureza, tal como acabaram de nascer; ele as transmite por clarões
rápidos que levam até uma outra alma este fogo, a ação, a imagem daquela
de onde partem. O olho recebe e reflete ao mesmo tempo a luz do
pensamento e o calor do sentimento” (Enciclopédia dirigida por Denis
Diderot, artigo “Olho”).
A herança de Platão, poeta sublime, é evidente nas passagens
citadas acima. Mesmo o lado aristotélico do pensamento ocidental,
incluindo o cristianismo, sorve da água cristalina que brota dos
Diálogos. No De anima, Aristóteles compara a atividade do intelecto
agente à da luz, metáfora que determinou a maior parte de nossas
doutrinas sobre o conhecimento e a prática. Para quem, na antiga Igreja
Católica, levou adiante a reflexão sobre os exercícios místicos, como
Orígenes, o conhecimento de Cristo segundo o corpo compara-se à sombra, o
saber de acordo com o espiritual aproxima-se da luz. Pedro, o
Venerável, fala de uma luz invisível que resplandece de repente na alma.
Santa Teresa, a grande mística da modernidade, com João da Cruz,
afirma não entender direito o que os mestres espirituais da Igreja
aludem com a metáfora das luzes e do Sol. No Livro da vida, ela escreve
com aparente ingenuidade: “Em alguns livros sobre a oração dizem que,
embora a alma não possa chegar por si mesma a este estado
(contemplativo), porque ele inteiro é obra sobrenatural do Senhor, seria
possível ajudar-se liberando o espírito de tudo o que é criado e
erguê-lo com humildade, depois de muitos anos de vida purgativa, e
aproveitando a vida iluminativa. Não sei bem por que dizem
‘iluminativa’”.
Não sei bem… com o pequeno enunciado, a mais poderosa alma poética e mística do cristianismo moderno joga montes de teorias sobre a luz na obscuridade.
Quando uma idéia, um conceito, uma prática tornam-se “verdadeiros”
porque habituais, perdem o significado vivo que possuíam quando foram
gerados no intelecto e na alma. Esse foi o destino da figura solar no
mundo moderno. A secura que envolveu a imagem da luz como símile da
união entre Deus e os homens fez brotar a visão melancólica de Flaubert,
evocada acima, sobre o modo “contemplativo” de Felicidade. O
automatismo, as repetições, cauterizaram o útero gerador de significados
na metáfora solar. Teresa de Jesus “não entende” o símile, justo porque
experimenta a mais elevada situação mística. O lugar-comum sobre a luz
nada lhe diz no instante em que sua existência é arrebatada pelo divino.
Falar em luminosidade para exprimir os vínculos entre o finito e o
infinito tornou-se banal, retórica vazia e, mesmo, garrulice
ensandecida.
O conto de Flaubert sobre a “mística” Felicidade tem o mesmo tom
corrosivo do terrível Dicionário de idéias recebidas. E retoma a
desconfiança, expressa por Santa Teresa, diante das metáforas das luzes.
As palavras e os conceitos, gastos pelo tempo e pela repetição, perdem o
valor, são moedas sem cara ou coroa. E chegam à tolice que mimetiza o
espiritual, mas conduz à pobre animalidade. É a mesma passagem da pomba,
evocando o Santo Espírito, ao papagaio. Este fala, mas seus vocábulos
reiteram a parolagem vazia, nunca o Logos que fertiliza o universo dos
sentidos. Quando ouvimos um lugar-comum proclamado com certeza
dogmática, ficamos embaraçados, com vergonha de nós mesmos. Essa
experiência aparece em quase todos os instantes da vida social,
política, econômica. Na religião, semelhante tortura também se repete,
especialmente quando o padre, no sermão enfadonho e mecânico, caminha
para o lugar-comum e o “fiel”, assim alimentado, escreve sua vida de fé
copiando modelos gastos por milênios de uso.
No conto de Flaubert, Felicidade (quanta crueza neste nome!) nada
compreendia dos dogmas católicos. Nas preleções sobre religião, lemos
ali, “o padre discorria, as crianças recitavam… foi dessa maneira, por
muito escutar, que ela aprendeu o catecismo”. Uma crítica literária
preocupada com a psicanálise afirma sobre essa passagem: “O exercício
sociolingüístico da repetição torna-se uma espécie de aprendizado, um
condicionamento, um automatismo. Toda prática lingüística repetitiva
veicula uma potência de hipnose que induz o indivíduo a comportamentos
sociais ou mentais estereotipados, nos quais ele abdica de sua
subjetividade. Felicidade é assim habitada por automatismos da
linguagem”. (Shoshana Felman, “Gustave Flaubert, Folie et Cliché”, In La
folie et la chose littéraire, Paris: Seuil, 1978.)
Repetição de falas, imagens, gestos: estamos em pleno campo da ética e
dos costumes. Quando um discurso ou uma constelação de figuras são
gerados, eles cumprem ou não o papel de unir pessoas ou povos. Se
conseguem fazer isso, são repetidos e copiados. E começa o automatismo.
Os herdeiros de uma cultura a retomam como se ela fosse natural,
inquestionável, como se ela valesse no pretérito e no futuro, tivesse a
forma de um tesouro inexaurível. Dessa fonte nascem os costumes e as
suas justificativas, surgem os preconceitos e o fanatismo. Este último
consiste em acreditar nas palavras habituais, retomando gestos idem. O
fanático se transforma em uma fria máquina que repete fórmulas tidas por
ele como “evidentes”. O fanático jamais duvida. Ele mata o pensamento
em si mesmo e os sentidos de sua alma. O fanático resseca toda lógica
viva nas frases, no espírito. Ele repete, como papagaio, o “verdadeiro”
do qual, lhe asseguram, é o único proprietário.
Um santo ou místico não é fanático. A “ingênua” afirmação de Teresa
de Jesus mostra o ponto. Ela não sabe o que significa a metáfora da luz
na experiência anímica, duvida de um conjunto imagético que veio da
Grécia clássica, atravessou o helenismo e a Idade Média, invadiu o mundo
moderno para determinar o saber perfeito e universal. É duvidar de
muita coisa! Com semelhante dúvida, ela também se expõe aos zeladores do
reiterativo, no caso de Teresa, da Santa Inquisição. Como têm dúvidas, a
Santa também suspeita dos costumes, do automatismo que congela o
espírito em “práticas” canônicas.
A experiência, descrita por Flaubert na pessoa de Felicidade, já fora criticada no Renascimento pelo cético Montaigne.
Montaigne afirma com tranqüila condescendência: “Concebeu muito
bem a força do costume, aquela pessoa que forjou este conto: certa
camponesa, tendo aprendido a acariciar e trazer nos braços um vitelo
desde a hora do seu nascimento, e continuando sempre a fazer a mesma
coisa, acostumou-se tanto que, embora o vitelo tenha se transformado em
um boi, ela ainda o carregava. Pois o costume, na verdade, é um mestre
violento e traidor. Ele estabelece em nós, pouco a pouco, à socapa, o pé
de sua autoridade: mas com esse doce e humilde começo, tendo-o afirmado
com a ajuda do tempo, ele nos mostra uma face tirânica e furiosa,
contra a qual não temos mais a liberdade de sequer levantar os olhos.
Nós o vemos forçar todos os golpes das regras naturais: Usus
efficacissimus rerum omnium magister. (…) o costume idiotiza nossos
sentidos (…) e o que é mais estranho, que apesar de longos intervalos, o
costume possa unir e estabelecer o efeito de sua impressão sobre nossos
sentidos: como experimentam os vizinhos dos campanários. Moro numa
torre onde um enorme sino toca todos os dias às ave-marias. Esse barulho
espanta até mesmo a minha torre, e nos primeiros dias é insuportável, e
pouco depois me domestica de tal modo que o escuto sem dores. Platão
reprovou um menino que jogava. A criança lhe respondeu: ‘me reprovas por
algo insignificante. O costume, replicou Platão, não é algo
insignificante’. (“Sobre o costume e sobre não mudar facilmente uma lei
recebida” In Ensaios).
Teresa de Jesus tinha dúvidas sobre as metáforas da luz como fonte de
contemplação e desaconselhou o costume. Na Visita de Descalzas, lemos o
seguinte: “O costume é uma coisa terrível em nossa natureza, e pouco a
pouco e em poucas coisas são feitos agravos irremediáveis à Ordem….”.
Pouco a pouco, no diagnóstico sobre a tirania ética (dos costumes),
concordam o cético Montaigne e a santa religiosa. No Camino de
perfección, diz ela: “Grandes danos são feitos ao começar um costume
ruim, mais gostaríamos de morrer do que significar a causa desse fato”.
Ao longo dos escritos de Santa Teresa, encontram-se advertências contra
os costumes. Eles não levam à experiência contemplativa autêntica, nem
encaminham para a santidade. São espécies de automatismos que afastam a
via mística e determinam apenas o que é humano, demasiado humano.
O mundo religioso abarca as mais diversas e contraditórias formas de
vida e de morte. Todos os que leram os grandes místicos se acostumaram a
neles encontrar liberdade e carinho para com os sentidos humanos, para
com os outros viajantes na estrada do Absoluto. Neles, não encontramos a
rigidez cadavérica dos fanáticos que repetem cultos, gestos e palavras,
repetem costumes. A seiva espiritual percorre cada ato dos místicos
verdadeiros, neles revelando piedade e amor pelos que pensam e agem de
maneira diversa. Um carola seco e impiedoso, preso nas sacristias ou nos
palácios de governo, só conhece a letra fria da lei, estranha o
espírito que lhe dá alento. O místico autêntico joga-se no divino com a
voragem da esposa, no Cântico dos Cânticos. Um enlace erótico assim
descentra o sujeito, abre todos os seus poros para o Outro. Ele não mais
se preocupa com o pequeno Eu que o prende ao ordenamento do mundo. Ele
não mais se imagina como fonte de poder e de mando, não aceita mais o
papel de máquina que serve à disciplina mecânica e aos preconceitos
éticos. Ele é livre. Quem duvidar, leia as belíssimas Meditaciones
sobre los Cantares. Aliás, o comentário de Teresa foi condenado à
fogueira em 1580, por motivos evidentes: o fanatismo sentiu-se, como
sempre, incomodado. Graças aos céus o texto chegou até nós, estropiado,
mas com muito sentido. Quem deseja saber o que significa contemplação
mística, leia aquele escrito. Verá que o relato de Flaubert retoma a
face mais triste do cristianismo, não a sua esplêndida fronte humana, a
qual se desenha na figura de Teresa.
Roberto Romano
Professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de Campinas – Unicamp \. Autor, dentre outros trabalhos, de O desafio do Islã e outros desafios, O caldeirão de Medeia (ambos pela editora Perspectiva) e Moral e ciência: a monstruosidade do século 18 (Senac)