Poderes tirânicos
do Brasil
Roberto Romano
No governo
tirânico o governante “ao pisar as leis da natureza, abusa da liberdade dos
governados, como se eles fossem escravos, e dos bens alheios como dos seus” (Jean Bodin, Os seis
livros da República). Já vimos de tudo na vida política brasileira. O mais
comum é o uso, pelos que operam o Estado, das coisas públicas em proveito
próprio. Tais grupos e indivíduos cabem na definição do tirano formulada por
Jean Bodin. Eles enriquecem às expensas do erário porque são blindados por
normas ilegítimas e perversas se vistas sob o êngulo ético. Nada que discrepe
dos juízos emitidos no “Sermão do bom ladrão”. “Se o alheio, que se tomou ou
retém, se pode restituir, e não se restitui, a penitência deste e dos outros
pecados não é verdadeira penitência, senão simulada e fingida, porque se não
perdoa o pecado sem restituir o roubado”. Bom Vieira, colega jesuíta do papa
Francisco! Ele teria na conta de réprobos o maior número dos que exerceram,
exercem e com muita probabilidade exercerão cargos públicos no Brasil.
Até hoje, no
entanto, era inédito que um poder, não grupos ou indivíduos, se apropriasse
indevidamente de um bem que pertence ao povo soberano (se tal expressão possui
sentido no país em que sobrevivemos). Não conforta o recuo do Tribunal Superior
Eleitoral no convênio com a Serasa para repassar informações da cidadania em
troca de benefícios para seus funcionários. A identidade cidadã é destinada aos ritos da
república democrática, o dever do voto. O TSE não é dono daquele bem e não tem
direito algum de o alienar. Como
semelhante golpe de Estado chegou ao Diário Oficial? Difícil aceitar que as
autoridades daquele poder nada sabiam sobre o trato que privatiza a cidadania. Quando
a população sai às ruas e mostra inconformismo com a arbitrária condução dos
assuntos oficiais, os poderes tudo fazem para aumentar a descrença e o
esmigalhamento da fé pública. Parlamentares e governadores usam bens coletivos
como se fossem prerrogativa do cargo, mas alguém no Senado prorrompe em falas
oraculares e dogmatiza que a ética é subjetiva. Outros atentados similares ocorrem
em todos os níveis e negam o essencial: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos
Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá
aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência”.
Se o descalabro chega a tal ponto na
instituição que deve nos dar segurança e justiça, no Legislativo o desconforto
não é menor. Em recente pesquisa de opinião o Congresso tomba no franco
desprezo dos que pagam impostos e não têm licenças principescas como a de foro,
o privilégio de hospitalização às custas do contribuinte, casa, automóvel e
outras benesses ignoradas em todos os
países democráticos. A cada legislatura nova os eleitos esmigalham as esperanças
neles depositadas. A qualidade da representação piora, sem que se vislumbre
saída prudente para o impasse do parlamento. O executivo, embora acuado, dispõe
do cofre para distribuir favores aos amigos, pão e agua para a oposição. E
legisla, usurpa impune atribuições dos demais poderes. Ele move a propaganda
sistemática, consegue reverter a péssima situação em que se encontra. Até onde?
Até quando? Até que o atual regime constitucional seja abolido em seu proveito?
O fato não seria raro na história do Brasil. Basta recordar as ditaduras do
século 20 que reduziram o judiciário e o legislativo ao silêncio e à
insignificância.
Quando os liberais defenderam o sistema
parlamentar, “imaginavam ter nele um método de escolha política de dirigentes,
um caminho seguro para afastar o diletantismo político e permitir o acesso só
dos melhores e mais competentes à direção política. Tornou-se muito duvidosa a
real competência do parlamento para
formar uma elite política. Hoje em dia não somos mais tão otimistas a respeito
desse instrumento de seleção; muitos já encaravam essa expectativas como
obsoletas, e a palavra ‘ilusão’ poderia facilmente aplicar-se a certos
democratas. As centenas de ministros constantemente apresentados como elite
política pelos inúmeros parlamentos não justificam nenhum otimismo. Mas o que é
pior, e desfaz qualquer esperança, é que o sistema parlamentar conseguiu
transformar todas as questões públicas em objeto de cobiça e decompromisso dos
partidos e dos agregados, e a política, longe de ser a ocupação de uma elite,
passou a ser a desprezível negociata de uma desprezível classe de gente”.
O parágrafo acima não me pertence, mas
ao jurista que mais colaborou para o reforço absoluto do executivo contra os
deputados e senadores alemães. Sim, os especialistas notaram que o trecho foi
escrito por Cal Schmitt (A crise da democracia parlamentar). Se trocarmos a
Alemanha pré-nazista pelo Brasil de agora, a tese de Schmitt sobre os
parlamentares permanece válida, para nossa melancolia. No país de Getúlio
Vargas e de Francisco Campos, de Filinto Müller e do AI-5, onde a hegemonia do
executivo foi imposta a ferro e fogo, dói constatar a desmoralização dos
legisladores. Mas eles não se emendam. A votação do “orçamento impositivo”
exemplifica o acerto de Carl Schmitt: destrói qualquer orçamento sério no país,
serve aos fins eleitoreiros dos partidos e lideranças, sem preocupação com o
Estado e a sociedade. Os parlamentares cavam a sepultura do regime atual.
Estudos sobre o tema não faltam. Em 2012 Fernando Bianchini, promotor de
justiça paulista, defendeu ótima dissertação de mestrado intitulada “A
democracia parlamentar na crítica de Carl Schmitt”. Existem inúmeros outros
trabalhos sobre o risco autoritário no país, mas os nossos representantes não
os examinam, porque eles tornariam insuportável sua atuação como joguetes da
presidência federativa, ou lobistas de alto coturno, sem cor republicana e
democrática.
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