2000 ANOS DE CRISTIANISMO | PODER |
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ROBERTO
ROMANO
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O |
s vínculos
entre cristianismo e poder surgem antes de Cristo. A vida cristã
é filha do judaísmo, herdando as ambiguidades do Velho
Testamento nos tratos entre mando secular e divino. O problema da
hegemonia entre autoridades civis e religiosas já se coloca
na sucessão de Moisés. Quem poderia suceder o primeiro
legislador? Josué, o indicado, permaneceu em pé diante
do sacerdote, definindo a sua inferioridade em face do clero. O
sacerdote consulta Deus em nome de Josué (Êxodo, 28:30).
Tanto o novo dirigente quanto o povo subordinam-se ao mediador entre
Deus e os homens.
São
várias as lutas entre sacerdotes e comandantes de Israel,
no Antigo Testamento. Deus seria o único rei de Israel, sendo
blasfêmia o povo desejar um governante civil. A monarquia
escandaliza muitos judeus, como se vê no Livro dos Juízes:
“Naqueles dias não havia rei em Israel, e cada um fazia
o que lhe parecia correto” (Juízes, 21:25). Houve resistência
do clero, e supostamente de Jeová, diante do novo poder real.
Quando Samuel é obrigado a reconhecer a vontade popular,
que exigia um rei, ele afirma em nome de Deus: “Eu (...) vos
libertei da influência do Egito e da influência de todos
os reinos que vos oprimiam. Vós, hoje, no entanto, rejeitastes
vosso Deus, aquele que vos salvou de todos os males e de todas as
angústias que vos afligiam, e dissestes: ‘Não!
Constitui sobre nós um rei!’ Agora, pois, comparecei
diante de Javé por tribos e por clãs” (I, Samuel,
10:17-19).
Reprodução |
O Concílio de Trento A Igreja tentou resolver o conflito entre os poderes |
O choque
entre poder sacral e mando laico cresce ou diminui conforme a situação
do povo. Quando estrangeiros submetem Israel, a religião
mantém a unidade nacional. E cresce a importância dos
profetas, em detrimento do líder civil. Mas este sempre está
nas consciências, como promessa divina de libertação
pelo Messias, o ungido do Senhor, rei e sacerdote capaz de remir
o povo. Davi é o emblema desse rei. O Messias é seu
descendente. O novo Davi goza da graça divina, puro de todo
pecado, mas deve ser rei forte para dominar os povos.
Para Lutero, tentar juntar os reinos divino e terreno seria como juntar ovelhas e leões |
O Novo
Testamento aponta em Jesus os traços do Messias: ele é
rei ungido por Deus e sai da árvore de Davi. A subordinação
entre os poderes é pregada sem meias palavras. Quando Cristo
é tentado pelo diabo, a sua resposta sobre os governos terrestres
que receberia, caso negasse a Deus, é clara: “Ao Senhor
teu Deus adorarás, e só a Ele darás culto”
(Mateus, 4, 10). No episódio do imposto pago a César,
Jesus reafirma a superioridade celeste. Assim, o cristianismo reivindica,
após a queda do Império Romano, a subordinação
do príncipe ao sacerdócio. Nas primeiras monarquias
européias, o rei ocupa um lugar hierárquico na Igreja.
“O monarca era de um modo especial funcionário e um
membro da Igreja; ele não era como os outros fiéis
leigos, mas seria um mediador entre o clero e o povo” (Tellenbach,
Gerd). A unção, os signos episcopais que lhe são
dados, o seu poder de curar, a sua liderança em concílios,
tudo isto promove a santificação da figura real. No
fim da Idade Média, os Estados nacionais não têm
coerência política e administrativa. O mesmo ocorre
com a Igreja. O poder da cúria não é pleno
na Europa. A Igreja, buscando poder, forja mitos como a “doação
de Constantino”, carta na qual o imperador romano teria ofertado
regiões inteiras ao papa. A leitura daquele texto mostra
o desejo dos padres de se elevarem acima dos reinos. O suposto imperador
afirma, em certa altura: “Garantimos ao sucessor de Pedro o
palácio imperial de Latrão, que é superior
e excede todos os palácios do mundo; e o diadema, que é
a coroa de nossa cabeça...” Fraude rendosa...
O
máximo da propaganda clerical surge em 1198, quando Inocêncio
III compara os dois poderes. A Igreja, o Sol, tem luz própria.
O mando civil, a Lua, depende do sacerdócio. Em 1296, surge
a Bula Clericis Laicos, que vitupera o inglês Eduardo I. Este
tentou impor taxas ao clero. A bula também ofende o rei da
França, Filipe IV, que proíbe o envio de dinheiro
para a Santa Sé. O príncipe cerca o papa em Anagnani
e prende-o por alguns dias. Surge a reivindicação
teocrática na Unam Sanctam de 1302. Segundo o papa, Cristo
ensinou que existe um rebanho e um só pastor. A cúria
tem poder celeste e terreno. Os protestantes não abolem a
preeminência do poder espiritual sobre o civil.
A coroação de Carlos Magno/janela na catedral de Strasburgo na França |
Coroação
de Carlos Magno pelo papa Leão II: o poder da Igreja no estado |
Lutero
separa os reinos: “Cristo não trata de política ou de economia,
mas, sim, de salvar os homens.” Logo,“tentar exercer o governo de todo
um país, ou do mundo, com o evangelho, é como se um pastor juntasse
no mesmo estábulo os lobos, os leões, as águias e as ovelhas....as
ovelhas, sem dúvida, seguiriam a paz e se deixariam conduzir pacificamente.
Mas elas não viveriam muito tempo, e não restaria uma só”
(Lutero). Nas revoltas do camponeses alemães, Lutero dá carta branca
aos senhores seculares para impor a ordem, mesmo que eles não sejam cristãos.
Abre-se a via para a independência do poder civil diante do religioso.
No Concílio de Trento, a Igreja tenta resolver os conflitos entre os poderes,
mas mantém a superioridade do espiritual sobre o civil. A solução
esboçada por Roberto Bellarmino é o poder indireto do papa sobre
os Estados, réplica ao rei Tiago da Inglaterra, que no livro Basilikon
Doron prega o direito divino dos reis. Chega a era do incentivo à morte
dos “reis tiranos” e os vagidos do terror com patrocínio religioso.
A doutrina católica e a lógica que assegura a superioridade dos
sacerdotes sobre os leigos está num conjunto textual surgido no quarto
século do cristianismo, sob o nome de Dionísio Areopagita (Hierarquia
Celeste e Hierarquia Eclesiástica). Tudo seria uma escala hierárquica
inflexível. Deus, o único a existir de modo pleno, jorra luzes sobre
os entes. Quanto mais próximo da divindade, mais um ser é superior.
O universo sai da essência divina e desce aos seres ínfimos. Anjos,
arcanjos, querubins são formas existentes entre Deus e os homens. Príncipes,
nobres são hierarquias terrestres. O lugar dos padres nessa escala é
o mais elevado. Tal doutrina se impõe até no século XX e
integra o saber político da Igreja.
Prensa Três |
Não
é aleatório, pois, o gesto de Napoleão Bonaparte. Este, ao
assumir o Império, toma a coroa das mãos do papa e a coloca sobre
a própria cabeça. O Estado se define como independente da Igreja.
No século XX, o cristianismo reivindica a soberania acima do mando estatal.
Nos tratados com Mussolini e Hitler, o Vaticano imaginava que os fascismos acatariam
as exigências religiosas. A Igreja, em frente ao Estado totalitário,
repete a tese de Dionisio Areopagita. Após a assinatura do tratado de Latrão,
Pio XI escreve ao cardeal Pedro Gasparri: “Na Concordata estão diante
um do outro, senão dois Estados, certissimamente duas soberanias plenas
(...) cada uma em sua ordem, ordem necessariamente determinada pelos respectivos
fins, onde quase não é preciso dizer que a dignidade objetiva dos
fins determina não menos objetivamente e necessariamente a absoluta superioridade
da Igreja”. Assim, a Igreja ajudou o fascismo.
Comparados com a Igreja, todos os poderosos são modestos diletantes |
Os dirigentes
eclesiásticos conhecem o poder. Entre a liberdade cristã e o exercício
do mando, secular ou religioso, eles não hesitam. Elias Canetti, em Massa
e poder, a mais importante obra de teoria política do século XX,
assim analisa a força religiosa: “Comparados com a Igreja, todos os
poderosos dão a impressão de serem modestos diletantes.” Ao
contrário dos líderes laicos, ela não tem pressa. Tudo nela
ocorre como nas procissões. Ninguém viu uma procissão com
fiéis correndo.
O
mando religioso ou é uma defesa contra os abusos dos príncipes
ou agrava ainda mais os referidos malefícios. Nada pior do
que uma tirania com marca divina. Diz Maquiavel: “Duas coisas
devemos à Igreja. Ela nos tornou covardes e ruins.”
Se a frase é falsa, é preciso explicar melhor as fogueiras
e o trato amigável com os ditadores modernos. Napoleão
colocou a coroa na cabeça, mas o papa lá estava, advogando
o seu domínio sobre o Estado. A reprimenda que ele recebeu
do imperador foi merecida.