31/08/2013
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03h00
David Oliveira de Souza: Carta aos médicos cubanos
Bem-vindos, médicos cubanos. Vocês serão muito importantes para o
Brasil. A falta de médicos em áreas remotas e periféricas tem deixado
nossa população em situação difícil. Não se preocupem com a hostilidade
de parte de nossos colegas. Ela será amplamente compensada pela acolhida
calorosa nas comunidades das quais vocês vieram cuidar.
A sua chegada responde a um imperativo humanitário que não pode esperar.
Em Sergipe, por exemplo, o menor Estado do Brasil, é fácil se deslocar
da capital para o interior. Ainda assim, há centenas de postos de
trabalho ociosos, mesmo em unidades de saúde equipadas e em boas
condições.
Caros colegas de Cuba, é correto que nós médicos brasileiros lutemos por
carreira de Estado, melhor estrutura de trabalho e mais financiamento
para a saúde. É compreensível que muitos optemos por viver em grandes
centros urbanos, e não em áreas rurais sem os mesmos atrativos. É
aceitável que parte de nós não deseje transitar nas periferias inseguras
e sem saneamento. O que não é justo é tentar impedir que vocês e outros
colegas brasileiros que podem e desejam cuidar dessas pessoas façam
isso. Essa postura nos diminui como corporação, causa vergonha e
enfraquece nossas bandeiras junto à sociedade.
Talvez vocês já saibam que a principal causa de morte no Brasil são as
doenças do aparelho circulatório. Temos um alto índice de internações
hospitalares sensíveis à atenção primária, ou seja, que poderiam ter
sido evitadas por um atendimento simples caso houvesse médico no posto
de saúde.
Será bom vê-los diagnosticar apenas com estetoscópio, aparelho de
pressão e exames básicos pais e mães de família hipertensos ou
diabéticos e evitar, assim, que deixem seus filhos precocemente por
derrame ou por infarto.
Será bom vê-los prevenindo a sífilis congênita, causa de graves sequelas
em tantos bebês brasileiros somente porque suas mães não tiveram acesso
a um médico que as tratasse com a secular penicilina.
Será bom ver o alívio que mães ribeirinhas ou das favelas sentirão ao
vê-los prescrever antibiótico a seus filhos após diagnosticar uma
pneumonia. O mesmo vale para gastroenterites, crises de asma e tantos
diagnósticos para os quais bastam o médico e seu estetoscópio.
Não se pode negar que vocês também enfrentarão problemas. A chamada
"atenção especializada de média complexidade" é um grande gargalo na
saúde pública brasileira. A depender do local onde estejam, a
dificuldade de se conseguir exame de imagem, cirurgias eletivas e
consultas com especialista para casos mais complicados será imensa. Que
isso não seja razão para desânimo. A presença de vocês criará demandas
antes inexistentes e os governos serão mais pressionados pelas
populações.
Para os que ainda não falam o português com perfeição, um consolo. Um
médico paulistano ou carioca em certos locais do Nordeste também terá
problemas. Vai precisar aprender que quando alguém diz que está com a
testa "xuxando" tem, na verdade, uma dor de cabeça que pulsa. Ou ainda
que um peito "afulviando" nada mais é do que asia. O útero é chamado de
"dona do corpo". A dor em pontada é uma dor "abiudando" (derivado de
abelha).
Já atuei como médico estrangeiro em diversos países e vi muitas vezes a
expressão de alívio no rosto de pessoas para as quais eu não sabia dizer
sequer bom dia --situação muito diferente da de vocês, já que nossos
idiomas são similares.
O mais recente argumento contra sua vinda ao nosso país é o fato de que
estariam sendo explorados. Falou-se até em trabalho escravo. A
Organização Pan-americana de Saúde (Opas) com um século de experiência,
seria cúmplice, já que assinou termo de cooperação com o governo
brasileiro.
Seus rostos sorridentes nos aeroportos negam com veemência essas
hipóteses. Em nome de nosso povo e de boa parte de nossos médicos, só me
resta dizer com convicção: Um abraço fraterno e muchas gracias.
DAVID OLIVEIRA DE SOUZA, 38, é médico e professor do Instituto de
Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês. Foi diretor médico do Médicos Sem
Fronteiras no Brasil (2007-2010)