Sobre a Imprensa.
Roberto Romano
A luta pela imprensa livre entra no campo das
iniciativas democráticas. Os dois conceitos —democracia e livre imprensa— são
indissociáveis . Mas é preciso, para não cair em ilusões, determinar o que se
entende com os dois vocábulos. Quanto ao governo, tecerei considerações mais
adiante. Agora, pretendo enunciar alguns pontos sobre o exercício jornalístico.
Além da censura governamental, judiciária, econômica, política e ideológica
(não raro constituindo um todo uníssono) é preciso levar em conta o que a “imprensa”
significa para quem a opera. Aqui, soma-se com frequência o interesse
econômico, político e ideológico dos proprietários dos meios de comunicação,
com o efeito mimético e repressivo —censor, no limite— dos subordinados, os
funcionários da redação que, tendo alcançado cargos decisivos na tarefa de
selecionar o que o leitor deve ter diante dos olhos (a “benção”) assumem
atitudes ditatoriais na escrita. Só é publicado o que aqueles ditadores (sempre
obedientes às ordens dos proprietários do jornal, rádio ou televisão) permitem.
Façamos um resumo do problema, seguindo os passos da
imprensa na história. A imprensa escrita, tal como a conhecemos, tem início na
Alemanha, muito provavelmente em Bremen, espalhando-se por Colônia, Frankfurt,
Berlim, Basel, Viena, Amsterdam, Antuérpia. ([1])
A imprensa segue quase simultâneamente, na Alemanha e na França, a luta pela
liberdade de expressão e de publicidade. O que não impede o fato de que parcela
mais do significativa dos impressos (livros, jornais, etc) sejam de iniciativa
governamental. ([2])
Já em 1566 os dirigentes de Veneza ordenam que os relatórios da guerra
efetivada na Dalmácia fossem lidos publicamente. Para tal exercício, era
preciso pagar com uma pequena moeda,
cujo nome era “gazetta”. Mas já em 59 AC em Roma eram lidos folhetos chamado Acta
Diurna, arquivados para quem os quisesse consultar. Com muita
probabilidade, o termo “diário” tem semelhante origem. E os chineses, bem antes
dos europeus, inventaram o livro impresso em moldes. Em 1045, foram empregados na China os tipos
móveis. Marco Polo descreveu os procedimentos chineses em 1295. Naquela cultura
foi usado, pela primeira vez, o papel para impressão. ([3])
Na Europa, o que deu nascimento ao jornalismo? Ele
nasce das feiras livres, pois nelas eram trocados mexericos e informações.
Emery indica algumas característica do jornalismo: o veículo deve vir ao
público pelo menos uma vez por semana; deve ser produzido por meios mecânicos
(para o distinguir dos panfletos); deve estar ao alcance de todos os que podem
pagar, sem que se leve em conta a classe ou interesses particulares; seu
interesse deve ser do público em geral, ao contrário dos veículos que comunicam
algo de interesse religioso ou comercial;
seu publico deve ter formação literária comum; deve ser atual em termos
técnicos; deve ser estável e não efêmero. ([4])
Dentre as marcas de um meio da imprensa está o preço baixo o bastante para
atingir massas. “A revolução” continua Emery, “não estava tanto no veículo,
talvez, como no público”. Quase todos os elementos do jornal, por exemplo,
—artigo de fundo, ilustrações, humor, esporte, política— eram conhecidos antes
do jornalismo, exceto os anúncios. “No século XVI, como hoje, o incomum e o
sensacional forneciam a maior parte do texto” (Emery). A máquina impressora
apenas aumentou a disponibilidade dos escritos, a um público mais numeroso.
Vejamos alguns elementos apresentados por Emery,
quanto ao nexo entre jornalismo e cultura. A imprensa diminuiu o custo da
educação. Textos antes caros, de acesso difícil mesmo para alfabetizados,
tornam-se fáceis de adquirir. Com otimismo, pode-se dizer que o saber “não mais
seria de propriedade exclusiva das classes privilegiadas”. Veremos, abaixo,
algumas análises conservadoras que não percebem tal democratização do saber
como algo desejável. A lógica do mercado, no entanto, segue o plano da mesma
lógica do aumento no campo dos que sabem: maior o número de leitores, menor o
custo do material. E vice versa. Emery adverte contra o otimismo em excesso,
quando aplicado ao crescimento da midia. “Não é que a leitura produza
automaticamente a reflexão —as pilhas de revistas sem conteúdo em qualquer
banca de hoje refutam este argumento— mas provoca nas pessoas o interesse pelo
mundo que as cerca. Ao findar da Idade Média, várias tendências romperam a
crosta dos costumes arraigados e penetraram na ´idade da discussão´ que é
progressiva, visto que constitui um prêmio para a inteligência”. ([5])
Segue Emery o seu diagnóstico matizado sobre as benfeitorias da midia: “o
aperfeiçoamento da imprensa, as idéias e a informação atingiam um público
leitor carente de necessária base e experiência literária para o raciocínio.
Por conseguinte era necessário apelar, de início, mais para as emoções do que
para a razão. Quando as pessoas reagem à emoção mais do que ao raciocínio, elas
esquecem freqüentemente a segurança da disciplina. (...) Essa era a razão por
que as classes dirigentes temiam a imprensa”.
Se indica o receio dos poderosos, ricos donos da
sociedade e do Estado, Emery não deixa de mostrar o quanto a imprensa permitiu
a eclosão do imperativo democrático da accountability. “Depois da invenção da máquina impressora , o povo
podia verificar os fracassos e as realizações de seus governantes de modo mais
efetivo. Podia estabelecer a responsabilidade de uma diretriz pública”. ([6])
A imprensa acompanha o nascimento do Estado moderno,
tanto no continente europeu quanto na Inglaterra. A importância dos panfletos
políticos e religiosos, bem como dos livros polêmicos é clara, tanto no
continente quanto na ilha britânica, nos séculos XVI e XVII. Basta recordar os
libelos puritanos e textos como Le Reveille
Matin des François, que ergueram
grande debate ao longo daqueles dois séculos. No clássico sobre a raison d´ état no
período de Richelieu, Etienne Thuau mostra o peso dos libelos, panfletos,
jornais dirigidos pelo governo contra os católicos e protestantes, e também
contra os inimigos externos da França, no sentido de conquistar e domar a
opinião pública. No capítulo 5 do livro (“Le courant étatiste et le triomphe
de la ´raison divine´”), ele mostra o
quanto os governantes e os seus críticos usavam panfletos, jornais, livros na
luta pela opinião pública. Ele não deixa de sublinhar um traço estratégico da
propaganda: ela é maniquéia. “Aos publicistas teocráticos que qualificavam a
razão de Estado de ´razão do diabo´ ou ´razão do Inferno´ os panfletários
cardinalistas replicam os acusando de adotar...´a mais negra Teologia do
Diabo´”. ([7])
Todo o capítulo mostra as estratégias construídas segundo o princípio de que
“governar é fazer acreditar”. Vale a pena repetir o que diz o próprio Thuau: “é
uma verdade reconhecida que a autoridade é inseparável das ideologias, dos
mitos e das representações que os homens formam a seu respeito. O poder não tem
sua fonte único no constrangimento. Ele repousa na aliança do constrangimento e
das crenças”. Assim, falando do poder absolutista sob Luis XIII, ele cita os
escritores que “se impõem porque sabem empregar o poder da palavra, e também as
suas armadilhas”. No jornal Le Mercure
Français (1625) pode-se ler: “a
insolência da lingua e da pena precede com frequência a tomada das armas”. O
Cardeal de Retz diz, nas Memórias, que “a monarquia não é uma construção da
razão, mas um mito social”.
Thuau cita longo trecho de Gabriel Naudé nas Considerações
políticas sobre os golpes de Estado
: o príncipe é obrigado a mentir ao povo, ele deve “manejá-lo e persuadir por
belas palavras, seduzi-lo e enganar pelas aparências, ganhá-lo e colocá-lo a
serviço de seus alvos por pregadores e milagres sob pretexto de santidade, ou
por intermédio de boas penas, fazendo-as calar os livrinhos clandestinos,
manifestos, apologias e declarações artisticamente compostas, para levá-lo pelo
nariz, e lhe fazer aprovar ou condenar, só com a etiqueta da sacola, tudo o que
ela contem”. A eloquência dos
pregadores, diz Naudé, presta ao poder um serviço igual ao das armas. ([8])
Richelieu tinha o hábito diário de se reunir com os
secretários para examinar os documentos que vinham até ele, do rei e de outras
autoridades, definindo a forma pela qual eles deveriam surgir, como notícias,
ao público, com o disfarce necessário. ([9])
Richelieu já conhecia, assevera Thuau, a arte de re-escrever a História, e seus
próprios textos. Ao reeditar seu discurso aos Estados em 1614, ele o modifica
porque não coincide mais com sua nova política. Os demais itens apresentados
por Thuau são utilíssimos para entender o papel da imprensa no alicerce do
absolutismo, na guerra pela opinião pública.
Richelieu autorizou o primeiro jornal francês, La
Gazette, sob direção de Th.
Renaudot (1631), com privilégio monopolístico da informação. Tal privilégio,
como a onipotência real, é mito. Mas tem muita força política.
Emery evidencia o quanto a imprensa e a censura foram
dois lados essenciais do reinado Tudor na Inglaterra, de Henrique VIII até
Tiago I. Sob eles, “a imprensa se tornou objeto do interesse real, pois essa
vigorosa dinastia era conhecida pelos seus esforços para chamar a si todos os
poderes possíveis. Henrique VIII começou o controle da imprensa com uma lista
de livros proibidos. Isso foi em 1529 e teve essa medida por finalidade
levantar um dique contra a crescente onda do protestantismo”. O rei proíbe que
livros estrangeiros sejam vendidos na Inglaterra. Emery mostra, com detalhes, a
luta dos que resistiram aos alvos de propaganda e de censura, determinados pela
casa real. Depois, mostra a ascensão da burguesia com seu dinheiro e suas teses
políticas, sobretudo a defesa sem freios da propriedade. E termina nosso
historiador afirmando que “o progresso da liberdade de imprensa demonstra que
ela ”pertence aqueles que governam. Se o poder estiver concentrado nas mãos de
um monarca, ou de uma elite, o público não terá necessidade de receber
informações e idéias que digam respeito a assuntos políticos e sociais. (...)
De outro lado, se o público participa do governo, ele deve ter acesso à
informação na proporção do lugar que ocupa no esquema político e, nesse ponto,
as restrições da imprensa são atenuadas. (...) Quanto mais direta for a
prestação de contas do governo diante das massas, maior é a liberdade de
imprensa”. Além disso, “quanto mais
seguro é um governo, menos medo tem de se enfraquecer e maior liberdade concede
à sua imprensa”. ([10])
A função “nobre” da midia impressa, no entanto, nem
sempre suscita análises compreensivas. Basta recordar o crítico Karl Kraus, “o
branco pontífice da verdade” como o designou o poeta Georg Trakl. Em artigo
intitulado “A imprensa como alcoviteira” ([11]).
Kraus inicia o texto comparando a jovem prostituta e o articulista econômico do
jornal. A primeira, no seu entender, é moralmente superior ao segundo, poi ela
“nunca deu a entender, como ele, assumir altos ideais”. Assim, superior ao
diretor do jornal é a alcoviteira. O intermediário da opinião, “que vive da
prostituição espiritual de seus dependentes, prejudica o mister da alcoviteira
no terreno que mais lhe compete”. É conhecida a guerra do autor contra os
anúncios eróticos postos nos jornais. Tal luta, diz ele, não se baseia em um
desdém puritano. Aqueles anúncios são imorais apenas em relação à pretensa
missão ética da imprensa, como seria inconveniente uma liga em defesa da moral
em jornais que pregam a liberdade sexual. “Como, de resto, seriam os acessos de
moralismo de uma alcoviteira são imorais, não em si mesmos, mas relação ao seu
múnus”. E fulmina Kraus: “moral, nesse sentido, é a defesa da alcoviteira
contra a concorrência desleal dos editores dos grandes jornais, que exercem
aquele ofício sob riscos bem menores”.
Assim, “o Estado que desaloja os casais de amantes de
uma casa de encontros não tutela o bem jurídico da moralidade pública, mas o da
ética profissional da alcoviteira. Mas que numa casa a fachada se consagre à
educação do povo e por trás se efetivem proveitos materiais combinando rendez-vous, lhe parece a mais natural e moral das destinações do
edifício como casa de prazer, e basta. Viúvas miseráveis, que vivem dos
´encontros clandestinos´, são levadas aos tribunais. Os proprietários dos
jornais colocam ao dispor e põem sua administração para o desenvolvimento da
mais vivaz atividade erótica, em toda a sua variedade e continuam a trabalhar
imperturbados”. O meretrício hoje,
termina Kraus, “se prostitui agregando-se ao mais sórdido jornalismo, e se é
penoso ver os mais famosos expoentes da ciência colocar-se sob ele, como
colaboradores (...) arrastando o carro da patifaria financeira e intelectual,
assim envilece encontrar numa comprometida moral filistina uma legião de
honestos servidores do sexo”.
É clara a condenação de Kraus à imprensa, qualificada
por ele como forma de prostituição espiritual dos intelectuais e como trabalho
de proxenetismo dos proprietários e editores. Passemos a um outro crítico da
imprensa, o pensador Martin Heidegger. Em Ser
e Tempo (§ 37) o filósofo analisa
a fala equivocada (Die Zweideutigkeit) não apenas entre cientistas e público, mas na
própria “comunidade acadêmica”. O saber, na era de sua divulgação máxima,
tornou-se dificilmente distinto das suas várias expressões vulgares. Com a
imprensa “tudo assume a aparência de ter sido o verdadeiro captado, colhido,
expresso, mas no fundo, nada o foi”. Num mundo onde a informação se acelera ao
máximo, a parolagem dogmática de intelectuais e jornalistas é a norma : “Cada
um, não apenas conhece e discute o que se passou e o que está vindo, mas cada
um sabe também falar sobre o que deveria ocorrer, sobre o que ainda não
ocorreu, mas deveria ‘evidentemente’ ser feito. Cada um sempre farejou e
pressentiu de antemão o que os demais farejaram e pressentiram. Este modo de
seguir pelos traços e pelo ouvir-dizer … é insidioso o bastante para que o
equívoco faça entrever ao existente possibilidades que, ao mesmo tempo, ele
abafa no germe”. Na sociedade da informação os termos científicos e acadêmicos
circulam de modo imediato. ([12])
Heidegger, como boa parte dos filósofos
contemporâneos, se nutre de Platão e dos seguidores de Platão, embora faça
parecer que os combate. Citarei apenas dois textos, dos mais influentes na
formação da ética ocidental, do helenismo aos nossos dias. São dois tratados
complementares de Plutarco, um sobre a fala em excesso e imprudente e outro
sobre a curiosidade. No primeiro ([13])
o médico e filósofo Plutarco propõe alguns remédios para a cura do equívoco e
da garrulice. Trata-se de uma tarefa quase impossível, pois o tratamento supõe
o uso do remédio (pharmakon) que, no adoecido de palavrório, perdeu validade. De
fato, o que fala em demasia gastou o poder do logos. Para retirá-lo de sua
doença é essencial o uso do mesmo logos. Como fazê-lo ouvir a razão (na lingua grega, logos e
razão identificam-se) se ele apenas fala e não ouve e, portanto, não arrazoa
antes de jogar palavras ao vento ? Tal é o primeiro sintoma, diz Plutarco, do
nosso adoecido : “a lingua mole torna-se impotência do ouvido”. Mas é pior: a
surdez do falador é deliberada, o que o faz criticar a natureza que lhe deu
apenas uma lingua e dois ouvidos. ([14])
Na parolagem sem freios a cura é árdua. O remédio a ser usado, neste caso, é o
próprio veneno: trata-se do logos, ele mesmo doente. Se as demais insanidades
podem ser curadas pela palavra ou podem ser entendidas ([15]),
neste caso a situação é “embaraçosa”, como traduz Amyot, ao ler o paradoxo
inicial do texto plutarquiano. O logos adoecido, fluxo instável, não tem solidez alguma. No
acometido de logorréia ele é menos remédio e mais veneno. Naquelas pessoas só a
boca opera, enquanto o ouvido permanece trancado.
A palavra tem como serventia trazer a credibilidade.
Se dela ocorre uma inflação, perde a sua força. O perigo maior é quando à
garrulice somam-se outras doenças, como o culto do vinho. “O que está no
coração do sóbrio está na lingua do ébrio”. Dos locais a serem temidos, quando
um governo possui tagarelas a seu préstimo, a barbearia é a mais ameaçadora. O
rei Arquelau respondeu ao barbeiro gárrulo que lhe perguntou como desejava
cortar o cabelo : “em silêncio!”. Marius dominava a região de Atenas, mas um
bando de velhotes, conversando no barbeiro, deu a entender aos espiões que um
setor da cidade estava desguarnecido. Sylla, sabedor do ponto fraco, ataca à
noite por ele e quase arrasou a cidade, a qual ficou cheia de cadáveres ao
ponto de um riacho de sangue invadir o Cerâmico. Quando ocorreu a conspiração
para assassinar Nero, um inconfidente ao ver passar certo prisioneiro rumo à
cela, cochichou para o infeliz que ele deveria tudo fazer para resistir um dia
a mais, pois então estaria libertado. O condenado achou de bom aviso contar o
que ouviu para Nero. O resto é conhecido. Conselho de Plutarco: “se deixas
escapar o segredo para depositá-lo em outra pessoa, recorres à discreção
alheia, mas renuncias à tua. Se o parece parece contigo, tua perda é justa; se
ele for melhor do que tu, salvas-te contra toda lógica ao encontrar, para teu
bem, um outro mais seguro do a tua pessoa. ´mas o amigo é um outro eu !´ ([16])
Sim, mas ele também possui um amigo, a quem confidenciará… e que confiará em
outro… (…) a palavra que permanece na primeira pessoa é um segredo de verdade,
mas desde que passou para uma segunda, adquire o estatuto de de rumor público”.
O texto de Plutarco traz muitos exemplos unidos aos
rumores políticos. O Senado romano manteve reuniões secretas e a mulher de um
senador exigia de seu marido informações sobre os encontros. O politico finge
anuir e diz-lhe o “segredo” seguinte : tratava-se de uma ave, com lança e
capacete dourado, que surgira na cidade. O rumor seguiu até o forum, antes do
homem que o inventou. Para punir sua mulher, ao chegar em casa fingiu que a
coisa era séria e que, pela inconfidência, seria levado ao exílio. “Que desejas
partilhar comigo?”. A resposta do poeta Filipides ao rei Lisímaco é a correta:
“Tudo, menos teus segredos”.
Enfim, a “cura” do palavrório, segundo o médico e
filósofo Plutarco, não pode ser conseguida de modo violento, mas criando-se
outros hábitos, costumes. O autor insiste nesse ponto, essencialmente ético : o
falador deve ser treinado para ficar em silêncio, prestar atenção ao dito
(treinar o ouvido), e fugir das conversas que mais agradam aos faladores. Se
militar, o falador deve ser afastado das narrativas heróicas e assim por
diante. Diríamos que os pescadores devem ser afastados de histórias de
pescaria… Isso porque se entram no fluxo discursivo predileto, podem falar mais
do que o necessário para engrandecer e embelezar o relato, o que dirige a
lingua ao exagero sem o controle do pensamento. Basófias são fonte segura de
segredos que se escoam. Um conselho: quando não se puder deixar de vez as rodas
palavrosas, tente-se passar da oralidade à escrita. A literatura, embora ainda
possa exercer a indiscrição (certo filósofo foi chamado “pena que berra” em
Atenas) pode ser mais controlada pelo autor. Outra cura: fazer o linguarudo
freqüentar pessoas diferentes dele e deixar o círculo dos seus iguais. O
respeito de opiniões ponderadas lhes fornecerá o hábito de calar.
Além da cura ética (mudança da postura, héxis) Plutarco recomenda reflexão e vigilância antes de
falar. Diante da possível enunciação, perguntar sempre: “qual o propósito? É
urgente? Que se ganha ao falar? O que se perde?”. A via régia foi aberta por
Simonides, o poeta: nos arrependemos com frequência do que falamos, mas nunca
do que silenciamos ([17])
e que o treinamento tudo pode
dominar. Muitos pensadores modernos, para falar do
segredo e da necessária disciplina que ele exige, usam Plutarco mas esquecem de
indicar a fonte. É o que se passa com Heidegger. Em sua análise da comunicação
moderna, o filósofo sublinha a perda radical do segredo na ordem da
publicidade. No mundo em que reina o “se”, todos os indivíduos estão sujeitos à
discrição alheia. Ou seja, o que em Plutarco era uma doença de alguns, em
nossos dias tornou-se pandemia. Mas o alheio, agora, o outro, não possui
determinação certa, ele pode ser alguém e ninguém ao mesmo tempo. Quando o
indivíduo fala algo, ou faz, afirma de imediato sempre a culpa como advinda
“dos outros”. Trata-se de um truque bem conhecido pois a fórmula “os outros”
recolhe também quem fala ou faz. “Os outros” surgem na imprensa, no ônibus, nos
passeios, nas reuniões sociais, e neles todos são dissolvidos, eu incluído.
Trata-se de uma indiferença ou indistinção generalizada, na qual pouco importa
o que eu ou você fala, porque ambos “falamos” o que “se fala” e “como se” fala.
O discurso perde o sabor individual. Mesmo no “escândalo”, não ocorre falha entre
o público e o privado: ambos são diversificações do indistinto modo de agir e
julgar pré-estabelecido, o “se” (fala-se, diz-se, ouviu-se dizer que, etc).
Julgamos escandaloso o que “se” (o público) julga escandaloso.
Heidegger, como indiquei, identifica na midia a grande
força de pasteurização ou esmigalhamento dos indivíduos e da linguagem. Na
midia nada é secreto, porque nela inexiste o contacto efetivo com o que é, mas
apenas com a média das percepções e da linguagem sobre os eventos e os seres. A
mediania não desce fundo nas coisas e nas palavras, ela inscreve-se num
horizonte medíocre que “facilita” a compreensão de todos. Desse modo, a midia
não admite exceções, ela é absolutamente democrática e igualitária. Assim, ela
não autoriza a surpresa diante de novos conhecimentos. Se aparece algo assim,
ela sempre procura “mostrar” que o saber alegado é antigo. Na midia não existe
reconhecimento do que foi conquistado em muito tempo e pesquisa. A novidade é a
sua regra, o instantâneo o seu procedimento, o público é o seu alvo e a sua
pressuposição. Com a mediania, “todo segredo perde a força e o mistério. A
preocupação da media evidencia uma nova tendência do existente (Dasein), e nós a chamaremos o nivelamento de todas as
possibilidades de ser”. Esse nivelamento constitui a essência da “opinião
pública”. O referido público, como o freguês no mercado, sempre está com a
razão e “decide” a correta interpretação de tudo : aplausos mais ou menos
longos decidem a verdade, a beleza, a maestria técnica dos candidatos, nos
programas de auditório. O mesmo ocorre nas pesquisas de opinião pública que
decidem quais são os melhores aspirantes ao governo do Estado. O que é o
“público” no qual imperam os hábitos encobertos pela forma do “se” ?
O “se” é a impessoalidade coletiva que “descarrega” os
indivíduos de si mesmos, deixando-os sem qualquer responsabilidade ou culpa.
Eles “fazem” ou “fizeram” o que “se” faz. Desse modo, nada é serio para os
indivíduos, nada é grave, tudo é frívolo. Eles jamais têm culpa e tudo é objeto
de risadas, comentários, falatórios, fofocas. A covardia penetra o
comportamento mediano obediente ao “se”. Nada, alí, que não pudesse encontrar
em Rousseau uma descrição cortante. ([18])
Quanto mais o “se” parece manifesto em toda parte, mais ele é imperceptível e
dissimulado. E agora entramos na parte de Ser
e Tempo que retoma, sem citar, o
texto de Plutarco indicado acima, o De
garrulitate. O § 35 escrito por
Heidegger tem a mesma estrutura e andamento igual ao do tratado plutarquiano.
Indiquei, ao passar por aquele texto que o primeiro ponto nele inscrito é a
dificuldade de curar o palavrório, visto que a doença está inserida no
instrumento da cura, o logos que deve ser ouvido pelo enfermo. Este não escuta
porque tem toda a sua alma voltada para a lingua. Heidegger, no início de seu
parágrafo distingue entre escutar e ouvir.
Ouvir e compreender agarram-se ao que se diz, enquanto
se diz. Não ocorre preocupação imediata com o objeto, com o que se diz. Quando
alguém fala sem prestar atenção ao que é falado, apenas transmite e repete a
fala. Quanto mais pessoas ouvem um discurso, mais ele toma um caráter
autoritário, isto é assim porque assim se diz. Essa parolagem chega ao máximo
quanto rompe-se todo elo entre a palavra e o objeto que ela deveria colher. E a
parolagem oral ou escrita, é nutrida por leitura maquinais. Temos então a
compreensão média, repetitiva, pública. (13) Tal forma de compreender é
dogmática e dispensa todas as distinções entre a fala e os objetos. Ela é a
verdade em andamento. A garrulice não dissimula, não se esconde em nenhum
segredo, porque ela mesma já é dissimuladora. Quando um linguarudo fala, ele
esconde sem saber ou desejar o que deveria ser dito, joga um véu de sons acima
dos entes que deveriam ser pensados. Quando fala o tagarela, ele impede toda
discussão posterior. “Tudo está dito”. E nada deve ser perguntado. Desaparece o
segredo no mais banal, na opinião publica. ([19])
No De
garrulitate, Plutarco afirma que
uma doença muito próxima, ou gêmea do falatório é a curiosidade. ([20])
O tratado em que o moralista analisa a curiosidade possui acentuado sentido
político entre os gregos. Como indica Dumortier ([21])
a prática da polupragmonsune ([22])
reside na tendência a se imiscuir indiscretamente nos assuntos alheios, sejam
eles privados ou públicos. Os atenienses criaram inclusive um termo para
designar o sujeito que especula o que não lhe diz respeito: sicofanta (na
origem, com bastante probabilidade, sicofanta era o delator dos que roubavam
figos, nas comédias de Aristófanes os delatores e os sicofantas são
ridicularizados). O emprego de alcagüetes marcava os tiranos. Na República, justamente quando Platão traça a pintura sinistra do
tirano, entra a imagem dos mercenários que, caso sua terra possua cidadãos
prudentes e sábios, dela saem para servir em terra estranha “como ladrões,
furadores de muralhas, cortadores de bolsas, afanadores de roupas, pilhadores
de templos, praticantes de tráfico escuso; por vezes, caso sejam capazes de
falar, tornam-se sicofantas, falsas testemunhas, agentes da corrupção”. ([23])
Esta gente é empregada pelo tirano para dominar os cidadãos livres da polis. De
importância estratégica, no entanto, a atividade de sicofanta, delator a soldo
do tirano. Mas para delatar é preciso seguir o segredo onde ele se encontra.
A diatribe de Heidegger contra o palavrório (Gerede) tem origem em Platão, por mais que o pensador
germânico se coloque em sentido contrário ao autor dos Diálogos. No que tange ao palavrório da massa, da imprensa e
dos universitários modernos, combatido por Heidegger, a origem da crítica se
localiza em Platão, tanto na República quanto nas Leis. No caso das Leis, a base do processo contra o falatório situa-se na
crítica endereçada aos poetas, quando estes últimos abalam a medida prudencial
a que deveriam se submeter, ameaçando a vida pública.
A justa medida, diz Platão, é essencial na ordem
política como também nas relações do corpo (alimentos) ou técnicas (nos navios,
não se pode usar mais velas do que o preciso), na alma não podem ser usufruídos
direitos excessivos. Sem justa medida tudo se inverte. Alí a abundância de
carnes que leva à doença, aqui a ilimitação (hybris) que gera a injustiça
(adikia). A alma dos jovens não pode suportar o peso do poder, logo ela é
infectada da mais grave doença, a desrazão (anóia). Contra tais excessos cabe
ao legislador prudente, graças à justa medida, tomar precauções.
E chega o instante dos pesos e contra pesos do poder.
Em Esparta, em vez do rei único, existia uma dupla de reis, o que restringe o
poder à justa medida. Além disso, o voto de 28 anciãos que possuem, nos
assuntos mais graves, poder igual ao dos reis. Há um terceiro salvador (σωτήρ),
com o poder dos Eforos, um poder que se aproxima do sorteio. Assim, o governo
de Esparta é uma combinação de poderes que leva à salvação própria. Juramentos
não controlam a alma de um jovem candidato à tirania. Importa limitar a medida
dos poderes, fundir num só os três poderes.
No mundo conhecido, adianta Platão, existe de um lado
o poder autocrático dos Persas e o temperado de Esparta. É preciso sempre o
tempero, o acorde correto. Esta teoria do poder tem como pressuposto uma visão
do universo e da sociedade como harmonia. E na ordem política, deve ser mantida
a ordem antiga sob o domínio das antigas leis. Nela o povo não tinha soberania
(ele não era κύριος) nos assuntos, mas era escravo voluntário ( ἑκών) das leis.
Quais leis seriam as referidas? As relativas à música.
Na época antiga a música era dividida segundo espécies e formas próprias. As
preces aos deuses eram uma espécie de canto, os hinos. Depois havia uma espécie
de canto oposto: lamentos chamados “trenos”. Os peans eram uma espécie
distinta, outra ligada ao nascimento de Dionisos seria o ditirambo, etc.
Reguladas as coisas não era permitido abusar de uma das formas, transpondo-a
para outras. O poder de julgar sobre elas e julgar com conhecimento de causa e
punir os transgressores não pertencia às vaias ou aplausos, mas era decidido
por homens sábios naquela cultura que tudo ouviriam em silêncio e, com a
varinha nas mãos, estabeleceriam a ordem e advertiriam as crianças e a seus
professores. Esta a ordem aceita pelos cidadãos, sem que eles tivessem a
audácia de recorrer à gritaria para dar sua opinião.
Os poetas foram os primeiros a quebrar as leis da
música. Eles eram dotados para a poesia mas nada conheciam da Musa enquanto
fonte de legitimidade e fé pública, eles misturam as formas e levam tudo a se
confundir, pretendem mentirosamente, em sua desrazão involuntária, que na
música não existe lugar para alguma retidão e que, além do prazer que se
encontra no seu gozo, não existe meio correto de decisão, melhor ou pior. Eles
inculcam na massa (πολύς) o hábito de infringir as leis e a audácia de se
acreditar capaz de decidir. Resultado: antes, o público não falava no teatro
(era ἄφωνος), depois, começou a falar como se entendesse para saber o que é
belo na música, ou não, surge então uma “teatrocracia” (θεατροκρατία) depravada
que substitui o poder dos melhores juízes. Se apenas em música, e em música
apenas, surgisse uma democracia composta por indivíduos de uma cultura liberal,
não ocorreria algo tão desastroso. Mas na verdade é pela música que se iniciou,
entre nós, com a crença na sabedoria de todo mundo para julgar, a atitude
subversiva. Nenhum medo os retinha, pois se acreditavam sábios, e esta ausência
de medo gerou a impudência, na audácia de não temer a opinião de quem vale mais
do que nós, eis a impudência detestável, efeito da audácia de uma liberdade
cuja arrogância é levada ao excesso.
Embora seja possível recolher nos textos platônicos
muitos elementos no sentido de nos aproximar sobre o silêncio (A Carta Sétima é
um passo decisivo na condenação da escrita e da fala excessivas) também é
permitido ler os Diálogos como prelúdio do mundo em que são votados ao silêncio
involuntários todos os que se encontram no terreno da alteridade, todos os que
não entram no campo do que supostamente é normal. Tomemos a exigência platônica
de silêncio dos não especialistas em filosofia ou música (para Platão, as duas
ordens se confundem). Poderíamos nos espantar se no século dezoito, na
Inglaterra e França, o teatro seja uma ocupação destinada ao consumo da elite
nobre ou econômica. Os lugares são caros. Mas existe espaço para os
“negativamente privilegiados” (o termo é de Max Weber), como em Paris, na
platéia, os lugares em pé para os da classe média, estudantes e intelectuais.
Em 1781 a Comédie-Française se instala em novo edifício e a platéia é provida
de assentos. Com a nova disposição do mobiliário, aumenta o silêncio no teatro.
Como diz um comentador, “não existem mais gritos vindos do fundo da sala, nem
gente que comia em pé, assistindo as peças. O silêncio do público parecia
diminuir o prazer de assistir uma representação. Esta reação nos permite
adivinhar o sentido da participação do público”. Na Inglaterra, os nobres
tinham assento no palco. Eles faziam o que quisessem naquele espaço: gritavam
para seus amigos, misturados aos atores. Havia uma troca de conivências, não
apenas entre atores e nobres, como entre atores e público geral. Este, por sua
vez, mantinha o auto-controle. “Era objetivo e muito crítico em relação aos
atores e atrizes que o faziam chorar. O público queria interferir diretamente
com o ator; e o fazia graças a um sistema de ´pontos´ e um sistema chamado settling
(literalmente, regulação de contas)”. Voltando a Paris, ainda no século 18.
Numa das Cartas Persas o herói de Montesquieu vai à Comédie-Française e alí
“não distingue os atores na cena e os espectadores na sala. Todo mundo se
exibe, assume poses, se diverte. A distração, a tolerância cínica, os prazer
partilhado em companhia dos outros, tais são alguns dos sentimentos contidos na
concepção comum do homem ator”. ([24])
No século 19 as mutações do espaço social e das artes,
permite o surgimento de um desdobramento dos indivíduos, entre atores e não
atores. “Quando a personalidade irrompe no domínio público, a identidade do
homem público se desdobra. Certa minoria de indivíduos continua a se exprimir
ativamente, perpetuando a tradição de homem ator instaurada no Antigo Regime.
No meio do século 19, esta minoria é constituída de atores profissionais. Mas,
paralelamente, se forma uma nova espécie de espectador. Este espectador não
participa da vida pública, mas se abriga para melhor observá-la. Pouco seguro
de seus próprios sentimentos (…) este homem à diferença do homem do Antigo
Regime tem sua realização pública não mais em seu ser social, mas em sua
personalidade. Se ele se mantem disciplinado e sobretudo silencioso em público,
ele viverá coisas que não pode viver por si mesmo”. O espectador, indivíduo
isolado, ao se tornar passivo, espera sentir mais. “Olhar a vida que passa em
silêncio, eis o que significa para este indivíduo a ´liberdade´ ”. Então,
“observadores silenciosos freqüentam o espaço público (…) as necessidades
projetadas sobre o ator se transmutam, os espectadores se fazem voyeurs. Eles
se isolam uns aos outros e se liberam por uma espécie de fantasia ou sonho
desperto, olhando a vida que passa na rua. Temos aqui, em germe, o paradoxo
moderno do isolamento no interior da visibilidade”. ([25])
Em Ser e Tempo, não por acaso, a análise da existência cotidiana,
onde se exerce o domínio do “se” sobre as vidas públicas e particulares, antes
de entrar no domínio do falatório Heidegger examina o olhar. Como sempre, seu
empréstimo não confessado a Platão e a Plutarco faz o leitor não perceber que
se trata, no caso do olhar, do velho tema da vista curiosa, maldosa, que busca
ver o que se passa na casa alheia, ignorando a própria. Em Plutarco, os olhos
reúnem duas formas de atenção: a pesquisa (zetesis) e a curiosidade, a chamada polupragmosine. Enquanto
o zetetés, o investigador, usa os olhos para captar o permanente e atinge um
conhecimento dificilmente comunicável, o curioso atarefado recolhe informações
sobre tudo e todos, sobremodo das coisas e atos sem relevância para o Bem. Ao
redor da mesma imagem, vemos se produzir, na crítica do conhecimento e da
moral, duas atitudes diferentes. A mente curiosa, afirma Plutarco, é como a
Lâmia mitológica. “Quando dormia em sua casa, ela depositava os olhos num vaso.
Saindo, Lâmia os colocava em seu rosto e podia ver”. Todos os homens, quando
não se dedicam à pesquisa e à virtude, são Lâmias : “cada um de nós…pratica a
indiscrição maldosa com o olho, esquecendo as próprias faltas e taras por
ignorância (agnóia), porque não tem o meio de vê-las e de esclarecê-las”. (De
Curiositate, 2).
A pesquisa leva ao descobrimento de tudo, trazendo
para os olhos as formas permanentes das coisas. Enquanto isso, “curiosidade é a
paixão de conhecer o escondido e o dissimulado. Mas ninguém esconde o bem que
possui. Às vezes nos atribuímos um bem que não temos. O curioso, em seu desejo
de saber o que vai mal entre os demais, é tomado pela maldade, irmã da inveja e
da calúnia. Porque a inveja é a tristeza causada pelo contentamento alheio e a
maldade é alegria pela sua infelicidade. Ambas nascem de uma cruel paixão, a
ruindade” (De Curiositate, 6). Plutarco tem cura para a curiosidade : a própria
pesquisa. Quem se acostumou ao mal curioso, deve curá-lo de modo homeopático. O
tratamento consiste em “transferir a curiosidade, transformando-a em gosto da
alma por assuntos honestos e agradáveis : seja curioso do que se passa no céu e
na terra, nos ares e no mar, os segredos da natureza, pois esta não se
enraivece quando eles são roubados…”. (De Curiositate, 5). ([26])
Como último elemento a ser tratado, recordo o imenso
autoritarismo presente em todos os projetos de impor o silêncio aos que escapam
ao controle da boa norma. Poderia falar sobre a censura, o segredo, molas da
razão de Estado moderna, sempre com o fito de fornecer aos governantes maior
força física, impostos, leis contra os governados. Carl Schimitt chama a
burguesia de “classe discutidora” (26) retirando este epíteto de Juan Donoso Cortés,
o famoso autor do Discurso sobre a Ditadura que inspirou não apenas o fascismo
e nazismo ao modo de Schmitt mas também todas as ditaduras que infernizaram o
século 20, em especial na América do Sul e no Brasil. Com os tanques, a
discussão termina, vem o golpe de Estado “redentor”.
“Uma boa parte do prestígio de que gozam as ditaduras
deve-se ao fato de lhes ser concedida a força concentrada do segredo, que nas
democracias se reparte e se dilui entre muitos. Com sarcasmo diz-se que nas
democracias tudo se dilui em palavrório. Todos falam demais, todos se
intrometem em tudo, nada acontece que não se saiba previamente. Tem-se a
impressão de que a queixa se origina da falta de decisão, quando na verdade a
decepção tem sua origem na falta de segredo. Estamos dispostos a tolerar muitas
coisas, desde que elas sejam impostas com violência e em segredo”. Estas frases
tremendas de Elias Canetti são precedidas de outras, não menos temíveis no
capitulo intitulado “O segredo”, de Massa e Poder : “uma das características do
poder é a distribuição desigual do calar das intenções. O poderoso cala, mas
não permite que os demais se calem. Ele mesmo deve ser o mais reservado de
todos. Ninguém pode conhecer suas convicções nem suas intenções”. E adiante, ao
falar dos tiranos antigos e modernos, diz Canetti que “o poder do silêncio
sempre é altamente apreciado. Significa que se é capaz de resistir aos
incontáveis motivos externos que nos induzem a falar (…) o silêncio pressupõe
um conhecimento exato daquilo que não se diz. Como na prática não se emudece
para sempre, faz-se uma opção entre o que se pode dizer e o que não se diz.
Silencia-se o que melhor se conhece. É algo mais preciso e também mais precioso
(…) o silêncio isola, quem cala está mais solitário do que os que falam. Assim,
atribui-se a ele o poder da singularidade. Ele é o guardião do tesouro e o
tesouro está dentro dele”. ([27])
[1]
“Attempts to censor the commercial press proved
unsuccessful, particularly given the fragmented nature of the Reich and its
ease of access to the relatively free Dutch papers. Recent research on the
growth of the regular press has dispelled the belief that the German public was
primarily interested in literature and that intellectual discussion was
restricted prior to the Enlightenment and the establishment of reading
societies (Lesergesellschaften) and spread of
free-masonry in the late eighteenth century. There were already at least sixty
newspaper publishers in the Reich by 1700, and though their papers generally
had limited print runs, each copy was read by ten or more people. A separate
journal literature had been growing since 1682 and by 1720 about 1,000 new
journals and books were published each year, rising to 3,200 by 1791.
Individual library holdings could be substantial, with that opened to the
public in Ludwigsburg in 1765 containing 120,000 volumes by 1787 (or ten times
the number at the nearby Tübingen university!). Though an estimated 3.5 million
Germans (about 15 per cent of the total) could read by 1700, the main markets
for these publications were the 80,000 educated intellectuals and
100,000 aristocrats. Though small, these
were influential groups and territorial governments expended considerable
effort trying to convince them of the
legitimacy and efficacy of their
policies.” Cf. Peter H. Wilson : Absolutism in Central Europe (London, Routledge, 2000), página 82. Nota bibliográfica do autor : “The problems of censorship
are exemplified in P.S. Spalding, Seize the book, jail the author. Johann Lorenz Schmidt
and censorship in eighteenth-century Germany (West Lafayette,
1998)”
[2] Cf. John Christian Laursen e Johan van der Zande : Early French and German Defenses of
freedom of the press (Leiden/Boston, Brill Ed., 2003).
[3]
Para todos os pontos mencionados, e também para
muitos que serão referidos adiante, cf. E. Emery: História
da Imprensa nos Estados Unidos
(RJ, Editora Lidador. 1965).
[4] Emery, página 15.
[5] Emery, op. cit. p. 17. Notemos que o sinal positivo é
posto exatamente no plano em que Carl Schmitt e todos os pensadores da Contra
Revolução (especialmente Donoso Cortés) consideram o ápice da decadência
moderna, ou seja, o liberalismo e a prática da discussão interminável. Donoso
chama, o que é várias vezes recordado por Schmitt, a burguesia de “classe
discutidora”, o que adia interminavelmente a decisão. Elias Canetti chama
justamente de ditatorial o elogio das poucas palavras.
[6] Emery, página 18.
[7] Cf. Etienne Thuau :
Raison d´ État et pensée politique à l ´époque de Richelieu (Paris, Albin Michel, 2000), página 166 e seguintes.
[8] Thuau, página 172.
[9] op. cit. página 174.
[10]
Emery, páginas 34 e 35.
[11] Uso a tradução italiana do texto, saído na coletânea
Morale e Criminalità (Milano,
Rizzoli, 1976), página 71 e seguintes.
[13]
Peri adoleskias (De garrulitate).
Uso aqui a edição das Moralia da Loeb Classical Library, Volume VI, Trad. W.C.
Helmbold (Cambridge, Harcard university Press, 1970), páginas 396 e seguintes.
[14]
Brincando com termos de medicina, Plutarco diz
que o nome da doença do falador é asingesia, ou seja, impossibilidade de manter silêncio. O outro
lado da mesma doença seria a anekoía, inabilidade para escutar. Resulta numa doença,
também nomeada por Plutarco, a diarréousi, diarréia da lingua. Nota de Helmbold.
[15]
Sobre o tema, a bibliografia é imensa. Não
pretendo discutir tais pontos que exigem competência e cautelas próprias. Uma
análise cuidadosa encontra-se nos textos de Pedro Lain Entralgo. Refiro-me
especialmente ao seu livro : La Relación médico-enfermo. historia y Teoria (Madrid, Alianza
Ed., l983), especialmente nas páginas 40, 88, e 3l3 ss. “…o silêncio é como o
humus em que germinam e assumem sentido as palavras pronunciadas, quando estas
são algo mais do que simples algaravia gárrula, quando a fala, Rede diria Heidegger, não se
transformou em Gerede (palavrório)”. (página 3l3). Outro escrito do mesmo
autor trata deste problema: La Curación por la Palabra en La Antiguedad Clásica (Barcelona,
Editorial Anthropos, l987). Particular proveito para nosso tema fornecem as
paginas l54 e ss. “…para Platão, o agente catártico que a ‘doença da alma’
requer é a palavra idônea e eficaz. Impondo evidências ou infundindo
persuasões, a expressão verbal de quem saiba ao mesmo tempo ser professor e
médico —’psicagogo’, diria Platão— é capaz de reordenar as almas que sofrem de
ametria e reintegrá-las em seu verdadeiro ser”. (páginas l54-l55). Para a
imagem, cf. Louis P. Les Métaphores de Platon (Rennes, Impriméries Réunies,
l945): “Le Discours”. Também Taillardat, J. Les Images d’Aristophane (Paris, Le Belles
Lettres, l965). “Le Flot des Paroles” e “Le Bavardage”.
[16]
Plutarco
cita Aristóteles que, na Ética a Nicômaco (Livro IX, 1166 a31, 1170 b7) afirma “O homem bom
experimenta vários sentimentos para consigo mesmo e porque ele sente para com o
seu amigo do mesmo modo que sente por si mesmo (porque um amigo é um outro eu),
a amizade também é pensado como consistindo em um ou outro desses sentimentos,
e julga-se a posse deles como um teste de um amigo”. Uso a edição da Loeb
Classical Library : Aristotle, Nicomachean Ethics, Volume XIX (Ed. H. Rackham),
(London, Harvard University Press, 1990), página 535.
[17]
Desse enunciado, uma tradução bem fundamentada
encontra-se no Tractatus Logico-Philosophicus de Lugwig Wittgenstein :
“Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen”. Na tradução de C.K.
Ogden: “Whereof one cannot speak, thereof one must be silent.” Cf. no seguinte
site : http://www.kfs.org/~jonathan/witt/tlph.html Para uma análise
interessante, Cf. Sandra Laugier: “Le secret et la voix du langage ordinaire”,
in Modernités,
Dossier Dire le Secret (2002). Também no seguinte endereço eletrônico :
http://formes-symboliques.org/article.php3?id_article=154#nh62 Cf. também, em
outros parâmetros, Emmanuel Rouillé, «Le Secret et l’Aléthéia grecque», Le Portique, Recherches 2 –
Cahier 2 2004, endereço eletrônico.
http://leportique.revues.org/document465.html.
[18]
“Aujourd’hui (…) il règne dans nos mœurs une
vile et trompeuse uniformité, et tous les esprits semblent avoir été jetés dans
un même moule : sans cesse la politesse exige, la bienséance ordonne : sans
cesse on suit des usages, jamais son propre génie. On n’ose plus paraître ce
qu’on est ; et dans cette contrainte perpétuelle, les hommes qui forment ce
troupeau qu’on appelle société, placés dans les mêmes circonstances, feront
tous les mêmes choses si des motifs plus puissants ne les en détournent. (…)
Les soupçons, les ombrages, les craintes, la froideur, la réserve, la haine, la
trahison se cacheront sans cesse sous ce voile uniforme et perfide de
politesse, sous cette urbanité si vantée que nous devons aux lumières de notre
siècle. On ne profanera plus par des jurements le nom du maître de l’univers,
mais on l’insultera par des blasphèmes, sans que nos oreilles scrupuleuses en
soient offensées. On ne vantera pas son propre mérite, mais on rabaissera celui
d’autrui. On n’outragera point grossièrement son ennemi, mais on le calomniera
avec adresse. Les haines nationales s’éteindront, mais ce sera avec l’amour de
la patrie. A l’ignorance méprisée, on substituera un dangereux pyrrhonisme. Il
y aura des excès proscrits, des vices déshonorés, mais d’autres seront décorés
du nom de vertus ; il faudra ou les avoir ou les affecter.” Rousseau: no texto
premiado pela Academie de Dijon (1750) : Si le rétablissement des sciences et
des arts a contribué à épurer les mœurs. E na Carta a d´Alembert: “Si nos
habitudes naissent de nos propres sentiments dans la retraite, elles naissent
de l ´opinion d´auttrui dans la société. Quando on ne vit pas en soi, mais dans
les autres, ce sont leurs jugements qui réglent tout, rien ne parait bon ni
désirable aux particuliers que ce que le public a jugé tel, et le seul bonheur
que la plupart des hommes connaissant est d´etre estimés heureux”. Pléiade, V.
V (Paris, Gallimard, 1995), páginas 61-62. No Discurso sobre a desigualdade:
“le sauvage vit en lui-même; l’homme sociable toujours hors de lui ne fait
vivre que dans l’opinion des autres, et c’est, pour ainsi dire, de leur seul
jugement qu’il tire le sentiment de sa propre existence”. Comentário: o homem
social se esvazia nas multiplas opiniões. Cf. P. Burgelin : La philosophie del ´existence de
J.-J. Rousseau (Paris, Vrin, 2005 ). Também, Hartle, A. : The modern self in Rousseau´s
´Confessions`. A reply to St. Augustine. (Indiana, University of notre
Dame Ed., 1983).
[19]
Exemplo excelente dessa parolagem é indicado por
Tomas Hobbes : “Na maioria das pessoas (…) o costume tem um poder tão grande
que se a mente sugere uma palavra inicial apenas, o resto delas segue-se pelo
habito e não são mais seguidas pela mente. É o que ocorre entre os mendigos
quando rezam seu paternoster. Eles unem tais palavras e de tal modo, como
aprenderam com suas babás, companhias ou seus professores, e não têm imagens ou
concepções na mente para responder às palavras que enunciam. Como aprenderam, ensinam
a posteridade. Se levarmos em contra os enganos do sentido e como os nomes
foram inconstantemente determinados, o quanto estão submetidos ao equívoco e o
quanto se diversificam pela paixão (raramente dois homens concordam sobre o
chamado bem e mal, o que é liberalidade, prodigalidade, valor ou temeridade) e
o quanto os homens são sujeitos ao paralogismo ou falácia no raciocínio, posso
concluir de certa maneira dizendo que é impossível retificar tantos erros de um
só homem, como devem proceder daquelas causas, sem começar de novo dos
verdadeiros fundamentos iniciais de todo conhecimento, os sentidos; e, em vez
de livros, ler ordenamente as nossas próprias concepções; nesse sentido eu
entendo o nosce teipsum”. The Elements of Law, 1, 5. “Of Names, Reasoning, and Discourse of
the Tongue”. Electronic Text Center, University of Virginia Library.
(http://etext.lib.virginia.edu/toc/modeng/public/Hob2Ele.html)
[20]
De Platão até hoje, a opinião (doxa) deve ser
combatida pela ciência. Em Hegel, a opinião pública (Die öffentliche Meinung) ao mesmo tempo
carrega elementos verdadeiros e incertos, produtos da raciocinação sem
profundidade (o famoso Räsonieren, forma inferior da Razão). Uma pessoa ponderada não
leva a sério a opinião pública, pois a própria opinião pública engana a si
mesma. É preciso apreciá-la, pensa Hegel, mas também desprezá-la. Para que algo
verdadeiro ou grande seja feito, é preciso que o sujeito tenha independência
(Unabhängigkeit) diante dela. Ligada à opinião pública, a imprensa é o lugar do
limitado, contingente, com infinita diversidade de conteúdo e modos de falar. O
modo científico rompe com as alusões, as palavras postas pela metade. Ele exige
uma expressão sem equívoco. Cf. Grundlinien der Philosophie des Rechts in Werke
in zwanzig Bänden (FAM, Suhrkamp Verlag, 1975), V.7, §§ 316 a 319, páginas 483
e seguintes. Trad. Robert Derathé, Principes de la philosophie du droit (Paris, Vrin,1975)
páginas 318 e seguintes. Estamos a um passo da noção de ideologia e de opinião
pública enquanto falsa consciência. Cf. Habermas, J.: Mudança Estrutural da Ordem Pública (RJ, Tempo
Brasileiro Ed., 1984), página149. E também Norberto Bobbio : Saggi sulla scienza politica in
Italia, (Torino, Laterza, 2 ed., 1996). Bobbio compara nesse livro as teorias
da ideologia em Marx e Pareto.
[21]
“À garrulice se apega um mal que não lhe é
inferior, a curiosidade (periergia): deseja-se saber muito, para muito falar, São
especialmente histórias de segredo e de coisas escondidas, das quais se deseja
encontrar os traços enfiando as fuças em todas as direções (…) Diz-se que as
enguias do mar e as víperas morrem ao dar a luz aos seus filhotes; assim, os
segredos, ao escapar, arruinam e destroem os que não os guardam”. Cf. De garrulitate, 12 citado aqui em Plutarque Oeuvres Morales, TomeVII-1,Trad.
Jean Dumortier (Paris, Les Belles Lettres, 1975), página 242
[22]
Op. cit.
páginas 261 e seguintes.Além de Jean Dumortier, cf. Adkins, A. W. H.
“Polupragmosune and ‘Minding One’s Own Business’: A Study in Greek Social and
Political Values.” Classical Philology 71 (1976) páginas 301-27.
[23]
“…hoia kleptousi toichôruchousi,
ballantiotomousi, lôpodutousin, hierosulousin, andrapodizontai: esti d’ hote
sukophantousin, ean dunatoi ôsi legein, kai pseudomarturousi kai dôrodokousin”.
República, IX, 575 b. Uso o
texto do site Perseus. Cf. a tradução francesa de Leon Robin, Oeuvres complètes de Platon (Paris, Gallimard,
1953), Coll. Pléiade, Volume I, página 1180.
[24]
Todos esses pontos são extraídos de Richard
Sennett, Les
tyrannies de l´intimité
(Paris, Seuil, 1979).
[25]
Sennett, op. cit. página 152 e seguintes.
[26]
Utilizo a edição Belles Lettres : De la Curiosité, traduzido por
Dumortier, J. Cf. Plutarque Oeuvres Morales. T. VII, Première Partie,
1975, páginas 266 ss. Na Encyclopédie, o verbete “Curiosité” é quase todo extraido de
Plutarco pelo Chevalier de Jaucourt: “A curiosidade inquieta de saber o que os
demais pensam de nós, é o efeito de um amor próprio desordenado. O imperador
Adriano que nutria ternamente esta paixão, deve ter sido um mortal muito
infeliz. Se tivessemos um espelho mágico que nos revelasse a toda hora as
idéias dos outros sobre nós seria bom quebrá-lo sem usá-lo. (Este enunciado
repete Francis Bacon, RR).A curiosidade de algumas pessoas que sob pretexto de
amizade informam-se com avidez sobre nossos assuntos, projetos, sentimentos, e
segundo o poeta: Scire volunt secreta domûs, atque inde timeri…é um vicio
vergonhoso.(..) Mas prefiro me fixar na curiosidade digna do homem e a mais
digna de todas é o desejo de aumentar os conhecimentos, seja para elevar o
espirito rumo às mais altas verdades, seja para torná-lo útil aos concidadãos”.