terça-feira, 6 de agosto de 2013
Blog do Tarso: Corrupção, patrimonialismo e nepotismo nos concursos públicos acadêmicos?
Extraído do Blog do Tarso:
Corrupção, patrimonialismo e nepotismo nos concursos públicos acadêmicos?
Dois textos da coluna Prosa do O Globo discutem como melhorar nossos concursos públicos nas universidades públicas-estatais:
Problemas em concursos para professores são reflexo da estrutura produtivista e burocrática das universidades públicas nacionais
Por Sérgio Bruno Martins
Em artigo publicado neste caderno na semana passada, o professor Angelo Segrillo toca num ponto delicado: os processos de seleção para professores em universidades públicas. Trazendo a público um “segredo de polichinelo”, ele relata que não é raro acontecerem concursos claramente “arranjados” para favorecer candidatos ligados a grupos específicos e outras artimanhas do gênero. Contra esse quadro patrimonialista, sugere Segrillo, o ideal seria aproveitar o atual clima de insatisfação “com todo tipo de corrupção no país” para se propor mecanismos mais transparentes, impessoais e padronizados; uma possibilidade aventada é a criação, pelo Ministério da Educação, de uma comissão independente para este fim.
Em artigo publicado neste caderno na semana passada, o professor Angelo Segrillo toca num ponto delicado: os processos de seleção para professores em universidades públicas. Trazendo a público um “segredo de polichinelo”, ele relata que não é raro acontecerem concursos claramente “arranjados” para favorecer candidatos ligados a grupos específicos e outras artimanhas do gênero. Contra esse quadro patrimonialista, sugere Segrillo, o ideal seria aproveitar o atual clima de insatisfação “com todo tipo de corrupção no país” para se propor mecanismos mais transparentes, impessoais e padronizados; uma possibilidade aventada é a criação, pelo Ministério da Educação, de uma comissão independente para este fim.
Concordo integralmente com Segrillo a respeito da necessidade de
enfrentar abertamente essa questão. No entanto, creio que o enfoque na
corrupção perde de vista sua dimensão mais fundamental: a estrutura
acadêmica da qual o atual modelo de concursos públicos faz parte. A
ênfase na moralização dos concursos não só deixa intocada tal estrutura,
como tende a reforçá-la; é como se nada em seu cerne merecesse crítica,
faltando apenas azeitar melhor a máquina através de um controle mais
rigoroso das pessoas que nela operam. A palavra de ordem é
impessoalidade. Mas será que tudo realmente se resume ao erro humano? E
será que tamanha padronização não ameaçaria a diversidade de
universidades e departamentos? Não seria o caso de dar um passo atrás e
recolocar o problema dos concursos num contexto mais amplo?
Em linhas gerais, o modelo de conhecimento que rege a universidade
pública no Brasil hoje pode ser descrito como produtivista e
objetivista. Produtivista porque enfatiza a produção constante e
abundante, sobretudo na forma de artigos em revistas indexadas.
Objetivista porque toda essa produção é qualificada de acordo com uma
escala pré-estabelecida de categorias e assim traduzida em pontos. Eis o
dogma deste modelo: todo dado qualitativo será redutível a termos
quantitativos. E eis seu corolário: o valor de um pesquisador será
determinado, de forma análoga, pela soma dos pontos marcados pela sua
produção. Nasce assim o Homo lattes, um produtor de conhecimento
determinado por toda uma estrutura que não cessa de lhe dizer: “quanto
mais, melhor”.
Numa banca de seleção, isso leva com frequência à seguinte cena: ao
invés de ler, analisar e discutir o mérito e a pertinência de um
conjunto selecionado de trabalhos de um determinado candidato para a
vaga que se quer preencher, o que os examinadores fazem é somar os
pontos “contidos” em seu currículo completo (numa aberração adicional, o
candidato é obrigado a enviar de antemão um volumoso dossiê de
documentos comprovando a autenticidade de todo e qualquer item listado
em seu currículo; no trato com a burocracia, o que vige é a presunção de
desonestidade). Estranhamente, o que a banca lê durante o concurso não
são textos produzidos no dia a dia da pesquisa, mas uma prova com ponto
sorteado na véspera. Nesse insólito vestibular para professor, o que é
efetivamente avaliado é o desempenho do candidato em condições
extremamente tensas e adversas (o que, nos dias de hoje, inclui escrever
de próprio punho), e que não se assemelham a nada com que ele vá lidar
profissionalmente caso seja selecionado. Somados os pontos (sempre
eles…) de todas as etapas do processo, está escolhido, de forma
supostamente objetiva, o futuro professor.
O Homo lattes tirando uma pilha de fotocópias comprobatórias e o
professor convidado a contar pontos em currículos inchados nada mais são
do que duas imagens extremas — mas tristemente normalizadas, porque
corriqueiras — do que a academia está se tornando sob os auspícios do
produtivismo e do objetivismo. Que formação intelectual pode advir desse
contexto? Que ética do conhecimento está implícita aí? Que espécie de
saber se pode esperar desse acadêmico burocratizado? Queremos acadêmicos
conformados ao que já se conhece, ou capazes de abrir perspectivas
críticas e científicas?
É sobre perguntas como essas, e não apenas sobre remédios para a
corrupção, que o problema dos concursos deve nos fazer pensar. E, dito
isso, vale perguntar também se o patrimonialismo de que fala Segrillo é
de fato um defeito pontual no sistema, ou se ele não é em certa medida
um produto deste. Afinal de contas, não há álibi mais perfeito para os
que conhecem bem os meandros burocráticos e os meios de manipulá-los: a
escolha do professor, por mais enviesada que seja, estará sempre
legitimada de antemão pela suposta objetividade do processo. Não seria
mais interessante abandonar esse mito da objetividade de uma vez por
todas e buscar transformar os processos de seleção numa oportunidade de
cultivar discussões consequentes a respeito dos rumos de um determinado
departamento ou universidade? Será que todo argumento subjetivo deve ser
banido da discussão sob suspeita de ser necessariamente escuso? Não é
possível imaginar que uma discussão menos mediada por rankings e
pontuações possa ter o benefício justamente de trazer à luz as disputas
intelectuais e políticas que acontecem e vão continuar acontecendo?
Melhor que tentar debelar tais disputas é torná-las parte de uma
dinâmica acadêmica mais organicamente engajada com os rumos das
universidades.
Assim como o que está em jogo nas manifestações atuais não é
simplesmente a corrupção, mas sobretudo uma crise na própria estrutura
da democracia representativa (da qual a corrupção é provavelmente um dos
sintomas), o problema das universidades também não pode ser reduzido
aos desvios de conduta de grupos e indivíduos (que, quando ocorrerem,
devem evidentemente ser punidos). É verdade que uma mudança estrutural
desse patamar em nossa cultura acadêmica pode parecer com uma montanha a
ser movida. É verdade também que isso envolve certas questões que
extrapolam o âmbito da universidade (por exemplo: até que ponto é
possível resguardar a singularidade profissional do professor
universitário em meio às leis que regem o funcionalismo público?).
Porém, e creio que aqui estou novamente de acordo com Segrillo, o
silêncio certamente não serve ao interesse comum.
Sérgio Bruno Martins é doutor em história da arte pela University College London
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Professor critica ‘compadrismo’ na seleção de professores universitários
e aponta soluções para o problema, como a criação de comissão
independente para o assunto
Por Angelo Segrillo *
Um
segredo de polichinelo é que muitos concursos públicos para professores
universitários não são conduzidos da forma impessoal e neutra como
idealmente deveriam ser. Amiúde ocorrem casos de favoritismo de
determinados concorrentes com o resultado que nem sempre o melhor ou
mais preparado é o escolhido. Este é um problema pouco discutido
abertamente, pois mexe em interesses e estruturas de poder acadêmico.
Entretanto, é mister enfrentarmos esta questão. Nós, professores
universitários, intelectuais em geral, frequentemente acusamos os
políticos de patrimonialismo, de usar o público como se fosse privado, e
de deixar interesses privados se sobreporem ao público. Mas não será
exatamente isso que ocorre nesses casos de favoritismo, nepotismo ou
compadrio quando candidatos são favorecidos por estarem já conectados a
alguma rede, grupo ou mesmo indivíduo local?
Outra
razão por que é importante este problema ser sanado é a seguinte. Nós,
os professores universitários, os intelectuais, somos uma espécie de
“grilo falante” da sociedade, a consciência que pensa criticamente e
aponta erros e caminhos. Se nós aceitarmos este tipo de
“patrimonialismo” entre nós, como poderemos criticar os políticos por
fazerem o mesmo?
É
claro que nem todos os concursos são corrompidos, muitos concursos são
honestos e a grande maioria dos professores age honestamente. Mas há um
mal-estar entre alguns de nós de que o número de concursos “arranjados”
passa, talvez em muito, o nível do meramente esporádico.
Mas como resolver este problema? É muito difícil. Em um concurso público
para professor universitário as discussões são de um nível tão alto e
abstrato que, muitas vezes, fica complicado para pessoas de fora da área
compreender quem, por exemplo, fez uma “boa” ou “má” prova. Além disso,
em vários países o problema se apresenta de outras formas.
Esperar uma reação puramente endógena, espontaneamente surgida dos
próprios professores já estabelecidos, parece irrealista. A maioria tem
medo de mexer em um “vespeiro” desses que envolve tantos interesses e
estruturas de poder acadêmico que podem deixar marcados qualquer
eventual whistle blower “criador de problemas”.
Um caminho diferente talvez seja possível. Aproveitando até o atual
clima de insatisfação com todo tipo de corrupção no país, eu proporia a
criação de um Movimento para Prevenção de Irregularidades em Concursos
Públicos Acadêmicos, reunindo todas aquelas pessoas da área acadêmica e
da sociedade civil que considerem ser este problema sério a ponto de
merecer um tratamento em separado. Este grupo poderia estudar diferentes
experiências mundiais no campo e propor medidas para tornar os
concursos mais impessoais, impedindo “compadrios”.
A partir daí este movimento deveria conclamar o Ministério da Educação a
se juntar a esta batalha. Como é delicado para o ministério, formado
por professores universitários, “investigar” a própria classe, o
ministro da pasta poderia propor a criação de uma Comissão Independente
para Propostas de Medidas para Prevenção de Irregularidades em Concursos
Públicos Acadêmicos. Esta Comissão, a partir dos subsídios do movimento
anterior, e ouvindo setores da sociedade civil e acadêmica, sugeriria
uma série de medidas para melhoria nos concursos. E o Ministério da
Educação (assim como faz em programas como o Reuni) poderia usar o
estímulo de financiamentos extras para as universidades que adotarem os
padrões mais seguros de concursos públicos com as novas medidas
propostas. Ou seja, uma espécie de ISO 9000 de concursos como condição
necessária para financiamentos acadêmicos adicionais.
Acredito que a diminuição da corrupção em concursos seguirá o padrão da
melhoria em nosso sistema eleitoral: passará por um esforço de
centralização e padronização de processos. Na República Velha brasileira
as eleições, locais e heterogêneas, eram extremamente corrompidas, com
muitas fraudes eleitorais. Foi com a criação de uma justiça eleitoral
central nos anos 1930, com padrões uniformes de segurança, que a
situação começou a melhorar. Uma justiça eleitoral centralizada e
independente até hoje é uma das razões dos nossos progressos nesta área.
Igualmente, o Ministério da Educação deverá usar os incentivos que
possui centralmente para estimular as universidades do Brasil a aderirem
a este sistema mais seguro. Sem este estímulo mais centralizado de cima
será difícil obter uma melhoria na situação de centenas de concursos
fragmentados em estruturas locais de poder acadêmico, dispersas e
independentes umas das outras. Uma das medidas que podem ser tentadas é
criar a figura do “inspetor” nas bancas de concursos: um membro da banca
(preferencialmente de fora da área do concurso, para evitar pressões)
cujo principal papel seria de verificar que o processo está ocorrendo de
acordo com os padrões de impessoalidade e sem favoritismos.
Sem cair na tentação da caça às bruxas
O principal é que, aproveitando o atual momento de repensar o Brasil, venha à tona para discussão este problema dos concursos acadêmicos. E que se crie um movimento para encaminhamento de propostas de solução. Este será o passo mais difícil.
O principal é que, aproveitando o atual momento de repensar o Brasil, venha à tona para discussão este problema dos concursos acadêmicos. E que se crie um movimento para encaminhamento de propostas de solução. Este será o passo mais difícil.
Finalmente, um dado que considero essencial. Em todos estes movimentos,
acho que o importante é discutir apenas medidas institucionais para
melhorar os concursos vindouros. De modo algum se deve cair na tentação
da “caça às bruxas”, de buscar concursos no passado onde houve
favoritismo. Isso só levaria a discussões de caráter pessoal, com dedos
sendo apontados, mas com evidências difíceis de serem provadas. Em vez
de perder tempo com mesquinharias pessoais do passado (o que dividiria o
movimento e jogaria professor contra professor) deve-se concentrar em
medidas institucionais, impessoais para melhorar os concursos do futuro.
Considero este o caminho mais produtivo.
Angelo Segrillo é professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo