A gênese golpista da Constituição
Para o professor Roberto Romano a convocação e a condução da Assembleia Constituinte foram marcadas por práticas tipicamente ditatoriais
Por: Ricardo Machado
“Julgo ser importante definir a gênese dessa Constituição e a
forma pela qual ela foi elaborada. Ela não resultou de um movimento que
expressasse a soberania popular. No meu entender (muito pessoal) ela
resultou de um verdadeiro golpe de Estado dado pelo Congresso Nacional
que se autoinstituiu com a condição da constituinte e autoconcedeu essa
função, reunindo parlamentares que passaram todo o regime ditatorial
servindo ao governo autoritário”, sustenta o professor Roberto Romano, em entrevista por telefone à IHU On-Line.
De posições firmes e críticas, Romano estabelece um diálogo ao longo da
entrevista trazendo exemplos históricos desses últimos 25 anos de como a
essa gênese golpista se transformou em realidade e de como essa marca
da Constituição Federal aparece na nossa vida cotidiana. Muitos dos
problemas relativos à Carta Magna surgem na própria concepção dela, como
aponta o professor: “A Constituição como está, torna tudo muito
confuso. É urgente: todas as pessoas que se consideram republicanas e
democráticas devem lutar pela convocação de uma assembleia nacional
constituinte da qual surja um documento que respeite a soberania
popular”.
O professor aponta como um dos principais desafios à nossa
democracia, justamente, a falta de republicanismo, onde as pessoas são
vistas de forma distinta, sobretudo quando se tem em conta o tratamento
dado aos políticos. “Em uma república só existem homens comuns”,
dispara. “O cidadão é obrigado a respeitar um político corrupto que se
chama de excelência e quem é honesto é desrespeitado 24 horas por dia.
Se a pessoa for de cor negra, mais desrespeitada ainda, se for pobre,
mais ainda”, complementa. Para Romano, a perda de credibilidade dos
poderes deriva da falta de clareza das atribuições específicas dos
operadores do Estado e, também, de uma postura mais crítica e autônoma.
“Essa perda de credibilidade é uma questão central quando não se tem a
definição determinada dos poderes. É bom lembrar que no Nazismo, por
exemplo, todas as leis radicais, como a racial, foram aceitas pelos
tribunais alemães. E quando se tem juízes que se curvam à razão de
Estado de quem está no poder, não existe mais democracia, não existe
mais república, nem liberdade”, avalia.
Roberto Romano cursou doutorado na École des Hautes
Études en Sciences Sociales — EHESS, França, e é professor de filosofia
na Universidade Estadual de Campinas — Unicamp. Escreveu, entre outros,
os livros Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São
Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP,
1997) e Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo:
SENAC, 2002).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Antes de entrarmos propriamente no tema da Constituição, gostaria de contextualizar o conceito grego de política?
Roberto Romano - Quando examinamos a história da
Grécia, vemos que no início havia uma cultura não igualitária. Os
aristocratas e os oligarcas dominavam o Estado e a formulação das leis,
controlavam as magistraturas. Com isso tínhamos uma apropriação muito
desigual da riqueza e da justiça. Sólon iniciou uma pequena reforma
agrária — embora se discuta se foi mesmo uma reforma agrária ou não —,
retirando dos grandes proprietários e nobres o direito de impor taxas de
juro e outros privilégios. A reforma permitiu aos pequenos
proprietários se espalharem pelo território. Isso possibilitou uma base
econômica muito forte à democracia grega. Esses pequenos proprietários,
não mais aniquilados pelas dívidas, tinham o direito de prosperar e de
exercer a cidadania. Com isso eles se dirigiram a Atenas e aí, muitas
vezes fizeram residência. Essa presença em Atenas, por sua vez,
transformou-se em um instrumento de controle das atividades do Estado.
Eclésia
A assembleia — Eclésia — resulta da modificação econômica e jurídica
na Grécia. A ideia de igualdade, na democracia grega, resulta de uma
ação de estadistas que definiram os novos rumos para a vida política. É
bom não idealizar aquela democracia, pois sempre se disse, entre
comentadores e analistas, tratar-se de um clube de cidadãos homens,
excluindo uma quantidade imensa de escravos e mulheres. Então é preciso
cautela, pois muitas vezes as críticas feitas por Platão à democracia
têm sólido fundamento. Ocorreram muitos atos tirânicos por parte da
assembleia dos cidadãos iguais. Mas, apesar de tudo, a democracia grega
tem muito a nos oferecer até hoje, sobretudo em termos do princípio da
responsabilização. Um elemento importante é que para todo cargo público
existia um exame anterior para saber se as pessoas tinham competência e
condições, inclusive éticas, para o exercer. Quando a pessoa deixava o
cargo ela também tinha que prestar contas. É preciso, realmente, ter na
democracia grega uma fonte de inspiração, mas não idealizá-la
excessivamente.
IHU On-Line – De que maneira o Iluminismo acabou influenciando a democracia que temos hoje?
Roberto Romano - O Iluminismo é bastante diverso.
No movimento das luzes há uma forma na Inglaterra, outra na França,
outra na Itália e outra ainda na Alemanha. Existem tendências que são
democratizantes e republicanas e outras conservadoras e monárquicas. O
programa de governo das luzes mais conhecido é o francês, uma tradução
para o pensamento do continente europeu das ideias elaboradas na
Revolução Inglesa do século XVII e, depois, pelo pensamento de John
Locke e Newton . Diderot , um grande admirador dos dois, segue essa
linha. Então o que se tem é a consolidação da liberdade, a ideia do
contrato entre o povo e o governante. Assim, se o rei não é fiel ao
contrato ele pode perder o cargo e, inclusive, a vida. O grande texto
que voltou à questão da accountability é de John Milton , poeta
republicano que, no texto sobre a manutenção dos cargos do rei e dos
magistrados (The Tenure of King’s and Magistrates), diz que, se o rei ou
os ocupantes de cargo público não prestam contas, perdem o cargo. Essa
ideia percorre o pensamento do Diderot, mas não o de Voltaire , Immanuel
Kant e outros. Há uma forte corrente republicana nas Luzes, mas há
também uma atitude mais cautelosa, conservadora, no movimento.
IHU On-Line – Tendo como base os 25 anos da Constituição
brasileira, que avanços podemos perceber na democracia nessas duas
décadas e meia?
Roberto Romano – Julgo importante definir a gênese
dessa Constituição e a forma pela qual ela foi elaborada. Ela não
resultou de um movimento que expressasse a soberania popular. No meu
entender (muito pessoal) ela resultou de um golpe de Estado dado pelo
Congresso Nacional que se autoinstituiu como constituinte, reunindo
parlamentares que passaram o período ditatorial servindo ao governo
autoritário. Portanto, parlamentares acostumados à servidão, mas que
foram escolhidos precipuamente para redigir a Constituição. A Carta,
portanto, desde o início tem uma história pouco edificante do ponto de
vista republicano e da soberania popular.
Na constituinte havia oligarcas que serviram muito fortemente ao
regime militar. Quando há essa reunião, surgem duas tendências distintas
em termos doutrinários. A que procurava definir os artigos da
constituição em torno da noção de Estado de Direito e a do Estado
Democrático de Direito. São duas formas opostas de pensar. A primeira
tende a valorizar a propriedade antes do ser humano. Na segunda, são
valorizados os direitos das pessoas humanas antes e acima da
propriedade. Ao longo da Constituição há parágrafos que tendem a
valorizar a democracia e a soberania popular; e outros que tendem a
definir o poder e a decisão, inclusive da Justiça, em favor dos
proprietários. Do ponto de vista social e programático, isso faz da
Constituição um documento heteróclito, sem unidade doutrinária interna.
Parlamentarismo e presidencialismo
Outro elemento complicado na história da Constituição é que ela surge
tendo em vista um regime parlamentarista — ideia geral das forças
progressistas — e, no entanto, acabou misturando presidencialismo com
parlamentarismo, o que torna as presidências da república praticamente
incapazes de governar, pois elas não têm previsão de controle. Há um
misto de regimes porque com os plebiscitos — se o país queria monarquia
ou república e parlamentarismo ou presidencialismo — venceram a
república e o presidencialismo. Como se trata de uma república
oligárquica, temos no Congresso Nacional grupos dirigentes que
pressionam o poder Executivo. Existe uma força no Congresso altamente
explosiva em relação à presidência da República. Como as prerrogativas
quase imperiais do presidente foram mantidas, o diálogo entre Executivo e
Legislativo se torna uma guerrilha perene. Quando se analisam as
emendas constitucionais uma após a outra, percebe-se que são tentativas
de impor as prerrogativas ou do presidente ou do Congresso. Uma das mais
nocivas foi a emenda da reeleição, que permitiu a Fernando Henrique
Cardoso mais um mandato e que faz, agora, com que nossos presidentes da
República, quando ainda não terminaram seu primeiro mandato, estejam
preocupados com o palanque e a demagogia para o segundo mandato. Isso
retira da presidência e do Congresso o tempo necessário para se dedicar
ao que é precípuo às suas funções, ou seja, governar.
IHU On-Line – Que tensões se estabelecem entre os poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário no sentido de garantir um Estado
democrático de fato e não discursivo? Podemos pensar em hierarquias
dentro de tais esferas?
Roberto Romano - Quando a Constituição é uma colcha
de retalhos de emendas, cuja origem política vem de um golpe de Estado,
cria-se para o Judiciário um verdadeiro palimpsesto, um puzzle. Caso
mantenha-se a Constituição como está, a cada dia haverá mais dificuldade
para que o Judiciário exerça seu múnus de maneira objetiva e
inquestionável. Tanto é verdade, que existe no plano eleitoral uma
intromissão da Justiça em atribuições que não são dela. No Maranhão a
população elegeu um governador, houve uma acusação de fraude (alguns
eleitores teriam vendido o voto) e a Justiça anula a eleição e coloca
como governadora a senhora Roseane Sarney, segunda colocada, em vez de
ouvir o povo soberano do Maranhão. A justiça tutela o eleitor e não
respeita a vontade popular. Por uma questão de forma ela abole a
soberania popular no Maranhão. Existem problemas como este pipocando
pelo Brasil inteiro. A Constituição como está, torna tudo muito confuso.
Urge que todas as pessoas que se consideram republicanas e democráticas
comecem a lutar pela convocação de uma assembleia nacional constituinte
que redija um documento que respeite a soberania popular.
IHU On-Line – Quais são os limites de nossa atual Constituição? O que dela temos de efetivo em termos de soberania do povo?
Roberto Romano – Em grandes linhas existem
princípios importantes, sobretudo os que vieram da visão do Estado
Democrático de Direito. Lembro a ideia de autonomia, que permeia muitos
aspectos da Constituição moderna, sobretudo se pensarmos na vertente
trazida por Immanuel Kant. Isso significa autonomia do cidadão, dos
municípios, dos poderes entre si e da autonomia, por exemplo, do
Ministério Público — MP, que trouxe tanto bem para o nosso Brasil e que
foi ameaçado pelo Projeto de Emenda Constitucional — PEC 37 . A
autonomia do MP vem reforçar a tese da soberania popular porque coloca
na mão do povo um instrumento de controle dos poderes.
Universidade
A ideia de autonomia da universidade só está escrita no texto
constitucional, mas não foi implementada. Boa parte da culpa não é
apenas dos governos ou dos parlamentares, mas das próprias universidades
federais. Os reitores não deixam de praticar atos ilegais, como assinar
listas públicas de apoio a candidatos à presidência da República. Em
duas ocasiões eles fizeram essa façanha de desobedecer à lei de maneira
evidente. Isso é uma prática usual, em vez de brigarem para garantir a
autonomia universitária que lhes garanta direitos, mas impõe deveres,
preferem uma audiência com o ministro da Educação para troca recíproca
de favores políticos. Há um atraso na normatização da Constituição, do
ponto de vista da autonomia universitária, que se deve tanto aos que
exercem os cargos oficiais, quanto aos que exercem os cargos na própria
universidade. Um número expressivo de universidades federais surgiu de
pactos oligárquicos entre o poder central e poderosos regionais, uma
grande parte dos que comandam estão ligados umbilicalmente às
oligarquias regionais.
Plebiscito
Existem possibilidades dentro da Constituição que podem ajudar muito o
exercício da democracia direta. A hipótese do plebiscito, aventada pela
presidente da república, é um ponto importantíssimo. Existem mecanismos
que podem ser acionados, porém se esses mecanismos integrarem uma
Constituição mais coerente, que surja da vontade da população por meio
de uma assembleia nacional constituinte, parece-me que teremos mais
possibilidade de exercitar a soberania popular doravante.
IHU On-Line – Em um artigo publicado em junho, no Jornal O
Estado de São Paulo, o senhor comenta que a Constituição está em
farrapos. Do que exatamente o senhor está falando?
Roberto Romano - Na vida jurídica moderna, existem
pelo menos duas grandes tendências para explicar a Constituição. A
primeira é a de Hans Kelsen , para quem ela é um documento que expressa o
direito e o governado deve aceitar a norma elaborada e promulgada pelo
Legislativo e sancionada pelo Executivo; a norma define o direito
interpretado pelo tribunal constitucional. Essa ideia permeia boa parte
do trabalho jurídico. Há outra tendência trazida por Carl Schmitt de
que a Constituição expressa a vontade popular e não se pode colocá-la
sob o controle do tribunal constitucional, mas daquele que expressa a
vontade soberana do povo, o chefe do Estado. Essas duas perspectivas
dominaram o século XX, inclusive no Brasil. Há vários fatos brasileiros
orientados conforme essa lógica. Francisco Campos , que ajudou a
elaborar todos os atos institucionais do regime ditatorial, segue tal
lógica. Essa forma de pensar, que define uma relação de vontade sobre a
norma, parece-me presente no Brasil. Há a necessidade de encontrar algo
que não esteja tão comprometido, como as duas perspectivas apresentadas.
Nós já temos trabalhos elaborados com alternativas às duas
perspectivas, tanto no plano internacional quanto nacional. Trabalhos
como de Ronald Dworkin abrem perspectivas inovadoras, mas ainda não
chegaram aos parlamentos, tanto regionais quanto nacional, e existe uma
distância entre o formulado nos cursos e nas pesquisas do Direito e as
práticas dos parlamentares e executivos brasileiros. Ainda levará tempo
para amadurecer entre os operadores do Estado essas novas concepções do
Direito. É fundamental que os nossos legisladores não operem segundo
parâmetros do passado, mas assumam perspectivas inovadoras.
IHU On-Line - Qual poder, no caso brasileiro, pode ser
apontado como o guardião dos direitos constitucionais? É possível pensar
em um ente estatal que seja o defensor da Carta Magna?
Roberto Romano - Se olharmos para todos os poderes
brasileiros, perceberemos falhas gritantes na tarefa de ser o guardião
da Constituição. Todo mundo conhece a história do artesão prussiano que
entrou em querela com o rei Frederico, apelando ao tribunal, e os juízes
deram ganho de causa a ele. Foi daí que surgiu a interessante frase:
“Ainda há juízes em Berlim”. Nós, como cidadãos, sentimos a falta de
proteção dos poderes em relação aos nossos direitos. A Constituição de
1934 proibia o privilégio de foro e os tribunais de exceção. O tribunal
de segurança nacional, que causou malefícios até 1968 (o AI-5), por
introduzir na política interna do país uma ideia de segurança acima dos
direitos, foi declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
Isso teve consequências gravíssimas. Quando Otávio Mangabeira foi
processado por esse tribunal de segurança houve empate entre os juízes e
o presidente da corte votou contra o réu, escândalo inédito na história
do direito. Veja como a cidadania ficou vulnerável, sem a proteção do
STF. Quando houve o golpe militar de 1964, Hermes Lima e Evandro Lins e
Silva , advogados e juízes íntegros, foram cassados e o STF tudo
aceitou, não houve contestação dessa ingerência do poder Executivo
ditatorial em relação ao Supremo. Houve aí uma situação de fato em que a
Constituição foi rasgada pelo poder ditatorial.
Economia
Os sucessivos planos econômicos — plano Cruzado, plano Collor —,
foram atos tirânicos (na definição de Jean Bodin , tirano é o que usa os
bens dos outros como seus), não teve nenhuma resposta do STF até agora.
Os sucessivos planos econômicos, no meu entender, foram sucessivos
golpes de Estado, pois feitos no segredo, anunciados de madrugada quando
os jornais e a população não poderiam mais reagir, a Justiça não
atendeu no tempo certo, gerando atos absolutamente lesivos à sociedade
sem nenhuma proteção.
O poder Executivo ainda guarda muitas prerrogativas do imperador,
tem-se a ideia de que ele é intangível. O ex-ministro Sepúlveda Pertence
tem um trabalho sobre o impeachment. Ele mostra a dificuldade que
existe para impedir um presidente no Brasil. No caso do Collor, por
exemplo, foi importante que ele não tivesse a famosa base de apoio
parlamentar. Temos uma situação que na vida cotidiana e nos grandes atos
do poder a população fica desprotegida.
Apagão
Quando houve o apagão, durante o governo Fernando Henrique Cardoso,
foi instituída uma multa ao consumidor e arguida a constitucionalidade
junto ao STF, que por sua vez deu uma sentença inaceitável do ponto de
vista republicano. A Corte disse que, se não houvesse multa, o
consumidor brasileiro não economizaria e não colaboraria com o governo. A
culpa do apagão não foi do povo, porque o povo paga os impostos. A
culpa foi da falta de investimento no setor elétrico que exigia inversão
de recursos, novas tecnologias e tudo o mais que não foi feito. Em vez
de culpabilizar quem era o culpado, o STF se voltou contra a cidadania. É
muito difícil ouvir que o STF é o protetor da Constituição, porque
protegê-la significa proteger o autor dela, que é o povo. Isso é a
decisão que Hobbes , no Leviatã (São Paulo: Rideel, 2005), define de
maneira magnífica — para que exista comunidade política é o povo que é o
autor da lei. Os governantes e os juízes são apenas os atores da lei e,
portanto, para agir precisam ser autorizados pelo povo soberano. Essa é
uma visão que no Brasil está totalmente invertida. Quando se vê um
deputado ou um vereador que exige que um cidadão lhe chame de
excelência, temos a inversão absoluta do princípio republicano. Essa
inversão, que ocorre nos cargos mais baixos de uma república, se repete
de maneira fantástica na presidência do país. A presidência age como um
imperador que controla um exército vencedor que dita as regras para
todos os Estados brasileiros, de onde surge outra ficção, que são nossas
federações. Não somos federações, somos o império do poder central.
Poderes
Sempre que comento com estudantes sobre a soberania popular, sugiro
que eles entrem em qualquer repartição pública brasileira e olhem atrás
do balcão do funcionário. Atrás de todo o balcão tem um cartaz dizendo o
seguinte: “desrespeito ao funcionário, tantos anos de cadeia”. Mas não
tem ao lado um cartaz do mesmo tamanho dizendo “desrespeito ao cidadão,
tantos anos de cadeia”. Isso mostra bem a estrutura não republicana e
não democrática do Estado brasileiro. O cidadão é obrigado a respeitar
um político corrupto que se chama de excelência, e quem é honesto é
desrespeitado 24 horas por dia. Se a pessoa for de cor negra, mais
desrespeitada ainda, se for pobre, mais ainda. Há costumes que são
feitos em nome da segurança, por exemplo, que são verdadeiros atentados
ao princípio republicano. Não é possível entrar em muitos prédios sem
tirar fotografia e mostrar o RG. Isso é um atentado ao direito de ir e
vir. Não são somente prédios particulares, mas prédios públicos, e
quando você questiona o porquê do procedimento, justifica-se que é em
nome da segurança, o que significa dizer que para aqueles servidores o
cidadão é um bandido. São medidas absolutamente antiéticas em termos
republicanos.
IHU On-Line – Que conflitos éticos se estabelecem na relação
desarmoniosa entre os poderes, embora a Constituição sustente uma
equidade entre Executivo, Legislativo e Judiciário?
Roberto Romano – A indefinição da extensão e dos
limites dos poderes gera permanentes tentativas de pequenos golpes de
Estado e há a desconfiança no exercício dos poderes. O mensalão toca
problemas éticos gravíssimos, pois trata-se de partido que é bastante
sufragado pelo eleitor, sendo que, durante boa parte do processo até o
julgamento, a sigla apregoou que se tratava de um golpe. Tal postura foi
assumida inclusive pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ,
quando afirmou que o mensalão seria uma farsa. Quando se diz que um
processo judicial que está na mais alta Corte é uma farsa, assume-se que
se trata de um golpe. É desta falta de confiança que surge a
desarmonia, pois se o STF tivesse a confiança irrestrita da cidadania,
essa acusação não teria sentido, cairia por si mesma. A dificuldade em
terminar esse julgamento mostra a desconfiança que paira sobre toda a
instituição judiciária. Desconfiança que também paira sobre o Congresso
Nacional, que está no ponto mínimo de confiança da população, e também
paira, agora, sobre o poder Executivo. Se não há a confiabilidade da
palavra dos operadores do poder nos três setores, não há a fé pública, e
sem isso não há vida social garantida.
Collor
Voltemos ao caso do golpe de Collor. Se não há confiança de que a
pessoa depositará o salário no banco e que vai recolhê-lo no mês que
vem, se ninguém vai prestar contas do dinheiro subtraído, se não há
garantia, não há confiança no poder. Em um processo de inflação, por
exemplo, muito bem trabalhado por Elias Canetti em Massa e poder (São
Paulo: Companhia das Letras, 2005)¸quando a moeda não vale aquilo que
ela anuncia, há a perda não apenas de credibilidade dos operadores
econômicos de Estado, mas uma depreciação que a pessoa sente no próprio
corpo. É um fenômeno de massa tremendo a perda de confiança no exercício
do poder. O poder te engana sob a forma do papel moeda. Essa perda de
credibilidade é central quando não se tem a definição determinada dos
poderes. É bom lembrar que no nazismo todas as leis radicais, como a
racial, foram aceitas pelos tribunais alemães. E quando se tem juízes
curvados à razão de Estado de quem está no poder, não existe mais
democracia, república e liberdade. Não chegamos ao descalabro do
desaparecimento total da fé pública, mas temos sinais muito importantes
nas manifestações que ocorreram no mês de junho.
IHU On-Line – As manifestações que tomaram as ruas do país em
junho reacenderam a centelha de uma reforma política, o que ensejou um
discurso da presidente Dilma sobre uma possível reforma constituinte —
que depois ela recuou. Que recado a crise de representação manifesta nas
ruas dá aos poderes instituídos?
Roberto Romano – Está chegando ao limite da
concessão a esses operadores ineptos do Estado brasileiro, no sentido de
que eles revertam essa situação e saiam do regime tirânico. Quando se
observam os dados de corrupção no Brasil, a quantidade de licitações
fraudulentas e a inversão de recursos nas reeleições do prefeito ao
presidente da República, percebemos que o regime político brasileiro é
aquele em que o governante usa o bem dos governados como se fossem os
seus. A população está começando a dar um basta à tirania. Os sinais
foram muito evidentes, quando os deputados e senadores começaram a falar
abertamente que queriam impor a PEC-37 para colocar um freio ao MP, que
queriam modificar a lei de improbidade administrativa. A lei de
improbidade administrativa existe há 20 anos e conseguiu condenar cerca
de 40% dos ímprobos. Isso no Brasil é um feito extraordinário, que
irritou profundamente os ímprobos, e eles anunciaram que iriam diminuir
ao máximo as determinações desta lei. Havia vontade de atenuar a lei da
ficha limpa, que estava começando a produzir resultados, e os políticos
chegaram a um ponto tal de arrogância que levantaram os ânimos da
população. A questão das manifestações é justamente o resultado do abuso
do poder nos três setores do Estado.
Poder
Parece que toda essa celeuma poderia ser melhorada, desde o ponto de
vista do popular ao do exercício do poder, se houvesse uma lei
democratizando os partidos políticos. Nossos partidos políticos não são
democráticos, porque têm dirigentes que estão no poder há décadas,
alguns há 40 anos. Seria urgentíssimo que houvesse uma lei que impedisse
a direção partidária por mais de dois anos. Com o tempo, os dirigentes
de partidos fazem relações, têm o controle do fundo partidário, das
doações, das candidaturas, dos programas de governo — que são na verdade
apenas cartas de intenção para enganar a Justiça —, têm controle das
alianças e dos cargos, ou seja, são verdadeiros proprietários de
partidos. Existem partidos que não escutam as lideranças de bases, não
existe assembleia de fato, não têm as eleições primárias, que ocorrem
nos Estados Unidos e na Europa, que permite recolher as intenções dos
militantes. Veja o exemplo clássico da Hilary Clinton , que era a
candidata clássica da oligarquia dos Democratas , e nas primárias saiu o
Barack Obama . Não digo que isso seja fantástico, eu tenho a mesma
cautela quando penso na democracia na Grécia. Mas, pelo menos, há um
controle maior da militância em relação ao movimento partidário. O que
significa dizer que há uma maior atração da população à vida política.
As pessoas que agora estão gritando fora dos partidos ou “fora os
partidos”, estariam movimentando os partidos na base exigindo reformas e
mudanças. Sem esse controle das bases, os donos dos partidos operam
como príncipes, fazendo concessões uns aos outros.
Reforma política
O princípio fundamental de qualquer reforma política seria, na
sequência da lei da ficha limpa, uma lei de democratização dos partidos
políticos, mas isso não se vê ninguém falar. O Partido dos Trabalhadores
- PT, até que o Lula chegasse à presidência da República, praticava um
certo tipo de democracia interna, ouvia os integrantes em convenções, as
discussões eram acirradas, as tendências internas e externas eram
debatidas. A partir do momento em que foi conquistado o poder federal, o
PT se tornou um partido de dirigentes, onde candidatos saem do bolso do
Lula ou de um grupo pequeno. À semelhança do que ocorre no partido dos
Tucanos, PSDB, que chegaram a definir o nome do candidato à presidência
em um jantar. Esse defeito de nossos partidos é mortal para eles, para a
democracia e lesivo à soberania popular. É por isso que parte dos
manifestantes tem verdadeira ojeriza aos partidos.
IHU On-Line – Tendo em vista o descrédito da população com as
instituições políticas de modo geral, uma reforma política seria
compatível com uma abertura maior à participação nas eleições de
candidatos sem partidos políticos?
Roberto Romano – É perfeitamente possível ter uma
democracia partidária e, ao mesmo tempo, aberta para os movimentos
sociais. O problema é que os movimentos sociais são muito mais dinâmicos
que o movimento do Estado, porque eles têm que se renovar mais
rapidamente conforme os desafios vividos pela sociedade. O outro perigo é
que mesmo os movimentos sociais podem se tornar burocratizados. Eu tive
experiência em Porto Alegre, observando o Orçamento Participativo – OP,
e me interessei muito por essa experiência e segui a literatura a
respeito. Um dia estava no ginásio de esportes, onde ocorria a reunião, e
entrou um grupo que ostentava uma faixa (vou mudar o nome para
preservar a identidade do envolvido) “A comunidade de Pedro Leopoldo
saúda os participantes”. Perguntei à pessoa que me ciceroneava: “onde é
Pedro Leopoldo?”. “Onde, não, professor” foi a resposta. “Quem é Pedro
Leopoldo. Ele é uma espécie de dono da comunidade”. Muitos dos
integrantes que iam falar ao microfone se sentiam donos do movimento.
Nessa época, a prefeitura de Porto Alegre criou um mecanismo de
distribuição de fichas aos pais para que eles não precisassem ficar na
fila para matricular os filhos nas escolas, mas os líderes comunitários
exigiam que tais fichas fossem entregues a eles. Essa prática
autoritária e, infelizmente, popular, começou a ser relativizada e
diminuída no mesmo período porque houve uma prática republicana, mais
democrática e dialogante. As pessoas tinham que decidir se o recurso ia
para tal ou tal investimento, fazendo com que elas aprendessem a viver
em democracia e ao mesmo tempo fiscalizassem a realização do orçamento. O
OP era pedagógico em todos os sentidos.
Realismo político
Quando o PT chegou ao governo federal, o OP foi praticamente
desativado. No Brasil inteiro, nesses dez anos de governo, se o OP fosse
instituído de Norte a Sul, muitos problemas já teriam sido minimizados.
A chegada do PT ao poder nacional fez surgir uma hierarquia muito
rígida, dá as cartas quem tem acesso direto ao poder. Antigamente o
partido se abria muito aos movimentos sociais e, atualmente, o próprio
Lula admite, é preciso retomar esse diálogo. É essa estrutura do Estado
brasileiro que chamo de absolutista, em que as pessoas, ao chegarem ao
poder, consideram que o poder lhes pertence, e não ao povo. Gosto de
citar um artigo de Norberto Bobbio , intitulado A praça e o palácio,
onde ele argumenta que enquanto as pessoas estão na praça consideram o
palácio corrupto e autoritário, mas quando se vai para o palácio,
pensa-se que a praça é demagógica, irrealista. A conclusão de Bobbio,
entretanto, é que é perfeita, ou seja, sem a praça e sem o palácio não
se consegue exercitar o poder democrático. Isso é o que me parece ter
acontecido com os partidos de esquerda, tanto os Tucanos quanto os
Petistas, no momento em que chegaram ao poder, pois se curvaram ao
realismo político, que supõe manter o poder dos nossos oligarcas. Ambos
os partidos passaram o regime ditatorial inteiro atacando José Sarney ,
que era um funcionário dos ditadores muito diligente, e de repente este
homem, em pleno regime democrático, vira o grande condestável da
república, a ponto de o Lula dizer que ele “não pode ser criticado,
porque não é um homem comum”. Ora, em uma república só existem homens
comuns.
IHU On-Line – Passados 25 anos da promulgação da
Constituição, que desafios estão postos à sociedade brasileira para
avançar na nossa cidadania e, particularmente, que desafios estão postos
ao Congresso Nacional?
Roberto Romano – O primeiro desafio é do pleno
respeito à soberania popular. Por enquanto, não temos essa soberania
plenamente acatada pelos operadores do Estado. O segundo desafio é
promover a federação no Brasil, dando efetiva autonomia, como preconiza a
Carta, aos Estados e aos Municípios, inclusive do ponto de vista fiscal
e financeiro. É absolutamente indecente ter uma federação na qual, a
cada período, prefeitos se dirigem a Brasília para mendigar um pequeno
aumento no fundo de participação dos municípios. Em uma federação todos
sabem que os gastos maiores e mais importantes são feitos pelos
municípios. Temos uma situação injustificável de centralização. O
terceiro ponto é a famosa reforma política, mas que não comece pelo fim e
sim pelo princípio, que é a redemocratização dos partidos políticos.
Finalmente, é preciso fazer uma espécie de reinstauração mínima da fé
pública para o Brasil. Enquanto não estiver afastado o fantasma da
reeleição, haverá sempre a propaganda funcionando, em vez de funcionarem
o ato administrativo e o ato político. É lamentável que o Brasil tenha
mergulhado na ditadura do marketing político. O último ponto é o fim do
privilégio da prerrogativa de foro. Trata-se de uma falta de
republicanismo absoluto. Não sei como o STF, quando se arroga o título
de protetor da Constituição, aceita a existência de cidadãos de duas
classes, aqueles que têm privilégio de foro e os que não têm. Isso
significa que não existe república. Esses são os desafios mais
imediatos.
Os outros não derivam da vontade popular e não dependem dos
operadores do Estado. A população está mostrando que aprendeu a tomar a
cidadania nas suas mãos, e me parece que todos os movimentos que
conseguirem apresentar reivindicações podem avançar nas demandas,
inclusive passou para 500 mil o número de assinaturas de pessoas que
podem enviar solicitações ao Congresso. Cabe 50% aos operadores do
Estado e 50% aos cidadãos, que não devem se cobrir sob o manto da
apoliticidade, pois quando se assume que não se tem nada a ver com a
política, permite-se o ato político aos ímprobos, aos autoritários e
àqueles que não têm respeito pela soberania popular.
Para ler mais
- “Somos absolutistas anacrônicos. Vivemos sempre sob o regime do favor, dos privilégios, da não república”. Entrevista com o professor Roberto Romano à IHU On-Line, edição 398;
- Filosofia não é, necessariamente, sistema. Entrevista com o professor Roberto Romano à IHU On-Line, edição 379;
- Niilismo e mercadejo ético brasileiro. Entrevista com o professor Roberto Romano à IHU On-Line, edição 354;
- De ditadores a imperadores com pés de barro. Entrevista com o professor Roberto Romano à IHU On-Line, edição 269;
- O governo do Brasil retoma a ética conservadora e contrária à democracia, o que exige da Igreja o papel vicário. Entrevista com o professor Roberto Romano publicada nas Notícias do Dia, de 14-01-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.