quinta-feira, 10 de outubro de 2013
Arquitetura do terror
Os uivos, por Rui Bebiano, Portugal
Blog A terceira noite
A partir do blogue 1 dia atrás do outro cheguei à imagem que acompanha este post. Trata-se do exterior de um banco brasileiro em Manaus. Cito: «Os sem-abrigo costumavam abrigar-se ali do sol e da chuva. O banco acabou com o “abuso” (se é sem-abrigo não se pode abrigar, ora essa)
mandando colocar pedras pontiagudas no passeio.» Segue-se a descrição
ilustrada de um caso análogo, ocorrido com uma agência local do BBVA.
Não se trata, porém, de situações raras, casuais, esporádicas, mas de um
sintoma, de uma tendência, que representa algo de avassalador para a
experiência do mundo, pelo menos do mundo «desenvolvido» num processo de
respeito consensualizado pelos direitos humanos mais elementares, tal
qual ainda há menos de uma década o podíamos entender.
No mundo que conheci até há pouco, a dimensão de solidariedade
tinha-se transformado – com a de igualdade, as coisas foram bem mais
difíceis – num fator central do comportamento partilhado dos indivíduos e
das instituições. Mesmo aqueles que na verdade a temiam ou
desprezavam, precisavam ter em conta a pressão social que considerava
intolerável o desprezo manifesto em relação aos mais fracos. O
individualismo galopante, a rápida degradação dos direitos humanos, a
desvalorização das vidas sem sucesso material, estão agora a abolir esse
código que parecia sagrado e irreversível. Os mais pobres, os menos
protegidos, os que não possuem sequer o direito à voz porque nem quem os
represente conseguem encontrar (não há sindicatos de mendigos, não
existem lobbies de desempregados, cada imigrante luta sozinho), estão
agora a ser empurrados para o fundo da escala, para vielas esconsas,
para os antros mais insalubres de miséria e morte. Como párias, seres
descartáveis que devem desaparecer de um horizonte supostamente
asséptico, pois nem capacidade de reciclagem têm. São os mendigos, são os velhos (os grisalhos, uh!), são os improdutivos. Os
que se vestem mal, têm os dentes podres, não cheiram lá muito bem. E
por isso merecem ser empurrados para longe dos olhares públicos, para
onde possam definhar e morrer sem servirem de mau exemplo para as
gerações de vencedores. Mas o pior, o pior de tudo, é esta atitude ser
estimulada, por palavras e obras, pelos governos a quem competiria em
primeiro lugar zelar por todos. Principalmente pelos mais frágeis,
aqueles que pouco ou nada podem. Sem o exemplo da misericórdia
experimentada pelo próximo, que amanhã de manhã podemos ser nós, no que
nos transformaremos afinal?
Hobbes previa que, sem a intervenção apaziguadora do Estado, do governo
de todos, tornaríamos à condição original de lobos. Já se ouvem os
uivos.