No CEB ou na Amazônia, o foco de Ryan é o paciente
Engenheiro que trabalha com manutenção de equipamentos médicos atua como voluntário em aldeias
Nunca houve uma correspondência da Embaixada de Moçambique que
retornasse para alegrar Ryan Pinto Ferreira, apesar do sonho em
participar de missões na África. O desejo de atuar em comunidades
carentes de atenção o motivava a procurar qualquer tipo de organização
responsável por missões ou expedições a lugares onde há pessoas à margem
de atendimento. Nessa busca, tomou conhecimento da organização
não-governamental Expedicionários da Saúde (EDS) e não teve dúvida, foi
realizar manutenção de equipamentos médicos na Amazônia.
Pelo
menos duas vezes ao ano, se despede da família e das atividades no
Centro de Engenharia Biomédica (CEB) da Unicamp para cuidar de parte
importante de procedimento pré-cirúrgico: a eficácia dos equipamentos.
“Quando descobri que a ONG era de Campinas, vi que, finalmente, poderia
ajudar não somente como cidadão, mas como profissional, pois os
voluntários transportam equipamentos para lá. Alguns deles chegavam a
pesar 200 quilos. Agora, com o avanço tecnológico, vamos conseguir
utilizar equipamentos compactos.”
A
Expedicionários da Saúde é uma organização humanitária que leva
atendimento cirúrgico aos povos indígenas da Amazônia. O reconhecimento
ao trabalho da ONG tomou uma página no periódico francês Le Monde, que
publicou, em setembro, uma matéria sobre o engajamento do fundador, o
médico Ricardo Afonso Ferreira.
Como engenheiro, não se contentou
em somente trabalhar para receber, pois, em sua opinião, trabalho não é
somente aquele com o qual se pode ganhar dinheiro. Até porque retorno
financeiro nunca é suficiente. “Sempre tento transmitir isso a meu
filho, Giovanni, de 15 anos, e ele já pensa em me acompanhar à
Amazônia.”
Para as atividades do outro lado do País, Ryan tem o
aval da esposa, Adriana. Até porque a casa onde moram é o local de
recepção de equipamentos que conserta para a ONG. “Sempre digo que tenho
dois empregos, pois, mesmo quando não estou em viagem, me ocupo com a
expedição. O trabalho não se restringe à manutenção. Também instalo,
embalo, carrego as imagens. Faço logística e planejamento de compra e
instalações de equipamentos. Hoje, lutamos para mudar as instalações.”
No
dia a dia, no Laboratório de Engenharia Clínica do CEB, o esmero e a
satisfação com que também executa seu trabalho evita riscos a pacientes e
profissionais do Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp. Mas quando chega
a cidades como São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, e tem a
oportunidade de assentar-se ao lado das pessoas e ser mais que um
engenheiro, acaba participando da emoção de ouvir um a um os pacientes
operados dizerem: “Estou enxergando”. “Passamos horas trabalhando para
instalação, manutenção, longe da família, dormindo mal, com riscos de
contrair doença, mas quando a gente vê o resultado, a pessoa enxergando,
é impactante. Vemos o quanto vale a pena. Aí não tem jeito, queremos
voltar.”
A expectativa toma conta de parte da equipe que não pode
assistir às cirurgias. “Há momento em que saio de cena, instalo os
equipamentos e aguardo o resultado, pois não permanecemos durante as
cirurgias, mas quando volto e vejo que as pessoas vão poder contemplar
aquele ambiente em que vivem, fico emocionado. Os índios têm o jeito
deles. São mais reservados. Muitos não demonstram o que sentem, mas
sempre alguém se manifesta.”
Ryan descobriu que não precisava ir
até Moçambique para se voluntariar. Já sabia que na Amazônia legal
havia uma lacuna governamental no atendimento a algumas comunidades. Um
olhar mais atencioso à população indígena o fez perceber que há vários
problemas sociais e culturais quando o índio tem de se deslocar para uma
cidade grande. Um deles é o alcoolismo. “É comum encontrar índio
alcoolizado no meio da rua em São Gabriel da Cachoeira, por exemplo.
Isso me faz pensar que alguns contatos com os brancos não são saudáveis.
Os voluntários geralmente procuram chegar, prestar atendimento e ir
embora, com o mínimo impacto. Um amigo dentista disse que os mais
afastados do centro da cidade apresentam menos problemas, pois vivem da
forma tradicional, usam medicamentos tradicionais. O contato tem prós e
contras. Precisa ter cuidado. Uma vez eu vi um pajé dizendo: ‘Esta
doença é de branco; tem de usar remédio de branco para curar.’ Eles
tratam de formas diferentes doenças de brancos e índios.”
Convivência
Ao
passar quase 20 dias vivendo e comendo juntos, Ryan consegue roubar
alguns sorrisos dos indígenas, principalmente as crianças. A
simplicidade que sempre teve durante sua criação e nos trabalhos sociais
em uma igreja evangélica é intensificada cada vez que passa pela
experiência. Apesar de a expedição durar sete dias, Ryan precisa chegar
alguns dias antes. “Enxergo como vivem. Vivem bem, sem luxo. Então
penso: por que preciso de luxo para viver?” A própria bagagem tem de ser
singela. Não se pode levar muita muda de roupa, pois há um peso máximo
para embarcarmos.
“Andamos de chinelos e bermuda. Metade de minha
bagagem vai com comida. A cultura diária do índio nos ajuda muito”,
brinca.
Em alguns lugares, as fotos são proibidas, pois algumas
etnias relacionam sua imagem com parte de sua alma. Ryan lembra que em
uma das expedições, ele tentou fotografar crianças que jogaram futebol
com ele, mas o pai questionou. “Mas a mãe falou braba com ele, na língua
dela, e autorizou a foto.”
A aproximação nem sempre é rápida, mas
alguns meios são usados para que os indígenas aceitem as visitas, entre
eles copiar a maquiagem de seu povo. É comum em fotos ver enfermeiros,
dentistas com o rosto pintado para facilitar o relacionamento. Mas,
algumas vezes, é preciso ter cuidado para não voltar ao trabalho formal
ou para casa maquiado. Algumas tintas, avisa Ryan, saem somente depois
de 15 dias. “Cheguei com rosto pintado. Havia chegado a minha casa às 6
da manhã e fui atender o pessoal de uma empresa aqui no laboratório.
Eles ficaram olhando para mim e, talvez, se perguntando onde esse maluco
havia tatuado o rosto”, brinca.
Na Unicamp, a lida com
equipamentos começou cedo, aos 17 anos, como estagiário no mesmo
laboratório. Aprendeu (e faz questão de reconhecer) com pessoas que hoje
são subordinadas profissionalmente a ele, por conta da exigência de
nível superior. “Fui acolhido por algumas pessoas que se tornaram muito
importantes nesta trajetória. Recebi muitos conselhos de Carlos Rios
quando fui estagiário dele. Ícaro Bellentani, meu chefe na época, foi
uma espécie de tutor quando comecei como engenheiro.”
Na época,
também começava uma trajetória acadêmica na Universidade, como estudante
de eletrônica do Colégio Técnico de Campinas (Cotuca). “Aprendi muito
no colégio. Tive excelentes professores. No cursinho reencontrei
docentes de lá também.”
A história com a instituição quase
“cinquentona”, porém, começou antes mesmo de decidir por alguma
carreira. As brincadeiras nas escadarias do Ciclo Básico o divertiam
enquanto a mãe estudava pedagogia na Faculdade de Educação. O primeiro a
abrir a fila, porém, foi o pai, formado em engenharia elétrica. “Minha
mãe veio estudar quando nós já tínhamos nascido, então, aos 7 anos, já
frequentava o campus de Barão Geraldo. Aos 13, ela vinha fazer
complementação, e eu também acompanhava. Minha irmã mais velha também
estudou pedagogia aqui.” Mas não foram somente as referências familiares
que o inspiraram a estudar na Unicamp. “Vim por oportunidade e
necessidade, pois havia somente dois cursos noturnos de engenharia
elétrica na região, um gratuito e outro pago. Então, estudei muito para
me formar no gratuito.”
Ao concluir o ensino técnico, Ryan foi
contratado como estagiário pelo CEB e, logo em seguida, foi aprovado em
concurso público para técnico em eletrônica. Em 1994, entrou na segunda
turma do curso noturno de engenharia elétrica. “Tempos difíceis, mas
recompensadores. Eu trocava dias de férias por dias de preparação para
as provas. No final, quase não tinha férias, mas sabia que mais tarde
seria recompensado pelos esforços durante a graduação. Poder trabalhar e
estudar aqui foi muito bom.”
Assim como na aldeia, Ryan alegra-se
por colaborar com a prática médica em seu dia a dia. “Tenho no quadro
de funcionários quatro técnicos, um estagiário e ajudamos a manter os
equipamentos em bom funcionamento até o final da vida dele. É
gratificante quando tira o foco do trabalho, do estresse e coloca o foco
no paciente. Isso ajuda muito a entender as coisas e passar pelas
dificuldades normais de uma rotina. É bacana ver o que fizemos. Isso faz
diferença.”