Campinas, 07 de outubro de 2013 a 13 de outubro de 2013 – ANO 2013 – Nº 578
Por uma relação mais simétrica
Tese desenvolvida no IG relata exemplo de interação entre lideranças indígenas e a universidade
Os
professores indígenas que atuam nas aldeias do país devem ser
qualificados em nível superior. Mais que uma obrigação legal, este foi
um direito garantido pela Constituição de 1988. A escola indígena tem
reconhecidamente características que a diferenciam. Mas, apesar da
criação do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas
Interculturais Indígenas (Prolind), em 2005, há, até hoje, apenas três
experiências formais de terceiro grau indígena no Brasil. O trabalho
pioneiro, realizado desde 2001, na Universidade do Estado de Mato Grosso
(Unemat), é objeto de tese de doutorado defendida pela pesquisadora
Iraci Aguiar Medeiros no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. As
outras duas experiências foram realizadas nas Universidades Federais de
Roraima e Minas Gerais.
“O objetivo da pesquisa foi analisar uma
experiência de articulação entre a universidade e o movimento indígena.
Verifiquei qual a relação do conhecimento tradicional indígena que os
professores trazem para a universidade com o conhecimento científico, e
como se dá a relação desses diversos saberes”, explica a pesquisadora.
Ecologia
dos saberes é o termo utilizado pelo sociólogo Boaventura de Souza
Santos, para designar o conhecimento produzido na universidade a partir
da interação com outros saberes. O tema é relativamente recente e
suscita ainda muitos debates. Entretanto, a pesquisadora parte da
afirmação de que, no caso da experiência da Unemat, que envolve uma
relação intercultural, houve de fato a ecologia dos saberes, foco da
tese.
Os professores indígenas que fazem graduação na universidade
mato-grossense são provenientes de vários povos e etnias. O terceiro
grau tem servido para resgatar tradições que estavam se perdendo nas
aldeias. “Eles não vêm para a universidade só para aprender as ‘coisas
de branco’ mas, a partir do envolvimento nos cursos, conseguem trazer de
volta as tradições culturais da aldeia, músicas e rituais que voltam a
realizar.”
A troca de conhecimentos e o uso de metodologia
científica para o resgate de suas próprias vivências caracterizam,
segundo Iraci, a relação intercultural. “Os indígenas fazem muita
pesquisa com os idosos das aldeias. Eles conseguem, de fato, recuperar
tradições que são registradas e podem compor material didático, passando
a adotar aquela prática do conhecimento tradicional.”
A autora da
tese ressalta o caráter coletivo de todas as decisões tomadas pelos
povos originários. A decisão de enviar um professor da aldeia para a
universidade parte de todos. “O interesse é coletivo, a aldeia é quem
decide quem vem e a própria comunidade faz o acompanhamento do trabalho
do professor. Ele repassa tudo o que aprendeu e tem um papel
fundamental, porque é visto como um enviado que tem a oportunidade de
estudar e assim ajudar seu povo”, afirma. Iraci complementa que o
professor passa a ser uma liderança importantíssima na aldeia e, em
alguns casos, torna-se cacique.
Na luta pela terra
O
papel de liderança do professor indígena tem mais um sentido de ser.
Ele funciona como o elo na relação da aldeia com a comunidade não
indígena. Os professores que passam pelo terceiro grau aprendem a
escrever, a usar computadores e toda tecnologia a que têm acesso com o
objetivo de estabelecer uma relação mais simétrica com a comunidade não
indígena. O ponto central para os povos indígenas é conseguir
reivindicar seus direitos por meio das ferramentas que eles passam a
dominar. “A manutenção da terra é fundamental para eles, é uma questão
de sobrevivência”, salienta a pesquisadora.
De acordo com a autora
da tese, no caso da Unemat todos os indígenas que frequentam a
universidade moram nas aldeias, a maioria no Parque Indígena do Xingu.
“Grande parte já está em terras reconhecidas ou em aldeias estruturadas.
Mas há ainda os povos em conflito como os Xavantes, por exemplo.”
Muitas lideranças dos movimentos que reivindicam a manutenção da terra
foram alunos da Unemat. Os professores e os líderes das aldeias
reconhecem, portanto, a importância do saber ler e escrever português
como ferramenta de interlocução com a sociedade não indígena.
Movimento indígena
Antes
de abordar a ecologia de saberes, a tese de Iraci se constitui em uma
discussão sobre a trajetória do movimento indígena no Brasil desde a
década de 1970 até os direitos conquistados na Constituição de 1988. A
partir de 1990, a proposta do estudo é debater o protagonismo dos povos
indígenas a partir da atuação dos professores na conquista das
legislações e de uma série de direitos, entre os quais a manutenção da
terra de origem. A educação escolar indígena diferenciada surge a partir
da década de 1990.
A princípio sob a tutela da Fundação Nacional
do Índio (Funai), a educação dos povos nativos passou para a esfera do
Ministério da Educação (MEC), em 1990. “Houve uma série de conquistas
formalizadas pela lei federal como, por exemplo, a lei que estabelece
escola indígena diferenciada nas aldeias com professores indígenas, além
da necessidade de formação do professor”. Toda a articulação do
movimento indígena é recuperada na tese.
A mudança de paradigmas
na oferta de educação escolar às comunidades indígenas foi gradativa,
mas por muitos anos esteve pautada pela catequização, civilização e
integração forçada dos índios à sociedade nacional. “Ou seja, servindo
de instrumento de imposição de valores alheios e negação de identidades e
culturas diferenciadas” salienta Iraci. No modelo de escola do Serviço
de Proteção aos Índios (SPI), que precedeu a Funai, predominava a
formação de trabalhadores rurais voltados para o mercado regional.
“Desde
1991 está em tramitação no Congresso Nacional um novo Estatuto dos
Povos Indígenas, que envolve reivindicações e foi objeto de várias
reformulações”, comenta Iraci, hoje coordenadora de projetos e programas
na pró-reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Unemat. Na época de
elaboração do primeiro curso de licenciatura, ela já estava na
universidade e acompanhou todo o processo. Ela conta que participaram da
criação dos cursos docentes de universidades paulistas como a Unicamp,
USP e a Unesp, que já trabalhavam com o tema. Eles ajudaram a formar os
professores que passaram a dar aulas para os indígenas.
Em 2001,
ingressaram 200 professores. Na segunda turma foram 300, representando
44 etnias. Em 2006 formaram-se 186 indígenas. São cursos de Licenciatura
em Ciências Sociais, Ciências Matemáticas e da Natureza, Línguas, Artes
e Literatura e o mais novo deles, Pedagogia Intercultural. As aulas
ocorrem no período de férias escolares nas aldeias, no campus da Unemat,
em Barra do Bugres. Os cursos são realizados em parceria com a Fundação
Nacional do Índio (Funai), Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade (Secad) do Ministério da Educação (MEC),
Fundação Nacional da Saúde (Funasa), Secretaria deEstado de Educação de
Mato Grosso (Seduc/MT), Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia
(Secitec) e Prefeitura Municipal de Barra do Bugres.
A convivência
das várias etnias indígenas com os professores dos cursos de
licenciatura da Unemat também trouxe para a prática docente muitas
mudanças. Iraci avalia que os docentes não índios passaram a perceber
outras lógicas, “além do enfoque monocultural da ciência eurocêntrica”. A
articulação entre os conhecimentos foi estabelecida. Um exemplo é a
física, tão presente nas maneiras de medição do tempo entre os povos
originários.
“Da parte dos índios, eles conseguem explicar,
através da matemática e da geometria, a razão para os desenhos nas
peneiras ou as pinturas que utilizam no corpo e que têm um significado
ritual. Também identificam as formas do triângulo e do círculo e
percebem a geometria na construção das casas.” Várias monografias dos
cursos de licenciatura associam o conhecimento indígena ao não indígena.
Uma
experiência que também se transformou em material didático foi a
elaboração de um dicionário eletrônico, constituído de palavras que não
existiam na língua indígena. No dicionário estará o nome da palavra e a
referência da etnia de onde vem, o que significa em português e o
desenho que mostra do que se trata. Interessante como foram feitas as
adaptações da língua portuguesa para a língua indígena de palavras que
nos tempos ancestrais não existiam como “avião”, “internet” ou
“computador”. Avião na língua tapirapé passou a ser “xixinyara”, – uma
variação da palavra libélula.
Metodologia
A
pesquisadora entrevistou 48 professores indígenas e realizou três
etnografias que geraram relatórios para a tese. No campus de Barra do
Bugres, ela observou como eram as aulas de arqueologia, antropologia e
informática, além de conhecer melhor a documentação do projeto. Na
aldeia Umutina, município de Barra do Bugres, acompanhou a rotina dos
professores e alunos na escola, e também o envolvimento da comunidade.
“Precisava conhecer a proposta pedagógica da escola, a relação dos
conteúdos com o aprendizado na universidade, e as contribuições desse
processo para o fortalecimento da cultura e da identidade Umutina”.
A
última etnografia foi relacionada ao processo de realização da I
Conferência Regional de Educação Escolar Indígena, no Parque Indígena do
Xingu.“As etnografias nos permitiram não só percorrer a trajetória da
elaboração de um currículo multicultural no contexto da educação escolar
indígena, como também mergulhar em suas práticas. No curso de formação
de professores e em uma escola de aldeia, foi possível analisar e
discutir o espaço/tempo da sala de aula e a relação entre o cotidiano e
as perguntas colocadas pela pesquisa”, complementa.
Se a ecologia
dos saberes é uma espécie de extensão ao contrário, como coloca o
sociólogo criador do termo, na experiência estudada por Iraci os povos
indígenas puderam até hoje se organizar e fortalecer suas tradições para
poder lidar com os não indígenas. Para a universidade, ressalta a
pesquisadora, o ganho maior foi a incorporação de uma nova visão de
mundo que agrega à sua forma de produzir conhecimento, outros
conhecimentos de outras culturas e línguas.
Publicação
Tese: “Ecologia de saberes? Estudo de uma experiência de interação da universidade com movimento indígena”
Autora: Iraci Aguiar MedeirosOrientadora: Leda Maria Caira GitahyUnidade: Instituto de Geociências (IG)