24/06/2009 - 07h11
Parecer ético das cotas contradiz parecer jurídico
Professor da USP, Clóvis Barros Filho diz que a prática reiterada não absolve parlamentares envolvidos no uso irregular das passagens. Arquivamento do processo de Fábio Faria se baseou na opinião do jurista Manoel Ferreira Filho
Eduardo Militão
O parecer ético encomendado pela Câmara ao professor Clóvis Barros Filho para avaliar o uso da cota de passagens aéreas pelos deputados contradiz um pressuposto do outro parecer jurídico, do professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, também contratado pelo Legislativo. Para o jurista Gonçalves Filho, todas as viagens feitas pelos parlamentares com recursos da Câmara foram legais, como revelou ontem o Congresso em Foco, porque se baseavam numa prática antiga do Parlamento. Clóvis Barros tem reservas quanto a essa tese.
Ontem, a Câmara divulgou a íntegra dos dois pareceres, que vão balizar a análise de todos os casos relativos aos deputados e seus voos, noticiados por série de reportagens do Congresso em Foco. Os documentos serviram de base para o presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), arquivar uma denúncia popular contra o deputado Fábio Faria (PMN-RN), que usou as passagens com artistas que trabalharam em seu camarote de carnaval.
Em consulta ao conferencista Clóvis de Barros Filho, criador do instituto Espaço Ética, advogado, jornalista, mestre em Ciência Política e professor da Universidade de São Paulo (USP), a Câmara fez quatro perguntas, ou quesitos, na linguagem técnica. O parecer de Barros filho custou R$ 70 mil.
Na primeira, quis saber se o uso das passagens se justificava pela “prática reiterada”. O professor Barros respondeu: “Em termos”. “Haverá aqueles que dizem que o costume de fato é um atributo da conduta moral, como Aristóteles, porém, nem toda conduta é um costume virtuoso”, diz ele.
Em entrevista ao Congresso em Foco, Barros admitiu que o questionamento da Câmara ignorou essa possibilidade. “É essa nuance que a pergunta parece não considerar.” Para ele, seria necessário analisar cada caso para saber se a prática foi moralmente aceitável.
Na terceira pergunta, a Câmara quis saber se a “prática reiterada e nunca questionada” significava que o eleitor concordava com as atitudes do parlamentar, o seu representado. A resposta de Barros: “Não necessariamente”. O professor de ética diz que isso seria pertinente se a população estivesse totalmente ciente das regras do uso de passagens.
“Eu suponho que não estavam satisfeitas as premissas de transparência”, disse Barros. “Qualquer tipo de manutenção de relação pressupõe uma certa ciência”, acrescentou. Esse foi o quesito mais questionado pelo professor da USP na entrevista dada ontem a este site.
Como quiser
Os deputados podem fazer o que quiserem de sua verba de passagens, segundo o parecer jurídico do professor Manoel Gonçalves, doutor em Direito e presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas. Ele diz que a cota de viagens aéreas deve ser usada de maneira “discricionária” e como “ajuda de custo”, sem necessidade sequer de serem prestadas contas. O trabalho Gonçalves Filho trabalho custou R$ 80 mi.
Um dos argumentos do jurista é que, apesar de vivermos sob o domínio das leis escritas, permanecem as “normas jurídicas não escritas, vindas de costumes”. “Não se põe em dúvida a existência desse direito da prática constante e inveterada”, conta o jurista, que considera esse direito “soberano”.
E continua Gonçalves: “Acrescente-se que o uso discricionário de tal verba tem por si ser uma prática que data de muitos e muitos anos – foi instituída quando da mudança da capital para Brasília, há cinquenta anos”.
Ao fazer a consulta ao jurista, o presidente da Câmara disse que as dúvidas sobre as passagens preocupavam os deputados. No pedido, Michel Temer já adiantava a tese de que há um costume dos congressistas há muito tempo em uso: “Essa verba sempre foi tida como de livre utilização pelos parlamentares”.
Na verdade, a cota mensal de passagens foi regulamentada na primeira gestão de Temer. O Ato 42, de 21 de junho de 2000, da Mesa Diretora, estabeleceu um crédito em viagens para os parlamentares conforme o estado de origem.
A regra revogou o Ato 4, de 1971, que garantia aos deputados quatro passagens aéreas gratuitas por mês, uma das quais entre Brasília e a antiga capital federal, o Rio de Janeiro. A mudança foi justificada, na ocasião, como uma necessidade do exercício do mandato. Os parlamentares se queixavam que, com a restrição das viagens ao estado de origem, não podiam visitar outras unidades da Federação para participar de debates nacionais (leia mais).
O valor destinado a cada bancada estadual é reajustado a cada seis meses. O ato normativo de 2000 foi alterado em 2002 pelo então presidente da Casa, Aécio Neves (PSDB-MG). Na época, a Mesa decidiu beneficiar seus integrantes e os líderes partidários com um acréscimo na cota mensal de passagens aéreas.