quarta-feira, 24 de junho de 2009

Um artigo de 2004, quando os petistas já mandavam. O texto é atual, muito atual, desde que você não seja beneficiário do "bolsa companheiro", claro.

Ética na política!
Roberto Romano, Folha de S. Paulo, 2 de janeiro, 2004


Certa feita, na biblioteca da Unicamp, eu lia os pensadores antigos, como recomenda Maquiavel. Toca o telefone. Era o responsável pelo boletim periódico do PT, de circulação interna. Após os salamaleques veio o pedido: "Queremos um artigo seu sobre ética na política". Estranhei o convite: "Não sou filiado ao partido, melhor falar com acadêmicos militantes". Réplica: "Desejamos que o texto seja feito por alguém exterior aos quadros partidários, para maior isenção".

Fui levado, na sede do partido, para uma sala cheia de papéis, jornais antigos etc. No meio do aposento, majestosa pilha na qual se equilibravam pastas de tamanhos variados. Pediram-me que abrisse qualquer uma delas.

Fi-lo e percorri o conteúdo da maior parte. Estupefato, segui a ladainha das cartas enviadas por militantes: "Nunca pensei que no PT ocorressem tais coisas". E seguiam denúncias em administrações petistas. Uma pasta reunia casos de Santo André. Nada contra Celso Daniel, pela primeira vez na prefeitura, mas denúncias sobre integrantes de seu governo.

Escrevi um texto amplo, no qual afirmava que agremiações humanas erram. Mesmo no PT poderia existir falta de ética. O artigo suscitou interesse e foi citado por Carlito Maia para potenciar sua crítica de outros militantes. Muitos petistas afirmavam que a ética morava só no PT. Os demais partidos? "Farinha do mesmo saco." Arrogância é letal em política. Publiquei vários textos nesta Folha advertindo contra o angelismo do partido.

Logo depois ocorreu o seminário "O PT e o Marxismo". Os organizadores, após o evento, levaram-me para o almoço. Aproveitei para lhes perguntar sobre as denúncias que li. "Não peço explicações de ordem sociológica, digam apenas o que imaginam ser a causa do fenômeno." A resposta foi honesta e forneceu algum sentido lógico: "Veja, professor, muitos de nossos políticos têm origem humilde, recebem salários pequenos, não possuem casas próprias. De repente, encontram-se nos cargos, recebem o título de Excelência, carros são postos ao seu dispor, o pagamento triplica etc. No primeiro mandato, normalmente, recusam meios errados para se reeleger. Mas perdem as eleições, recaem na penúria. Aprendem".

Essa conversa ocorreu bem antes do poder abençoar o PT. Muitos "aprenderam a lição". A pista ajuda a identificar a origem dos que hoje ascendem na escala social usando o antigo Partido dos Trabalhadores, hoje "Partido dos Cargos em Comissão". E também a definir o que Francisco de Oliveira indicou como o "ornitorrinco". O aparelhamento do Estado serve aos fins dos atuais governantes, mas favorece os arrivistas que ontem foram operários, bancários etc. A sua voracidade foi potenciada ao máximo com o controle dos palácios.

Se eles constituem uma nova classe é incerto. Mas o tamanho de sua goela mede-se pela violência dos atos que protagonizam. O Brasil não tem mobilidade social. O "andar de cima" (sigo Elio Gaspari) é hermético. O governo oferece vias de acesso. O poder gera insensibilidade aos sofrimentos deixados nas periferias. O escalador social age pior do que os antigos palacianos. As medidas recentes contra idosos centenários, obrigando-os às filas para exibir sua existência, provam a anestesia ética dos nossos poderosos com alma de Barry Lindon em figura de Macunaíma.

Extenso número de petistas neófitos, velhos partícipes da vida pública brasileira, engrossam (em todos os sentidos) a "base aliada". Se militantes heróicos escreviam cartas contra a quebra da ética em administrações do PT, hoje a tendência segue o rumo do pior. Existem na agremiação pessoas honradas que ocupam cargos em governos e Legislativos e operam na cúpula partidária. Conheço várias delas pessoalmente.

Mas é impossível olvidar (e não por moralismo) as zonas cinzentas que obnubilam o vermelho do partido. As reações, nos inquéritos sobre a morte de Celso Daniel, são melancólicas. Ministério Público e Justiça devem ser incentivados pelos líderes partidários. Caso oposto, ficaremos no lugar-comum: "o medo venceu a esperança".

Mas ainda acredito na esperança que levou o eleitorado a votar nas mudanças éticas prometidas pelo PT.

Roberto Romano, 57, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de "Moral e Ciência - a Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo), entre outras obras.