15. Acordo contra a cidadania, artigo de Roseli Fischmann
“Um acordo do Estado com qualquer religião violaria o direito de consciência da cidadania e o pluralismo, bases da democracia”
Roseli Fischmann é professora do programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo, da Universidade Metodista de São Paulo e coordena o Grupo de Trabalho Estado Laico da SBPC. Artigo publicado em “O Globo”:
Dois anos depois de o tema vir à tona, tramita na Câmara dos Deputados acordo com a Santa Sé, assinado no Vaticano pelo governo federal em novembro de 2008. A pressão era para assiná-lo na visita do Papa ao Brasil, em 2007, mas o debate público o impediu.
À chegada do Papa, o presidente Lula afirmou que defenderia o Estado laico, princípio da Constituição a qual jurou defender. O Estado laico promove o respeito a todas as formas de crer e não crer, pela separação entre Estado e religiões, garantindo a liberdade de consciência, de crença e de culto, sem interferir ou interagir com assuntos das religiões.
A cidadania é um direito de todos, enquanto a identidade religiosa é uma adesão voluntária, privada, que não pode pretender submeter terceiros pelas normas que são próprias a uma fé. Um acordo do Estado com qualquer religião violaria o direito de consciência da cidadania e o pluralismo, bases da democracia.
O acordo proposto pela Santa Sé, um Estado com identidade peculiar, como sendo de cunho internacional, bilateral, entra no âmago da vida nacional, interferindo em direitos de brasileiros; entre outros: invade destinação orçamentária; nega direitos trabalhistas a religiosos; interfere em processos matrimoniais; subordina a escola pública, tornando impossível na prática rever até a Constituição, pela dificuldade que é desfazer um acordo bilateral, para o qual não cabe denúncia unilateral.
Na relação com outros Estados, o Brasil firma acordos pontuais, havendo vários acordos com um mesmo Estado, específico do comércio ou restrito aos limites da diplomacia; não há caso, com outros Estados, de um acordo único abrangente, e menos ainda caso de acordo que promova invasão da esfera nacional. Como e por que permitir que se crie esse precedente?
O Globo informou que estaria em curso, nos bastidores, negociação de uma “lei geral das religiões”, que atribuiria às religiões que se habilitassem os mesmos privilégios que pede a Igreja Católica. Ora, a tentativa de corrigir um erro incorrigível, que seria o de criar distinção entre brasileiros pela aprovação desse acordo, cria mais um. Basta lembrar que a Constituição Federal dá conta da relação republicana entre Estado e religiões.
Se aprovadas, essas propostas aniquilariam o campo público, transformando-o em aglomerado de grupos de interesses religiosos, com o que a própria organização em partidos políticos sofreria revezes. Geraria conflitos inevitáveis na competição por verbas de “incentivo” e isenções tributárias; abriria brechas para que a imunidade diplomática prometida a religiosos pudesse transformar-se em alvo de mau uso por oportunistas, ameaçando as religiões, ao invés de protegê-las.
Aproximaria o Brasil dos conflitos que há em países em que a religião invade a esfera pública, seja por se propor como teocracia, seja pelo abandono dos básicos princípios da construção da democracia como obra humana e patrimônio de todos e todas da cidadania. (O Globo, 23/6)