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Revista USP
ISSN 0103-9989 versão impressa
Rev. USP n.78 São Paulo jun./ago. 2008
GESTÃO E POLÍTICA NA UNIVERSIDADE PÚBLICA
Gestão universitária, autonomia, autoritarismo
Roberto Romano
Professor do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp
Para o estudo das formas administrativas universitárias é fundamental, antes, examinar a noção e a prática da autonomia acadêmica. Esta última varia de país a país de acordo com normas jurídicas que determinam a vida do Estado e da sociedade civil. Em regiões européias e norte-americanas, cujos regimes políticos vêm das revoluções inglesa e francesa, apesar de existirem problemas na aplicação da autonomia, ela é um fato respeitado pelos governos. Os períodos de exceção totalitária (nazismo, fascismo, governo de Vichy) confirmam a regra.
No Brasil não existe efetivamente autonomia das instituições estatais e civis diante dos governos. Nos campi federais impera o modelo oposto ao da autonomia. A centralização dos recursos financeiros e humanos no governo federal afasta as veleidades de controle acadêmico autônomo. O reflexo mais evidente do mimetismo entre o poder federal e as suas escolas superiores é a excessiva concentração das decisões no setor executivo do campus. Antes de refletir sobre a administração universitária, portanto, vale inspecionar a prática política nacional, que ignora a vida autônoma das unidades basilares da federação.
A autonomia das universidades não vai além da letra grafada na Constituição de 1988 ou de iniciativas sem maior peso. Fora as universidades públicas de São Paulo - cujo estatuto jurídico autônomo é frágil, posto que fundamentado em decreto do Executivo estadual-, em todo o Brasil não existe, de fato e de direito, autonomia universitária. Os campi são dirigidos de maneira centralizada, a partir do MEC, e os dirigentes são escolhidos de modo plebiscitário, com eleições que mais se parecem com escrutínios municipais1. Como os municípios, os campi federais não têm autonomia financeira e jurídica, dependem de tratos oligárquicos e dos favores ministeriais numa troca de apoios entre reitores e ocupantes do poder federal. Em recentes eleições presidenciais essa anomalia se confirmou no apoio ilegal de reitores ao candidato que finalmente venceu o pleito2. Os monopólios das políticas públicas pelo Executivo, longe de trazer eficácia administrativa e científica ao campus, entravam ainda mais as iniciativas de pesquisadores e docentes. Não surpreende, após a lamentável aliança entre reitores e o candidato a presidente, que quase nada tenha tido bom termo nos assuntos da educação superior. Os próprios responsáveis maiores pelo ensino superior brasileiro confessam que, sem os municípios e as universidades, nada pode ser feito em termos de melhoria administrativa e pedagógica no ensino superior federal3. Antes de falar sobre a administração universitária, portanto, falemos sobre a nossa federação e seus pretensos municípios.
Os municípios constituem a célula básica do moderno Estado nacional. No período que vai do esfacelamento do Império Romano à Idade Média, eles perdem força diante dos domínios feudais. Alguns mantêm sua existência quase autônoma, regida pelas suas autoridades, assembléias, etc. A partir do século XI as cidades, antes ameaçadas pela nobreza e pelo clero, sofrem o assédio dos papas e monarcas, que centralizam as nações. Essa situação continua até o século XVIII.
Segundo Tocqueville, no Ancien Régime o Estado segue parâmetros diferentes dos encontráveis na Idade Média. A realeza possui "outras prerrogativas, tem um outro lugar [...] a administração do Estado se amplia para todas as partes sobre os restos dos poderes locais; a hierarquia dos funcionários substitui [...] o governo dos nobres". Surge "a igualdade diante da lei, a igualdade dos cargos, a liberdade de imprensa, a publicidade dos debates, princípios novos ignorados pela sociedade medieval". Trata-se de uma "nova ordem social e política, mais uniforme e simples, que tinha por base a igualdade de condições".
O poder real, para estabelecer seu poderio, enfrenta o poder dos municípios. Em toda a Europa, mais particularmente na França, a liberdade municipal, diz Tocqueville, sobrevive ao feudalismo. Em nações como a alemã e a italiana, com características diversas, várias cidades resistem ao poder. Elas formam pequenos Estados cuja potência é maior ou menor conforme a guerra, a diplomacia, etc. Uma característica do poder real é que ele encontra nas capitais e nas cidades maiores e ricas o seu ponto de apoio na reconquista de prerrogativas antes destinadas ao clero e aos nobres.
Tocqueville mostra o quanto foi importante para o centro do Estado sufocar a potência das cidades e impor a sua burocracia, com a igualdade de todos diante do rei. No século XVIII o governo municipal degenera em oligarquia, "algumas famílias conduziam nele os negócios, tendo em vista fins particulares, longe do olhar público e sem serem responsáveis diante dele: trata-se de uma doença espraiada por toda a França". O moderno poder estatal tenta igualizar as urbes, tornando-as centros desprovidos de força, venais, em favor do mando concentrado na capital. A burocracia sufoca a independência dos municípios4. Passemos ao Brasil.
A história política brasileira apresenta similaridade com a situação dos municípios descrita por Tocqueville. Com um agravante: as nossas cidades aparecem sob o absolutismo. Não ocorrem nelas eleições suficientemente livres, a responsabilidade dos governantes diante dos munícipes e, sobretudo, a liberdade urbana. Terra de conquista política e militar, mas sobretudo econômica, o Brasil foi administrado segundo a moderna "igualdade de todos diante do rei". Boa parte dos ofícios públicos são vendidos ou alocados segundo os interesses da Corte. Sendo o território continental, as cidades brasileiras recebem gestão a distância. Nelas, os impostos seguem o rumo de Lisboa, com pouquíssimo retorno à sua origem. A tendência centralizadora do poder real se consolida em Portugal com as reformas pombalinas. "As concepções de poder político, sociedade e Estado são assim formuladas em torno da noção de império civil, com fins de legitimar a monarquia portuguesa e consubstanciar projetos de atuação política"5.
Com a vinda da Casa Real, compõe-se uma Corte no Rio onde se integram a nobreza, burocratas de alto escalão, serviçais e negociantes. No projeto idealizado, continua a noção de império português, com sede no Brasil. A cidadania foi entendida nos parâmetros da antiga metrópole: o "povo" era a aristocracia, os "homens bons" (ricos proprietários) sem sangue judeu. A representação "popular" faz-se por petições, dando-se o direito de voto sem que os cidadãos tivessem presença ativa na esfera pública. Um outro projeto surgido na época é mais radical, pois admite a presença cidadã na vida pública, define autonomia para o Brasil. Nos dois projetos, cidadão é título que não cabe aos escravos, evidentemente, nem aos homens livres e pobres ("gente ordinária de veste").
O debate sobre a cidadania surge em 1821 na Assembléia do Rio de Janeiro, na eleição de representantes provinciais para a Assembléia de Lisboa, para redigir a Constituição portuguesa. O debate conduziu à inesperada crítica da autoridade de João VI. Proposto um projeto de governo representativo, visto pelos governantes como ligado "à força incontrolável da multidão", sobretudo num reino onde a enorme quantidade de escravos era perene ameaça (a revolta do Haiti em 1810 era um presságio).
A dimensão do território brasileiro, as revoltas, o exemplo dos países vizinhos que se tornaram repúblicas de tamanho inferior ao do Brasil, a memória da Revolução Francesa, todo um amálgama de idéias, medos, repressão, define o momento inaugural do nosso Estado independente. Os que desejam um poder representativo e constitucional conseguem em 1822 a convocação da Assembléia. Mas no país surgem dois projetos não sintonizados e conflitantes: o da monarquia soberana (São Paulo, sob liderança de José Bonifácio) e o de um governo constitucional (Rio de Janeiro, liderado por José Clemente da Cunha). Quando Pedro I é aclamado, José Clemente afirma o princípio da soberania popular. Bonifácio, ao contrário, enfatiza a supremacia do imperador.
Vence o primeiro projeto, o império civil é instituído por direito divino. Os defensores do segundo plano são perseguidos mas conseguem alguma consideração, na Constituinte, para suas idéias. O novo governo admite a liberdade política, mas sob a égide do poder supremo, definido pelo imperador. Em 1823, José J. Carneiro de Campos discute a sanção do soberano e defende o Poder Moderador. Exclusivo, esse poder permite ao chefe de Estado controlar os demais poderes. A Constituição de 1824 incorpora o quarto poder e o amplia, pois ele pode dissolver a Câmara de Deputados, afastar juízes suspeitos, etc. Tal poder foi alegado sempre que se tratou, no parecer dos governantes, da salvação do Estado. No mesmo plano, é restrita a autonomia do Judiciário.
A preeminência do Poder Moderador sobre os demais é mantida no império, incluindo o tempo de regência, quando o país passou por rebeliões de norte a sul. Somadas as suspensões dos direitos e a permanente supremacia do imperador, define-se como improvável a democratização do Estado. A rebelião permanente e as necessidades do poder central definem o império, excessivamente preso à concentração de poderes, o que molesta o país ainda em nossos dias, com uma federação na qual os estados possuem pouca autonomia, sobretudo em matéria fiscal6. Na república, as prerrogativas do Poder Moderador são incorporadas silenciosamente à presidência do país. Com elas, vem a permanente pretensão dos ocupantes daquele cargo a assumir, como imperadores temporários, a preeminência e a intervenção nos demais poderes. O Poder Moderador era vitalício e hereditário. Uma presidência imperial limitada por quatro anos sofre a tentação de pressionar o Legislativo para que faça ou aprove leis favoráveis ao programa e pretensões presidenciais. De modo idêntico, há pressões sobre o Judiciário para que reconheça a legitimidade das mesmas leis.
O nosso modo de unir os estados tem pouco de "federalismo" e muito de império. Tomemos a indicação da jurista Anna Gamper, que analisa as formas federativas para apontar as fraturas no projeto da União Européia:
"Por unanimidade, as definições de federalismo reconhecem o fundamento da palavra latina foedus que significa 'pacto'. Todas as teorias concordam que federalismo é um princípio que se aplica ao sistema que consiste em pelo menos duas partes constituintes, não totalmente independentes que, juntas, formam o sistema como um todo. O federalismo, pois, combina o princípio da unidade e da diversidade (concordantia discors). As partes constituintes devem ter poderes próprios e devem ser admitidas a participar do nível federal"7.
Se no Brasil foedus significasse de fato um "pacto", teríamos graus crescentes de autonomia, dos municípios ao poder central.
Mas, saindo de Brasília, regras uniformes determinam até os detalhes da ordem nacional, desconhecem as diferenças regionais, culturais, geográficas, etc. Do Oiapoque ao Chuí, uma uniformidade gigantesca obriga cada uma das regiões a se pautar pelo tempo longo da burocracia federal, perdendo tempo precioso para o experimento e modificações das políticas públicas em plano particularizado. Enquanto em outras federações, como a norte-americana (apesar do grande centralismo administrativo daquele país), vigoram leis diversas em termos penais, educacionais, tecnológicos, etc., no Brasil, a mão de ferro do Estado central controla, dirige, pune e premia os estados, caso sustentem os interesses dos ocupantes temporários da presidência. Nesse controle, as oligarquias surgem como operadores de face dupla: trazem os planos do poder central aos estados e levam ao mesmo poder as aspirações de estados e municípios. As negociações entre os dois níveis (central e estadual) ocorrem sobretudo no Congresso. Ali, presidência e ministérios buscam apoio aos seus projetos. É impossível conseguir recursos orçamentários sem as "negociações" e, nelas, o modus operandi é a "troca de favores".
A gênese do Estado brasileiro ocorre segundo regras absolutistas, sem consulta aos cidadãos ou prudência nos gastos. Comenta uma historiadora da nossa economia8:
"A instalação do Estado português no Rio de Janeiro acarretou o aumento dos gastos públicos impossível de ser cobertos pelo aumento dos impostos ou por novas emissões de moedas metálicas. O crescimento das atividades econômicas, impulsionado pela abertura dos portos e pela revogação da proibição de instalação de fábricas, aumentou ainda mais a demanda de moeda a qual só seria atendida com a emissão dos bilhetes do Banco do Brasil, em 1810. [...] o interesse do governo português em criar o Banco do Brasil deveu-se à impossibilidade de financiar os gastos públicos - elevados quando da transferência da Corte para o Rio de Janeiro em janeiro de 1808 - através apenas da cobrança de tributos [...] o Alvará de outubro de 1808, deixava claro que a organização de um banco emissor justificava-se pela necessidade de financiar as altas despesas governamentais".
Com a Independência, o Rio ocupa o lugar de Lisboa na destinação dos impostos. Mas continua a lógica da mão única: os tributos saem das cidades e não retornam a ela, ou só retornam pela interferência de oligarquias regionais. E temos o exposto por Maria Sylvia Carvalho Franco9: cidades viveram mais de século sem elementares serviços públicos. O inevitável ocorre, pois os administradores dos municípios, distantes do centro poderoso, precisam de obras públicas, exigidas pela população que paga impostos. Estes últimos não retornam da Corte ou voltam apenas depois dos tratos entre oligarquias e poder central. Os cofres municipais vazios, o meio para equacionar o dilema é a mistura dos recursos públicos e privados. A autora cita Atas das Câmaras nas quais os vereadores (homens bons, os fazendeiros) fazem subscrições e emprestam dinheiro, mão-de-obra escrava e materiais para realizar serviços no município. A lógica é implacável: se retiram do bolso os recursos para os cofres municipais, nada mais coerente do que, se enfrentam dificuldades financeiras, retirar dos cofres públicos o socorro para os seus apuros privados. A autora cita casos impressionantes dessa mistura explosiva.
Todo esse processo forma uma rede de favores decisivos nas eleições. A população admira os prefeitos, vereadores, deputados estaduais e federais que trazem obras e recursos para os municípios. Os prefeitos são imersos na rede dos favores gerada pela distância entre as cidades e o poder federal. É dramático ser prefeito em Brasília. Sem favores ele não chega às verbas e, com favores, perde quase autonomia política. Marchar para a capital, no caso dos prefeitos, não produz resultados brilhantes em prazo longo. A parte do leão dos tributos fica retida no poder central. Conseguir meios para a cidade (e os eleitores cobram obras, sempre e mais) é cair no abismo. Ou o prefeito termina o mandato sem obras (pena de morte política) ou as consegue por meio dos "favores". Leis como a de responsabilidade cobram austeridade de prefeitos que assumem parcelas mais do que franciscanas de recursos. Elas penalizam administradores obrigados à busca de meios, sem que os impostos fluam no retorno aos municípios e só voltem após as operações mencionadas acima10.
As ditaduras do século XX, a de Vargas e a dos militares, diminuíram ao máximo a idéia (a prática nunca existiu plenamente) da autonomia institucional dos estados (mesmo a eleição dos governadores era indireta), dos municípios e das formas de poder e cultura brasileiros. As universidades, naqueles dois regimes, eram abertas à repressão, sem nenhuma liberdade pública.
Após a ditadura militar o Estado de direito se afirma na Carta Magna. A Lei Maior recebe inequívocas formulações democráticas. Mas antigos parlamentares, muitos deles acostumados a obedecer ao Executivo ditatorial ou a servir interesses privados que usurparam direitos no longo governo castrense, unem-se ao Executivo para boicotar a Constituição. Vários dispositivos constitucionais, como a obrigatoriedade da inversão de recursos para o ensino público, são ameaçados nos sucessivos governos civis com o uso de medidas provisórias que, a pretexto de corrigir e administrar a economia, retiraram recursos da área.
Dentre as formas democráticas definidas na Constituição de 1988, impõem-se as idéias ligadas à autonomia. A autonomia universitária não está isolada no documento maior de nosso direito público e privado. Os campi são proclamados autônomos na mesma ordem em que é definida a autonomia de outros setores do Estado. Como adianta Anna Candida da Cunha Ferraz, na Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (5/10/98), "consiste a autonomia na capacidade de autodeterminação e de autonormação dentro dos limites fixados pelo poder que a institui". A federação é o único ente que detém soberania plena, cuja fonte encontra-se nos povos que a constituem. Os estados gozam de autonomia, não de soberania absoluta. Desse modo, unidos em federação, não podem ver abolido, suprimido, alterado ou restrito o seu aspecto "autonômico fixado pelo texto da Lei Maior, seja para interpretá-lo, seja para lhe dar aplicação".
Caso um dos poderes federais ou estaduais tente recusar aquele traço, deixa de existir respeito à norma que integra a ratio essendi da própria Constituição, o que seria um claro golpe de Estado. Como resultante, outras entidades nacionais, como os municípios (artigo 34, VII, "C"), o Judiciário (autonomia administrativa e financeira, no artigo 99) e o Ministério Público (artigo 127, §2), têm autonomia funcional e administrativa. Tais medidas servem como engaste onde se insere o artigo 207, que assegura às universidades autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial. A noção de autonomia serve para atenuar os males das ditaduras, que formaram uma ética na qual o Executivo tem todos os direitos, e os demais poderes e instituições, apenas deveres, ou apenas o direito de negociar seus direitos, traduzido isto em vantagens pessoais ou corporativas.
Volto a citar Anna Candida: "A autonomia universitária vem consagrada no Texto de nossa Lei Maior, em seu artigo 207. Coube à Constituição de 5 de outubro de 1988 elevar, pioneiramente na história da universidade no Brasil, a autonomia das universidades ao nível de princípio constitucional". Na Constituição de 88, as garantias universitárias entram num rol de autonomias, visando a atenuar o poder do Executivo.
"Uma primeira e relevante observação deve ser extraída do preceituado no artigo 207 e diz respeito à natureza da norma constitucional quanto à sua eficácia e aplicabilidade. O princípio autonômico assegurado às universidades pelo constituinte originário tem seus contornos definidos em norma auto-aplicável, bastante em si, na lição da doutrina clássica, ou em norma de eficácia plena e de aplicabilidade imediata [...]."
A autonomia das universidades públicas paulistas foi estabelecida há bom tempo, tornando-as mais livres e mais produtivas do que as suas congêneres federais.
Dadas as pressuposições históricas e jurídicas da realidade política que envolve os campi brasileiros, passemos às questões internas da administração universitária, com a sua lógica própria. Comecemos em plano mundial, mais especificamente na Europa. Em 1919 Max Weber apresenta aos seus ouvintes o fato que para ele era inelutável: na Alemanha e demais países do continente os institutos de pesquisa em medicina ou em ciências eram empresas "capitalistas estatais". Neles, equipamentos e recursos pertenciam ao poder estatal, sendo os docentes expropriados dos meios de produção científica. Weber usa com freqüência, colocando-o em outro contexto, o fenômeno descrito por Karl Marx da separação (Trennung) entre o trabalhador e os meios de trabalho. Assim, ele sublinha o instante em que a Igreja Católica instaurou a si mesma como imensa burocracia espiritual, no fim da Idade Média.
A Sé romana expropria bispos, abades, provinciais e párocos da propriedade dos meios espirituais e materiais necessários à salvação. Os clérigos passam a depender do Sumo Pontífice para a sua nomeação e para o exercício do cargo. Tudo o que estava na diocese ou nas paróquias deixa de ser propriedade do titular e passa às mãos da Igreja universal com sede em Roma. A instituição vale mais que os indivíduos que a compõem. Também na empresa moderna operário e gestor são expropriados dos meios de administração e de produção. As empresas se determinam como burocracias e não é por acaso, adianta Weber, que a Igreja foi a primeira empresa coletiva e internacional de salvação. Há um espelhamento entre a faina produtiva e o mundo espiritual dominado pela racionalidade calculadora moderna.
Essa lógica é inflexível. Mesmo que não existam muitos notáveis no campus, os grupos de pressão e de ascensão na ordem funcional operam como privilegiados coletivos. A eles são destinadas as grandes verbas de pesquisa e deles saem os representantes das universidades nas agências de financiamento, avaliação, etc. Os professores alheios aos referidos grupos são empurrados para a condição proletária nas salas de aula, nas tarefas consideradas menores e inferiores. Ao constatar a expropriação dos docentes alemães e norte-americanos de seus dias, Weber afirma com ênfase: "Internamente, tanto quanto externamente, a estrutura da universidade tradicional tornou-se ficção".
Quando se fala em autonomia universitária e administração dos campi, vale portanto consultar a conferência de Weber intitulada "Ciência como Vocação", com o seu complemento necessário, "Política como Vocação". Quando um exercício semelhante é feito, ilusões se perdem. Por mais desengano que tragam tais páginas candentes, é possível nelas encontrar frases como a seguinte: "Nada tem valor para um ser humano se não puder fazê-lo com dedicação apaixonada".
A perda gradativa da autonomia de indivíduos e grupos, nos complexos de pesquisa e de ensino superior, é corrigida de vários modos. Retomo o caso dos governos totalitários europeus e das ditaduras brasileiras, no seu trato com as universidades. Hoje é possível seguir, passo a passo, o que ocorreu nas universidades sob aqueles regimes. Os estragos gerados com o nexo imediato entre reitorias e gabinetes do Poder Executivo (não raro, com passagem obrigatória pelas agências de espionagem dentro do campus) mostram que a noção de autonomia acadêmica e administrativa é mais do que simples doutrina liberal, feita para ser usada talvez numa Constituição ou Regimento, mas nunca para ser praticada de fato. Se acompanharmos os prejuízos para a vida pública gerados pelo conúbio entre reitorias, grupos de pesquisas privilegiados e setores governamentais autoritários, veremos que a noção e a prática da autonomia exige ser preservada ou instituída12.
Quando notamos o grau de compromisso dos reitores citados acima, que apoiaram um candidato ao Poder Executivo federal, podemos nos inquietar com os frutos previsíveis desse comércio. Ao contrário das universidades européias ou norte-americanas, onde a guerra para conseguir recursos ocorre entre grupos e lideranças acadêmicas (as que vencem internamente, no campus, conseguem recursos do Estado ou das empresas), o caso das universidades públicas federais brasileiras é mais grave. Nelas, como nos municípios, a mediação entre verbas e benefícios vários ocorre pela via oligárquica e partidária. Eleito, o reitor que já não integra uma oligarquia deve receber seu beneplácito para atingir deputados federais e senadores, sempre na busca do favor político, a ser pago com explícita fidelidade aos programas de "colaboração" com o governo federal. Assim, cada recurso novo é negociado na boca do orçamento, com a aliança entre dirigentes acadêmicos e líderes da maioria. Ocasionais líderes das oposições consentidas podem ajudar na cata de verbas. O prestígio junto ao Executivo e no Congresso, nos últimos tempos, tem sido de árdua obtenção. Daí os grupos e associações dos dirigentes universitários, na verdade lobbies bem ordenados, aumentarem a sua ação naqueles setores, de maneira coordenada.
Dados os pressupostos políticos mais amplos do Estado federal, com a hegemonia do Executivo, não interessa aos dirigentes acadêmicos a autonomia universitária, mas o jogo entre oligarquia, Congresso, gabinetes ministeriais. É naquele espaço que se determina o prestígio político deste ou daquele reitor, e do grupo ao qual pertence. Como prefeitos em plano micrológico (mas notemos o fato de que várias universidades federais, em seus estados, possuem orçamentos maiores do que muitos municípios) os reitores lutam pessoalmente ou em grupo para trazer verbas aos campi. No itinerário dos recursos, a palavra "estratégia", como sempre no Brasil, o favor e as "conversas políticas". Ao se prender nesse jogo burocrático partidário, os reitores são obrigados a aceitar a lentidão, a uniformidade imposta, as regras que amesquinham o ensino e a pesquisa. Como os prefeitos, eles são reféns da inexistente federação brasileira, na qual as bases institucionais perderam de fato e de direito a autonomia que lhes é reconhecida pela Constituição de 88.
No mesmo passo em que essa rede absolutista e cortesã tolhe iniciativas dos campi federais, grassa no seu interior a ilusão da democracia eletiva, com expressa abstração dos fins científicos e pedagógicos da universidade. O dogma das eleições que assegurariam administração eficaz nos campi, além de afastar os interesses conservadores na ordem acadêmica, mostrou resultados decepcionantes para os seus defensores. A experiência da Universidade Federal de Santa Catarina é importante, nesse sentido, mas não a única. Pelo contrário, ela se repete a cada nova eleição na maioria dos campi federais. Nas eleições reitorais
"[...] todos os nomes sufragados pelas urnas pertenciam às forças políticas que vinham dirigindo a UFSC desde a sua criação e que mantinham com os governos militares uma convivência pacífica ou um apoio entusiasta. [...] O processo eleitoral não possibilitou, portanto, como esperavam ou aspiravam as forças de oposição ao regime militar, neste caso as organizações dos docentes, servidores técnico-administrativos e estudantes, que grupos políticos não alinhados com as elites locais e nacionais pudessem ocupar os mais altos cargos da universidade"13.
A ilusão eleitoral nos campi não traz resultados insuspeitos apenas no plano doutrinário ou ideológico. Na ordem da pesquisa e do ensino os estragos são mais graves. Sem autonomia efetiva, cada nova "negociação política" entre reitorias e ministérios, mediada por oligarquias e partidos, acarreta engessamento de iniciativas, delongas nas liberações de recursos e, last but not least, a lógica populista que reduz as complexas questões universitárias ao maniqueísmo que exige adesão aos governos ou o inferno da oposição.
"No campus, nenhum mandato popular ou divino fornece legitimidade ao exercício do pesquisador/docente ou pesquisador/estudante. Apenas a retidão ética e o conhecimento verdadeiro fornecem autoridade ao corpo acadêmico. Assim, o problema das eleições universitárias é muito grave e de árduo encaminhamento. Se um reitor mostra-se alheio à produção do saber e do ensino e se age tendo em vista os ditames do poder de Estado, ele representa apenas e tão-somente aquele poder no campus. Ele é um corpo estranho na comunidade. Se não possui autoridade ética e científica, seu governo é uma intromissão permanente do poder na pesquisa, em prejuízo da já mencionada autoridade ética e científica. Se, além disso, o reitor traz para o interior da instituição universitária os interesses dos comprometidos de modo imediato com o poder (como no caso das oligarquias, do mercado, das grandes forças econômicas) ele é nocivo à universidade"14.
Os reitores indicados não operam como seus colegas, os diretores de institutos alemães discutidos por Max Weber em "Ciência como Vocação". Aqueles acadêmicos empreendedores seguiam a lógica do capitalismo. Os nossos reitores operam na lógica patrimonial do Estado absolutista brasileiro. Eles não operam primordialmente com verbas, com os governos e as empresas para tocar os projetos científicos dos campi. Sua função é carrear recursos públicos disputados na ordem política em que vigora o "é dando que se recebe". Vários reitores tombam, desse modo, na prática patrimonialista que não enxerga limites entre os recursos públicos e os seus, particulares. Como na prática generalizada em nossa política, o simples fato de conseguirem verbas para os campi faz com que eles se considerem essenciais à universidade nesse labor. Daí entenderem seus feitos junto aos ministérios e Congresso como uma série de "favores" aos seus pares dos laboratórios, bibliotecas e salas de aula.
Nos últimos tempos, reitorias que assumiram essa lógica, nas universidades federais, surgem em noticiários políticos e de polícia, ligadas ao uso errôneo de recursos públicos. Para entender o fato, importa examinar, portanto, a estrutura do Estado brasileiro e os costumes políticos que ela ocasiona. Sem autonomia, governadores, prefeitos, reitores são apenas um elo da imensa cadeia do favor que rege a vida política nacional. É quase impossível mudar aquela forma de poder, que centraliza todas as políticas públicas nos gabinetes do Executivo federal. Mas nas universidades operam intelectuais que dominam saberes e práticas as mais sofisticadas. Eles poderiam elaborar planos de autonomia compatíveis com os padrões de pesquisa científica, humanística e de ensino. Se não o fizeram e se não o fazem, é por cumplicidade. Aí, nada mais pode ser dito pelos analistas, porque entramos no terreno do poder e da raison d'État cabocla, fonte de muitos risos e de muitas lágrimas para a cidadania brasileira.
14 Roberto Romano, Prefácio à 1a edição de O Preço do Voto, os Bastidores de uma Eleição para Reitor, op. cit., p. 17.
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