No Site Gramsci e o Brasil.
Weber e a interpretação do Brasil
Luiz Werneck Vianna - 1999
O nível de maturidade de uma universidade, especialmente em uma situação periférica como a nossa, pode ser indicado pela sua capacidade de apropriar-se do pensamento clássico, e, de modo ainda mais seguro, quando a interpelação aos fundadores de uma certa tradição disciplinar não se limita às traduções, mas pretende, por esforço próprio, estabelecer o sentido da sua obra, tal como neste "Seminário Internacional Max Weber". Entre nós, assiste-se a um movimento desse tipo, valendo o registro de que a universidade americana deve muito da sua significação, em particular na área de humanas, à dedicação com que se empenhou nessa direção a partir dos anos 30. Neste seminário, operamos a tentativa de apropriação de um clássico, processo em que, como inevitável, ele como que nasce outra vez, vindo à luz a partir de perguntas e de inquietações sobre a nossa realidade, importando, no caso, a recepção que concedemos a ele no nosso contexto cultural.
Marx e Weber, dos pensadores clássicos das ciências sociais, não somente estão entre os três autores mais citados nas dissertações de mestrado e nas teses de doutorado da disciplina (Melo, 1997), como também se constituem na principal referência da grande controvérsia que anima a literatura sobre a interpretação do Brasil. Contudo, tem predominado, até aqui, um tipo de recepção a eles que enfatiza aspectos parciais das suas teorias, selecionados em função das diferentes motivações dos autores brasileiros que os mobilizam para suas explicações do país. Assim, quanto a Marx, a apropriação que se faz do seu trabalho varia, como se sabe, em função das opções temáticas dos seus intérpretes: a valorização do tema da vontade política como recurso de superação da disjuntiva atraso/moderno, tendo motivado — principalmente nos círculos extra-universitários — uma leitura que privilegiou os seus textos políticos, que contemplavam a possibilidade de saltos revolucionários, dando curso a um marxismo cujo paradigma é a Rússia, enquanto a preferência pela análise do processo de imposição do capitalismo no Brasil, como na grande reflexão social paulista, conduziu a uma maior aproximação com o modelo de O capital com base no paradigma inglês.
O "nosso" Weber tem conhecido uma fortuna similar, uma vez que tem sido convocado pela literatura, predominantemente, para explicar o atraso da sociedade brasileira, com o que se tem limitado a irradiação da sua influência a uma sociologia da modernização. Daí que a mobilização desse autor, pela perspectiva do atraso, se faça associar ao diagnóstico que reivindica a ruptura como passo necessário para a conclusão dos processos de mudança social que levam ao moderno — no caso, com o patrimonialismo ibérico, cuja forma de Estado confinaria com o despotismo oriental. Tem-se, então, que uma obra radicalmente inscrita na cultura política do Ocidente, com seus valores universalistas, impasses e promessas de realização, seja descortinada pelo ângulo do Oriente e dos caminhos possíveis para a sua modernização. Assim é que o "nosso" Weber incide bem menos na inquirição das patologias da modernidade do que nas formas patológicas de acesso ao moderno.
Weber, como Marx, tem sido, desde os anos 50, quando a ciência social brasileira recuperou a linha ensaística dos pioneiros na interpretação do Brasil, como a de Euclides da Cunha, Silvio Romero, Oliveira Vianna, Caio Prado Jr., Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, uma das principais marcações teóricas da produção que se voltou para o objetivo de explicar a singularidade da nossa formação social. Decerto que grande parte da controvérsia, no campo das explicações que concorrem entre si, está vinculada às diferentes concepções intrínsecas aos sistemas de Marx e Weber, sobretudo as que se manifestam no campo axiológico, com as óbvias repercussões que daí derivam para a análise do comportamento do ator social e dos condicionantes exercidos sobre ele pelas estruturas sociais. A remissão, contudo, à obra desses autores nem sempre contempla o que há de efetivamente diverso entre eles, abdicando das nuanças e da complexidade das suas construções teóricas originais a fim de demarcar oposições, freqüentemente idiossincráticas. Assim, por exemplo, com as relações entre o Estado e a sociedade civil, em que a "nossa" leitura dominante de Weber radicaliza a autonomização da primeira dimensão diante da segunda, enquanto atribui a Marx, em que pese a sua argumentação em O 18 brumário e em outros momentos densos da sua obra, uma concepção na qual desaparecem inteiramente os temas da autonomia da política quanto aos interesses e do Estado quanto à sociedade civil, que vão ser, para citar apenas um autor, o leitmotiv da sociologia política de um pensador marxista do porte de Antonio Gramsci.
O Weber da versão hoje hegemônica nas ciências sociais e na opinião pública sobre a interpretação do Brasil, tem sido aquele dos que apontam o nosso atraso como resultante de um vício de origem, em razão do tipo de colonização a que fomos sujeitos, a chamada herança do patrimonialismo ibérico, cujas estruturas teriam sido ainda mais reforçadas com o transplante, no começo do século XIX, do Estado português no solo americano. Desse legado, continuamente reiterado ao longo do tempo, adviria a marca de uma certa forma de Estado duramente autônomo em relação à sociedade civil, que, ao abafar o mundo dos interesses privados e inibir a livre iniciativa, teria comprometido a história das instituições com concepções organicistas da vida social e levado à afirmação da racionalidade burocrática em detrimento da racional-legal. Ainda segundo essa versão, a ausência do feudalismo na experiência ibérica, inclusive no Brasil, aproximaria a forma patrimonial do nosso Estado à tradição política do Oriente, onde não se observariam fronteiras nítidas a demarcar as atividades das esferas pública e privada. Raimundo Faoro, no seu clássico Os donos do poder, além de avizinhar o iberismo do despotismo oriental, retomando o argumento de Tavares Bastos e Sarmiento, liberais ibero-americanos do século XIX, sugere a necessidade, motivado pelo seu estudo de caso, de se proceder à revisão da tese de Weber, que vincula a emergência do espírito capitalista à ética calvinista, em favor da que sustenta que "somente os países revolvidos pelo feudalismo" teriam chegado a adotar o sistema capitalista, integrando nele a sociedade e o Estado" (Faoro, 1975, vol. 1:22).
Não seríamos propriamente um caso ocidental, uma vez que, aqui, o Estado, por anteceder aos grupos de interesses, mais do que autônomo em face da sociedade civil, estaria empenhado na realização de objetivos próprios aos seus dirigentes, enquanto a administração pública, vista como um bem em si mesmo, é convertida em um patrimônio a ser explorado por eles. Inscritos no Oriente político — Simon Schwartzman, ao conceituar patrimonialismo, categoria central do seu influente Bases do autoritarismo brasileiro, não somente cita o Marx do modo de produção asiático, como também o clássico de K. Wittfogel sobre as sociedades hidráulicas do despotismo oriental (Schwartzman, 1982:43) —, conheceríamos um sistema político de cooptação sobreposto ao de representação, uma sociedade estamental igualmente sobreposta à estrutura de classes, o primado do Direito Administrativo sobre o Direito Civil, a forma de domínio patrimonial-burocrática e o indivíduo como um ser desprovido de iniciativa e sem direitos diante do Estado.
Tal versão, hegemônica na controvérsia sobre a explicação do Brasil, procura contrapor a dimensão da física dos interesses à metafísica brasileira, historicamente centrada na idéia de uma comunhão entre o Estado e a nação, investido aquele da representação em geral da sociedade e do papel de intérprete das suas expectativas de realização, e sobretudo na noção de que o interesse do particular, para ter a sua legitimidade plenamente reconhecida, deva se mostrar compatível com o da comunidade nacional. O capitalismo brasileiro, originário dessa metafísica, seria, pois, politicamente orientado, uma modalidade patológica de acesso ao moderno, implicando uma modernização sem prévia ruptura com o passado patrimonial, o qual, ademais, continuamente se reproduziria, na medida em que as elites identificadas com ele deteriam o controle político do processo de mudança social. O Estado neopatrimonial, ao restringir a livre manifestação dos interesses, e ao dificultar, com suas práticas de cooptação, a sua agregação em termos sindicais e, principalmente políticos, favoreceria, assim, a preservação das desigualdades sociais crônicas ao país.
Romper com esse Oriente político significaria, de um lado, uma reforma política que abrisse o Estado à diversidade dos interesses manifestos na sociedade civil, impondo a prevalência do sistema de representação, e, de outro, a emancipação desses interesses de qualquer razão de tipo tutelar. A identificação do caráter quase asiático do Estado brasileiro como obstáculo à liberdade e a padrões igualitários de convivência social, argumento que tem como ponto de partida a sua radical autonomia diante da sociedade civil e o que seria a separação dramática entre seus fins políticos e a esfera dos interesses privados, leva, então, à sugestão de que a reforma do Estado deve estar dirigida à sua abertura a essa esfera, realizando o seu papel democrático na administração e composição dos diferentes e contraditórios interesses socialmente explicitados. Somente a física dos interesses pode remover a velha tradição metafísica brasileira, que estaria comprometida com a noção de uma sociedade hierárquica e desigual.
A ruptura, pois, como em Tavares Bastos no século passado, deveria se aplicar no plano da institucionalidade política, especialmente no que diz respeito à forma do Estado, uma vez que, ao se conceder plena liberdade aos interesses, eles tendem a produzir uma dinâmica benfazeja que traz consigo maior igualdade social. O patrimonialismo é marca do Estado, e não da sociedade, e, por isso mesmo, nessa versão interpretativa, ela não comparece como dimensão analítica, em particular na sua questão agrária: o argumento cinge-se ao institucional, a reforma na política contém em germe a possibilidade da boa sociedade. A leitura do tema do patrimonialismo em Weber, à medida que se volta para o paradigma do Oriente clássico, onde não se conheceu o direito à propriedade individual, direito que, desde os gregos, nasce com o Ocidente, é, então, prisioneira do ângulo das instituições políticas, crucialmente do Estado, e é daí que provém a sua ênfase na reforma política e não na reforma social. Desse eixo explicativo deriva uma das principais controvérsias da literatura, opondo, de um lado, os que advogam, desde Tavares Bastos aos constituintes de 1891 e aos adeptos de hoje da reforma política como base prévia para a modernização do país, que o país legal deva mudar o país real, e, de outro, os que invertem o sentido dessa proposição.
Na interpretação que privilegia o fenômeno do patrimonialismo pela forma do Estado, contudo, o que haveria de oriental na política tenderia a ser deslocado pela afirmação dos interesses, o estado de São Paulo, com a expansão da agroexportação cafeeira, um primeiro esboço do Ocidente sobre o qual deveria se assentar a arquitetura institucional da democracia representativa, removendo-se a pesada carga de um Estado parasitário a fim de dar passagem aos interesses e à sua livre agregação. Nesse sentido, conta-se a saga de infortúnios da democracia brasileira a partir das derrotas políticas de São Paulo, que o teriam privado de universalizar o seu paradigma ocidental. Nessa versão, portanto, a chamada revolução de 1930 teria retomado o velho fio ibérico de precedência do Estado sobre a sociedade civil, a era Vargas entendida como contínua ao ciclo dominado pelo eixo Pombal—D. Pedro II, uma projeção do Império, uma vez que expressaria as mesmas "vigas mestras da estrutura" ao traduzirem a realidade patrimonialista na ordem estatal centralizada (Faoro, 1975, vol. 2:725). Afora o interregno de hegemonia de São Paulo — 1889-1930 — ou mesmo de influência deste Estado — 1934-1937 —, a força da tradição e o peso das estruturas do Estado induzem a uma determinação, a "todos superior, condutora e não passivamente moldada", que leva o quadro administrativo a dominar a cúpula. E, assim, "em 1945, o ditador já não temia mais a hegemonia paulista, só possível na base de núcleos econômicos não dependentes, como fora a lavoura cafeeira", trazendo os seus interesses para a malha do Estado, lugar patrimonial de extração de riqueza e de distribuição de prebendas, a esta altura vinculando, cartorialmente, o parque industrial paulista à sua administração (idem).
A revolução de 1930 consistiria, pois, em um retorno às raízes patrimoniais, obedecendo ao movimento oculto das estruturas, e não em uma invenção com que os dirigentes da ordem burguesa, diante da crise de legitimidade da Primeira República, teriam ampliado o alcance da universalização do Estado, impondo-lhe maior autonomia quanto à esfera dos interesses — no caso, os dominantes em São Paulo —, a fim de permitir a incorporação ao sistema da ordem dos personagens emergentes da vida urbana, como militares, empresários, operários e intelectuais. O que teria sido o feliz interregno 1889-1930, quando os interesses encontraram representação na política e conformaram o Estado, no contexto institucional da Carta americana de 1891 e do sistema de dominação formalmente racional-legal dela derivado, foi, como sabido, o momento republicano em que a esfera pública foi apropriada pela esfera privada e em que se solidarizou aquele sistema de dominação com a ordem patrimonial pela via do sistema político do coronelismo.
O interesse, como instância isolada — como já fora percebido nas lições clássicas do radicalismo filosófico inglês, em Hegel, Tocqueville, para não falar de Marx —, conduzia ao particularismo na forma do Estado, e, nas condições retardatárias da sociedade brasileira, onde predominava o estatuto da dependência pessoal, tendia a se combinar com as formas de mando oligárquicas e a sociabilidade de tipo hierárquico que prevaleciam no país. O primado do interesse, na Primeira República, assim, não se confronta com as formas de dominação tradicionais, antes as subordina, convertendo o atraso, tal como na exemplar demonstração de Victor Nunes Leal em seus estudos sobre o coronelismo, em uma vantagem para o moderno que estaria representado pela economia dominante em São Paulo, sob a direção de um patriciado com origem na propriedade fundiária e orientado por valores de mercado — a Prússia paulista será uma invenção da Primeira República.
Pelo ângulo do Oriente, isto é, considerando o patrimonialismo como um fenômeno de Estado, essa versão weberiana sobre a interpretação do Brasil, mais do que identificar o atraso como próprio à instância do político, tenderá a ocultar as relações patrimoniais que instituem o tecido da sociabilidade, perdendo de vista, na linguagem da controvérsia do pensamento social brasileiro, "o país real", especialmente o mundo agrário, as relações de dependência pessoal que aí se estabelecem e de como o seu paradigma paulista, longe de representar uma linha de oposição entre atraso e moderno, representação e cooptação, ordem racional-legal e patrimonialismo, na verdade, aponta para uma composição ambígua dessas polaridades, imprimindo à matriz do interesse a marca de um particularismo privatista antípoda à formação da cultura cívica.
Na outra ponta da recepção de Weber, transita-se da perspectiva das instituições políticas para a da sociologia, com centralidade na questão agrária e no patrimonialismo de base societal, e, principalmente, do Oriente para o Ocidente, de cuja história e processo de desenvolvimento o Brasil seria um resultado e parte integrante, embora incluído nele como um caso retardatário e ambíguo, uma vez que combinaria em si a forma moderna do Estado de arquitetura liberal com o instituto da escravidão e com a organização social de tipo patrimonial. Weber, nessa chave, deixa de ser mobilizado como uma referência que se contraponha a Marx na questão da autonomia do Estado e do político em geral, recolhendo-se dele a marcação teórica para a análise da sociedade "senhorial escravocrata" e a sua organização estamental, enquanto em Marx se vão procurar os conceitos que permitam explicar a inscrição do país no sistema do capitalismo mundial e a transição para uma "ordem social competitiva" fundada em uma estrutura de classes moderna.
Daí se vê, por conseguinte, a heterogeneidade na recepção brasileira de Weber, que estaria presente tanto na versão interpretativa dos que identificam os elementos quase asiáticos que teriam presidido a formação do Estado nacional, em razão do transplante do patrimonialismo de Estado português, como a raiz dos nossos males, como na dos que, como Florestan Fernandes, Maria Silvia de Carvalho Franco e José Murilo de Carvalho, à medida que entendem, nas palavras do primeiro, "o Estado [...] como a única entidade que podia ser manipulável desde o início [...] com vistas à sua progressiva adaptação à filosofia política do liberalismo" (Fernandes, 1975:35), ou, nas da segunda, para quem a "organização administrativa desse período [década de 1830] fundava-se formalmente no princípio burocrático de obediência a um poder público abstratamente definido, legitimado e expresso por normas racionalmente criadas e legalmente estatuídas" (Franco, 1969:116), ou, ainda, nas do último, ao sustentar que a burocracia imperial não teria se constituído em um estamento (Carvalho, 1980:129), provocando, com isso, o deslocamento da inquirição sobre a causa do nosso atraso para o terreno das relações sociais e do impacto da natureza patrimonial delas sobre um Estado, em sua concepção original, de extração moderna.
Nessa interpretação, cujo eixo se encontra na caracterização do compromisso que se estabeleceu, a partir da Independência, entre a ordem racional-legal e a patrimonial, entre o liberalismo da forma do político e as estruturas econômicas herdadas da Colônia, entre o atraso e o moderno, compreendido o primeiro como racional ao capitalismo, entre a representação e a cooptação, o problema da ruptura não deveria estar referido ao Estado, mas sim às relações sociais de padrão patrimonial, fazendo com que "toda a conduta dos personagens [venha] entrelaçada com a concessão de mercês, expondo a vigência do princípio de dominação pessoal, base pouco propícia para a orientação racional da ação" (Franco, 1969:27). Sob esse ângulo, a ruptura põe-se no registro da longa duração, sendo o resultado de transformações moleculares nas relações tradicionais, historicamente responsáveis pela contenção da afirmação da sociedade de classes entre nós, caracterizando a revolução burguesa no país como dominada pelo andamento passivo, e, como tal, melhor representada conceitualmente pelo tema da transição, no caso, o da transição da ordem senhorial escravocrata para a ordem social competitiva.
O processo de diferenciação dos interesses entre colônia e metrópole, de onde surgira o espírito nativista e a adesão ao liberalismo dos homens que realizaram a Independência, teria importado uma forma particular de internalização da ideologia liberal, em que ela viria a expressar mais os anseios "de emancipação dos estamentos senhoriais da 'tutela colonial'" do que os de "emancipação nacional" (Fernandes, 1975:36). Concretizada, porém, a Independência, na análise de Florestan Fernandes, esse movimento se inverte, com a conversão do liberalismo em uma força dinamizadora da sociedade civil nascida da Independência, "uma esfera na qual se afirma e dentro da qual preenche sua função típica de transcender e negar a ordem existente" (idem:39). Transcendência e negação que, na passagem da sociedade colonial à sociedade nacional, iriam exigir processos históricos de longa duração, no curso dos quais se produziriam, pelo papel da ideologia e das instituições liberais na "revolução encapuzada" da Independência, contínuas transformações moleculares em que se opera, na expressão daquele autor, o sepultamento do passado (idem:46). A intensa floração mercantil que se segue à ruptura com o pacto colonial, a nacionalização do comércio exportador, alterando as funções econômicas do senhor rural, assim como a própria diferenciação social daí resultante, com a criação de novas ocupações qualificadas e o estímulo às profissões liberais, teriam induzido, então, que uma "parte da sociedade global" viesse a se destacar "das estruturas tradicionais preexistentes", passando a constituir o seu "setor livre", "única esfera na qual a livre competição podia alcançar alguma vigência". Sob essa lógica, tem início, apesar das condições "socioeconômicas adversas (por causa da persistência da escravidão e do patrimonialismo), uma área na qual o 'sistema competitivo' pode coexistir e chocar-se com o 'sistema estamental'" (idem:48, ênfases no original).
A transição, pois, da ordem senhorial-escravocrata para a ordem social competitiva cumpre o andamento das revoluções passivas, lida na chave weberiana dos tipos de dominação e das modalidades expressivas de ação que cada um deles comporta, implicando um processo progressivo de realização do moderno em que, por meio da diferenciação societal — basicamente, pela aparição e afirmação de novos papéis sociais de desempenho incompatível com a ordem tradicional —, o sistema de orientação racional da ação tende a se generalizar, tornando-se, por fim, hegemônico. No entanto, em razão da natureza passiva do caminho que o viabiliza como dominante, o sistema de orientação racional da ação pode coexistir com a ordem patrimonial, criando para a burguesia a possibilidade de extrair vantagem tanto do moderno como do atraso: "[a burguesia] se compromete, por igual, com tudo que lhe fosse vantajoso: e, para ela, era vantajoso tirar proveito dos tempos desiguais e da heterogeneidade da sociedade brasileira, mobilizando as vantagens que decorriam tanto do atraso quanto do adiantamento das populações" (idem:204, ênfases no original). Assim, se o Estado nacional nasce "bastante moderno", apto à "modernização ulterior de suas funções econômicas, sociais e culturais", matriz efetiva da expansão do liberalismo no país (idem:38), desde a sua origem ele mantém a marca de uma convivência com uma ordem antitética à sua, que, longe de ser impeditiva de sua afirmação, torna-a possível, sobretudo por consistir na base econômica a partir da qual ele vai poder operar a sua forma de inscrição no capitalismo mundial.
A trajetória de São Paulo, especialmente a partir do momento em que a agroexportação do café veio a se basear no trabalho livre, seria paradigmática de como a afirmação da esfera dos interesses e o sistema de orientação racional do homo œconomicus não teriam sido suficientes para a imposição da ordem social competitiva, importando, pois, em um novo cenário, a reiteração da ambigüidade constitutiva à formação brasileira: de um lado, o "cálculo exato" do homo œconomicus da cultura capitalista do café e dos tipos sociais emergentes com a expansão dos negócios e da industrialização; de outro, no plano da política, a preservação do estilo senhorial, a extração do consentimento e o exercício da coerção por métodos e formas patrimoniais. A ordem competitiva, se prevalece na economia, não irá produzir os agentes sociais vocacionados para uma racionalização do seu mundo, distantes "de uma filosofia política [...] que possa conduzir ao capitalismo como estilo de vida". Como instância isolada, o interesse e os agentes sociais que melhor o representam, mesmo na sua forte manifestação paulista, ficam confinados ao horizonte da esfera privada, "convertendo-se ao liberalismo das elites tradicionais, [incorporando-se], de fato, aos círculos conservadores e [passando] a compartilhar formas de liderança e de dominação políticas variavelmente conflitantes ou inconsistentes com a consolidação da ordem social competitiva [...]" (idem:146, ênfases no original). O interesse moderno, em sua forma já especificamente capitalista, ao abdicar do programa de radicalização do liberalismo, nasce, além de comprometido com as práticas de extrair vantagens do atraso — como realizar, no mundo agrário, a produção de excedente a partir de relações de dependência pessoal —, associado a técnicas de controle social que dissimulem a existência da estrutura de classes e impeçam a sua livre explicitação.
O fracasso das elites econômicas de São Paulo, no momento da transição para o trabalho livre e quando se firma o primado das relações especificamente capitalistas, em realizar "por cima" a universalização da agenda da ordem social competitiva, em nome do cumprimento do programa liberal-radical de difundir o capitalismo como estilo de vida, teria como conseqüência destiná-la a uma construção "por baixo", cuja orientação estivesse voltada a derruir o padrão de heteronomia social prevalecente na sociedade brasileira, suposto da organização patrimonial. Tal construção, por isso mesmo, deveria ter como ponto de partida a afirmação dos interesses dos indivíduos expostos ao estatuto da dependência pessoal ou de cidadania precária do ponto de vista político e social. O nó górdio a ser cortado, a fim de se encontrar passagem para a ordem social competitiva, não estaria, então, no Estado nem no interesse em geral, mas sim em um certo tipo de interesse, que, ao ser livremente manifestado, fosse dotado da propriedade de conformar identidades autônomas, instância nova sem a qual não se poderia romper efetivamente com o legado da herança patrimonial.
Nesse novo caminho para a inquirição do caráter do patrimonialismo brasileiro, do qual resulta a troca de foco do Estado para a sociedade, a percepção da política e do Estado deveria ter o exclusivo agrário como ponto de partida, dado que somente aí se poderia surpreender, no contexto puro da dominação senhorial, a trama da sociabilidade que envolveria os indivíduos submetidos à situação de dependência pessoal, condição para se desvendar o modo particular de articulação entre a dimensão do público e a do privado e a do Estado com a sociedade, pondo-se a nu as conexões internas, vigentes na modelagem da ordem burguesa no país, entre o plano do racional-legal e o do patrimonial. Com essa perspectiva sociológica, que procura combinar analiticamente os micro e os macrofundamentos responsáveis pela formação do Estado, se joga uma nova luz sobre a dimensão do interesse, que deixa de ser percebido como o lugar da inovação e de resistência ao patrimonialismo, e sim da conservação do status quo.
Maria Silvia de Carvalho Franco, no seu clássico Homens livres na ordem escravocrata, ao utilizar o argumento de Weber sobre a singularidade da organização burocrática estatal no Ocidente moderno, demonstra empiricamente como, aqui, nas condições de escassez de recursos que pudesse suportar a ação do Estado, o processo de expropriação do servidor público dos meios materiais da administração teria sido apenas formal, na medida em que, na realidade, boa parte desses meios era financiada com recursos privados. Foi a pobreza da agência estatal, e não a sua natureza pretensamente quase oriental, que teria dado como resultado não desejado a fusão entre o público e o privado, permitindo, assim, que o exercício do poder originário do cargo público pudesse ser traduzido na busca de fins estritamente particulares (Franco, 1969:cap. III). Investigando as condições de funcionamento, no século passado, das Câmaras Municipais do Vale do Paraíba, a autora exprime, de modo exemplar, a versão weberiana que inscreve o patrimonialismo brasileiro como de caráter societal e de raiz agrária:
[...] na base do desenvolvimento da burocracia na administração pública, está um caráter essencial: o processo de expropriação do servidor público dos meios materiais da administração, separando-se com nitidez os recursos oficiais dos bens privados dos funcionários. Pelo que já ficou exposto, vê-se como esse processo de expropriação, no Brasil do século XIX, foi sustado pelo insuperável estado de penúria a que estavam sujeitos os órgãos públicos. Embora mantidos os gastos sempre dentro do imprescindível à preservação dos bens e à continuidade dos serviços do Estado, mesmo para esse mínimo, os recursos oficiais eram escassos, compensando-se essa falta pelas incursões aos bolsos dos cidadãos e das autoridades. E o resultado disto foi que, em lugar do funcionário público tornar-se cada vez mais um executivo que apenas gere os meios da administração, manteve-se preservada a situação em que ele detinha sua propriedade. Isto significa, evidentemente, que ele os podia controlar autonomamente, pois ele os possuía. Seu era o dinheiro com que pagava as obras; seu, o escravo cujos serviços cedia; sua, a casa onde exercia as funções públicas (idem:126, ênfases no original).
Distante, pois, da interpretação que caracteriza o Estado como uma instância radicalmente autônoma da sociedade, como na literatura que o compreende como patrimonial e responsável pelo atraso, a versão que identifica o patrimonialismo brasileiro como fenômeno societal, o percebe, em chave oposta: a imagem do Estado tutelar não passaria de uma simples aparência a dissimular a sua natureza efetiva de Estado instrumento. Embora moderno, na medida em que sua burocracia administrativa estaria referida aos princípios da ordem racional-legal, as suas ações seriam "corrigidas" no plano da vida local — os "pequenos reinos" dos senhores de terras —, sendo permanentemente "negado enquanto entidade autônoma e dotada de competência para agir segundo seus próprios fins", a vida privada prolongando-se para dentro da vida pública, "mantendo, também nesta, a dominação pessoal" (idem:135, 138 e 230).
O elemento retardatário teria a sua origem na sociedade civil, a partir da estruturação do modo de propriedade e das relações de trabalho nela prevalecentes, e não no Estado, impondo a este uma fórmula bifronte, combinando ambiguamente a dominação racional-legal com a tradicional, e àquela um amorfismo que lhe teria impedido de conhecer, quando da passagem para o trabalho livre, uma estrutura de classes de tipo capitalista, o poder pessoal interditando ao seu objeto — o "homem pobre" — a percepção de si como detentor de direitos e interesses próprios, e ao seu sujeito — os grupos dominantes — a identificação dos seus objetivos econômicos comuns a fim de agirem com unidade (idem:231). Dessa forma, para que a matriz do interesse viesse a produzir seres sociais dotados de autonomia e de identidade social definida, importaria, de um lado, erradicar as formas de patrimonialismo societal preservadas no processo de modernização da sociedade brasileira, e, de outro, por um fim na tradicional capacidade da esfera privada de invadir a esfera pública, convertendo-a em um instrumento seu.
O diagnóstico formulado por essa interpretação se fazia singularizar, entre outros motivos, pela compreensão de que atraso e moderno não se achavam, devido à forma de desenvolvimento desigual do capitalismo brasileiro, em contraposição agonística, mas combinados, levando à acomodação princípios antitéticos que se fundiriam de modo heteróclito no Estado, como acima se procurou explicar. Com esse argumento de fundo, o processo de modernização capitalista, com base em uma industrialização politicamente induzida, tal como teve curso a partir de 1930, intensificando-se nas duas décadas seguintes, vai ser entendido como uma confirmação, já em um contexto especificamente capitalista, do compósito em termos de princípios e de sistema da ordem que teria presidido a nossa formação, uma vez que ele se cumpriria sem liberar a manifestação da estrutura de classes e sem deslocar as elites tradicionais do interior do Estado.
O nacional-desenvolvimentismo consistiria na nova práxis burguesa por meio da qual se garantiria continuidade a essa velha solução brasileira, compatibilizando os ideais de modernização econômica das novas elites com a preservação do domínio das oligarquias tradicionais — que ainda reteriam grande parte da população do campo sob o estatuto da dependência pessoal. Por definição, de sustentação pluriclassista, o regime nacional-desenvolvimentista consistiria em uma inovação no sistema da ordem ao admitir, pela via da estrutura corporativa sindical e da outorga da legislação protetora do trabalho, a incorporação dos trabalhadores do mercado formal urbano às instituições e à ideologia de Estado, impondo a eles, em contrapartida, uma situação de heteronomia, com o que se esperava reforçar a sua legitimidade e conferir ao seu projeto o simulacro de uma representação dos interesses da coletividade como um todo (Fernandes, 1976).
É sobre esse assentamento conceitual que a chamada teoria do populismo, com uma influência weberiana mais velada do que explícita — também inspirada, em seus inícios, pela obra do importante sociólogo ítalo-argentino, Gino Germani [1] —, vai encontrar a sua base para a explicação do Brasil, na qual, ao contrário do eixo analítico que a inspira, além de se perder a fina conexão entre atraso e moderno, presente em Fernandes e Franco, a ênfase no macroestrutural vai ceder lugar ao tema da subjetividade, dimensão estratégica onde se radicaria a vontade do ator moderno, sem cuja vigorosa manifestação não se afastariam os constrangimentos estruturais que impediriam a construção de uma identidade autônoma de classe do operariado brasileiro moderno [2].
A teoria do populismo vai se tornar, a partir dos anos 60, particularmente depois do golpe militar de 1964, a linguagem comum dos que entendiam que a miséria brasileira se devia ao fato de a racionalidade ocidental estar, aqui, submersa e condicionada à ordem privada de estilo patrimonial, que se faria preservar nas coalizões pluriclassistas entre elites modernas e tradicionais e o sindicalismo jurisdicionado pela estrutura corporativa. O sindicalismo, como lugar de identificação e de agregação de interesses dos trabalhadores, seria a instância privilegiada de onde se poderia impor a ruptura com a forma heteróclita de Estado, cuja função manifesta consistiria em resguardar, no curso do processo de modernização, a conservação da tradição e os modos de controle social de caráter extra-econômico sobre a força de trabalho, isto é, não especificamente capitalistas.
O populismo resultaria da manipulação das massas trabalhadoras, em sua maioria com origem no mundo rural, mediatizada pela ação carismática de um líder, as quais seriam incorporadas ao sistema da ordem pelo duplo caminho de acesso aos direitos sociais e pelo uso de cursos simbólicos de integração, com o que se procurava levá-las à abdicação da autonomia enquanto classe e à perda de distinção dos seus interesses em favor dos interesses da coalizão de elites à testa do Estado. O carisma, no caso, não se comportaria como uma ação propiciatória ao encantamento do mundo e como um fiat do novo, cumprindo o seu papel em um processo de conservação com mudança controlada, pondo o interesse — e não apenas dos trabalhadores — sob a tutela da racionalização burocrática do Estado. O apelo ao carisma seria, então, um recurso do atraso, e contra ele se deveria insurgir o interesse do trabalhador, cuja racionalização nos sindicatos reclamaria o mercado como direção principal — e não o Estado, que negaria a construção da sua autonomia —, onde o moderno que lhe seria intrinsecamente constitutivo encontraria campo livre para estabelecer as raízes, ao longo do tempo e a partir "de baixo", de uma nova forma de Estado.
Como interpretação do Brasil e como ideologia orientada para a ação, a teoria do populismo nasce sob o registro do interesse moderno dos trabalhadores industriais e da necessidade da sua emancipação dos mecanismos de cooptação por parte do Estado. Nesse sentido, o seu paradigma é o mercado de São Paulo e a sua unidade estratégica de análise é o sindicalismo daquele estado da Federação. Centrada nos problemas da representação sindical e política dos trabalhadores industriais, essa teoria relega ao abandono o veio analítico da sociologia agrária e do movimento dos personagens sociais originários do campo, com o que induz a percepção do atraso como uma região social a ser colonizada por aqueles. Não à toa, muitas das correntes de opinião da esquerda, que, nos anos 70, acolheram a explicação da teoria do populismo, se voltaram, anacronicamente, para a experiência dos Conselhos Operários da época da juventude de Gramsci em Turim, na expectativa de mudar a sociedade e o Estado a partir das fábricas. Nesse particular, a teoria do populismo, inesperadamente, vinha reforçar o campo explicativo da versão weberiana de patrimonialismo de Estado, na medida em que, como ela, se limitava a contrapor à coalizão moderno-atraso, tradicionalmente prevalecente no sistema da ordem, a explicitação social do moderno, sem política e sem alianças com as classes retardatárias dos setores subalternos: o "operário" que emerge da teoria do populismo não está vocacionado, por definição, a se aliar ao camponês.
Essas versões weberianas na interpretação do Brasil, distantes entre si, como se tem procurado demonstrar, guardam, no entanto, algumas afinidades, sobretudo o paradigma paulista e a valorização da matriz do interesse como estratégicos para a democratização do país. Mais substantivamente, o diagnóstico da modernização operada em chave neopatrimonial, conforme a primeira versão aqui sumariada, e o da realizada, na segunda versão, sob o pacto nacional-populista, ambos indicando a necessidade de uma ruptura histórica com a tradição, apresentam elementos comuns, principalmente na indicação do papel negativo do Estado na formação da sociedade brasileira contemporânea. Entre tantas, a maior diferença que as distingue está na compreensão do tema estratégico do interesse, emancipatório em geral para uma, e, em particular, para a outra, e somente na medida em que está associado à questão da autonomia e da identidade de classe.
Essas versões fizeram fortuna — embora nem sempre estivesse visível, em especial em fins da década de 80 e no começo da de 90, o que as singularizava irredutivelmente —, e consistiram no suporte ideal das forças políticas que, após a promulgação da Constituição de 1988, se fizeram dominantes na opinião pública e nos segmentos organizados da sociedade, vindo, mais tarde, a assumir configuração partidária no PSDB e no PT, não por acaso originários do Estado de São Paulo (Barboza, 1995), o primeiro deles, como notório, ocupando a Presidência da República, e, o segundo, o lugar de maior partido de oposição do país. Contudo, a emancipação dos interesses da política dos do Estado não o tem feito virtuoso, assim como a desqualificação da idéia de República em favor da de mercado não tem produzido indivíduos dotados de direitos e gozando de iguais oportunidades na vida. O moderno interesse das elites econômicas de São Paulo, agora como antes, na Primeira República, somente se faz hegemônico no campo da política ao se coligar com as oligarquias — exemplar a aliança governamental entre o PSDB e o PFL —, as quais se utilizam do Estado e dos seus recursos a fim de reciclar e atualizar o seu domínio e identidade de classe. De outra parte, o moderno interesse dos trabalhadores industriais, apesar do vigor demonstrado nas grandes movimentações sociais dos anos 80 e da relativa força eleitoral do partido a que deu nascimento, ao dar as costas ao tema republicano e se tornar prisioneiro do seu interesse particular, não se vem revestindo de capacidade de universalização.
Sob o império do interesse, uma década depois de promulgada a mais democrática Carta constitucional que o país já conheceu, pode-se constatar, contra os melhores votos formulados pelas interpretações dominantes sobre o Brasil, que a ordem racional-legal não se faz acompanhar necessariamente de mais justiça — ademais, com o Executivo ultrapassando o Legislativo em matéria de legislação pelo uso das Medidas Provisórias, nem previsibilidade ela pode garantir —, assim como uma estrutura de classes sociologicamente "limpa" não erige automaticamente sobre si uma representação política que favoreça as maiorias. O moderno, pois, não veio a encantar o mundo dos brasileiros, pondo-os em um faroeste idílico propício à livre iniciativa e à realização de trajetórias individuais venturosas, mas a racionalizar a sua vida a partir de valores de mercado, como, aliás, seria de esperar de uma previsão weberiana.
As linhas principais dessas interpretações do Brasil se tornaram idéias-força e se encontraram com os atores que as conduziram à concretização — e, nisso, comprovaram o seu caráter não arbitrário —, mas o seu êxito intelectual e político está muito distante dos resultados práticos previstos nos seus diagnósticos: a malaise, se muda o cenário, é a mesma e se aprofunda nos níveis de exclusão e fragmentação social. Mais do que isso, o movimento novo que reanima a sociedade vem de um lugar insuspeitado: do atraso e da ralé de quatro séculos, onde o interesse é como se fosse virtual, uma expectativa e não um fato tangível, fora do mercado e do mundo dos direitos constituídos, dos trabalhadores sem terra. Esse movimento é, por natureza, republicano, na medida em que se dirige necessariamente ao Estado e à arena pública a fim de converter à cidadania indivíduos destituídos de direitos e até de interesses — salvo o natural de conservar a própria vida, uma vez que sequer fazem parte da força de trabalho, constituindo-se em "sobra" consolidada da população. Além disso, como o seu interesse não se reveste de materialidade, ao contrário do que ocorre com o campesinato clássico, para que ele venha à luz é indispensável a organização prévia e a concepção de uma adequada rede social que viabilize sua resistência nas invasões de terra e nos acampamentos. Dessa forma, ao menos para nascer, o seu interesse requer a virtude, intrínseca à sua manifestação a fórmula tocquevilliana do "interesse bem compreendido".
Nessa hora em que se esgotam as perspectivas de boa sociedade contidas nas promessas feitas pelas interpretações hegemônicas sobre o Brasil, em que cabia ao moderno, no "mercado" político e no mercado propriamente dito, dar passagem à liberdade e à igualdade, a relação entre atraso e República pode apontar para um recomeço. Em primeiro lugar, porque os seus temas de fundo são o da ampliação da cidadania e o da defesa da sociabilidade contra o que seria a naturalidade dos mecanismos de mercado em um mundo globalizado; e, em segundo, porque importa uma reabertura da avaliação da nossa história, e, com ela, do que foi a nossa Ibéria, certamente uma república de poucos, embora tenha se mostrado apta à incorporação dos setores emergentes na sociedade brasileira, como se verificava no imediato pré-64. Decerto que ela ficou para trás, como também ficou a idéia do Estado nacional como uma comunidade superposta aos interesses dos indivíduos que o compunham.
O interesse sem República, não importa quem seja o seu portador, vive a lógica do mercado, e a questão reside, então, na possibilidade de ela ser construída a partir de uma nova sociabilidade que se credencie a resolver a velha dissociação entre as esferas do público e do privado, para o que ainda são referências importantes as obras de Tocqueville e Gramsci, assim como o esforço da teoria contemporânea no sentido de fundamentar uma democracia deliberativa, com todas as suas implicações sobre uma reforma ético-moral — como a queria Gramsci, por exemplo — que venha a deslocar a questão da eticidade do plano do Estado para o da sociedade civil. A República é um espaço comunitário, em que os interesses também expressam valores e uma certa história comum; o grande desafio para uma nova interpretação do Brasil está em abrir o campo de indagações e possibilidades a fim de que a física moderna dos interesses "bem compreendidos" — vale dizer, do interesse dotado de capacidade de universalização na medida em que também venha a expressar valores públicos — se encontre com a metafísica brasileira [3], pondo-a sob a sua direção, e traduzindo para o plano da sociabilidade a tradição de valorização do público que a Ibéria praticou no interior do seu Estado, cumprindo assim o programa republicano de formar uma comunidade de cidadãos com iguais direitos à vida e à realização pessoal e que tenha a sua história como um dos sistemas de orientação que a projetem para a frente.
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Luiz Werneck Vianna é professor do Iuperj e autor, entre outros, de Liberalismo e sindicato no Brasil.
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Notas
[1] Particularmente influente foi a sua Sociología de la modernización (Germani, 1969).
[2] Sobre o ponto, ver, de F. Weffort, Sindicatos e política, obra de ampla recepção entre os cientistas sociais brasileiros dos anos 70 e 80 (Weffort, s/d).
[3] Sobre a metafísica brasileira e suas relações com o mundo dos interesses, ver A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Werneck Vianna, 1997) e O quinto século — André Rebouças e a construção do Brasil (Rezende de Carvalho, 1997).
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FAORO, Raimundo. (1975). Os donos do poder. Porto Alegre/São Paulo: Ed. Globo/Ed. da Universidade de São Paulo.
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GERMANI, Gino. (1969). Sociologia de la modernización. Buenos Aires:
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MELO, Manoel Palácios Cunha. (1997). As ciências sociais no Brasil. Tese de Doutorado, IUPERJ.
REZENDE DE CARVALHO, Maria Alice. (1997). O quinto século — André Rebouças e a construção do Brasil. Tese de Doutorado, IUPERJ.
SCHWARTZMAN, Simon. (1982). Bases do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Campus.
WEFFORT, Francisco C. (s/d). Sindicatos e política. Tese de Livre-Docência, USP.
WERNECK VIANNA, Luiz. (1997). A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.
Weber e a interpretação do Brasil
Luiz Werneck Vianna - 1999
O nível de maturidade de uma universidade, especialmente em uma situação periférica como a nossa, pode ser indicado pela sua capacidade de apropriar-se do pensamento clássico, e, de modo ainda mais seguro, quando a interpelação aos fundadores de uma certa tradição disciplinar não se limita às traduções, mas pretende, por esforço próprio, estabelecer o sentido da sua obra, tal como neste "Seminário Internacional Max Weber". Entre nós, assiste-se a um movimento desse tipo, valendo o registro de que a universidade americana deve muito da sua significação, em particular na área de humanas, à dedicação com que se empenhou nessa direção a partir dos anos 30. Neste seminário, operamos a tentativa de apropriação de um clássico, processo em que, como inevitável, ele como que nasce outra vez, vindo à luz a partir de perguntas e de inquietações sobre a nossa realidade, importando, no caso, a recepção que concedemos a ele no nosso contexto cultural.
Marx e Weber, dos pensadores clássicos das ciências sociais, não somente estão entre os três autores mais citados nas dissertações de mestrado e nas teses de doutorado da disciplina (Melo, 1997), como também se constituem na principal referência da grande controvérsia que anima a literatura sobre a interpretação do Brasil. Contudo, tem predominado, até aqui, um tipo de recepção a eles que enfatiza aspectos parciais das suas teorias, selecionados em função das diferentes motivações dos autores brasileiros que os mobilizam para suas explicações do país. Assim, quanto a Marx, a apropriação que se faz do seu trabalho varia, como se sabe, em função das opções temáticas dos seus intérpretes: a valorização do tema da vontade política como recurso de superação da disjuntiva atraso/moderno, tendo motivado — principalmente nos círculos extra-universitários — uma leitura que privilegiou os seus textos políticos, que contemplavam a possibilidade de saltos revolucionários, dando curso a um marxismo cujo paradigma é a Rússia, enquanto a preferência pela análise do processo de imposição do capitalismo no Brasil, como na grande reflexão social paulista, conduziu a uma maior aproximação com o modelo de O capital com base no paradigma inglês.
O "nosso" Weber tem conhecido uma fortuna similar, uma vez que tem sido convocado pela literatura, predominantemente, para explicar o atraso da sociedade brasileira, com o que se tem limitado a irradiação da sua influência a uma sociologia da modernização. Daí que a mobilização desse autor, pela perspectiva do atraso, se faça associar ao diagnóstico que reivindica a ruptura como passo necessário para a conclusão dos processos de mudança social que levam ao moderno — no caso, com o patrimonialismo ibérico, cuja forma de Estado confinaria com o despotismo oriental. Tem-se, então, que uma obra radicalmente inscrita na cultura política do Ocidente, com seus valores universalistas, impasses e promessas de realização, seja descortinada pelo ângulo do Oriente e dos caminhos possíveis para a sua modernização. Assim é que o "nosso" Weber incide bem menos na inquirição das patologias da modernidade do que nas formas patológicas de acesso ao moderno.
Weber, como Marx, tem sido, desde os anos 50, quando a ciência social brasileira recuperou a linha ensaística dos pioneiros na interpretação do Brasil, como a de Euclides da Cunha, Silvio Romero, Oliveira Vianna, Caio Prado Jr., Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, uma das principais marcações teóricas da produção que se voltou para o objetivo de explicar a singularidade da nossa formação social. Decerto que grande parte da controvérsia, no campo das explicações que concorrem entre si, está vinculada às diferentes concepções intrínsecas aos sistemas de Marx e Weber, sobretudo as que se manifestam no campo axiológico, com as óbvias repercussões que daí derivam para a análise do comportamento do ator social e dos condicionantes exercidos sobre ele pelas estruturas sociais. A remissão, contudo, à obra desses autores nem sempre contempla o que há de efetivamente diverso entre eles, abdicando das nuanças e da complexidade das suas construções teóricas originais a fim de demarcar oposições, freqüentemente idiossincráticas. Assim, por exemplo, com as relações entre o Estado e a sociedade civil, em que a "nossa" leitura dominante de Weber radicaliza a autonomização da primeira dimensão diante da segunda, enquanto atribui a Marx, em que pese a sua argumentação em O 18 brumário e em outros momentos densos da sua obra, uma concepção na qual desaparecem inteiramente os temas da autonomia da política quanto aos interesses e do Estado quanto à sociedade civil, que vão ser, para citar apenas um autor, o leitmotiv da sociologia política de um pensador marxista do porte de Antonio Gramsci.
O Weber da versão hoje hegemônica nas ciências sociais e na opinião pública sobre a interpretação do Brasil, tem sido aquele dos que apontam o nosso atraso como resultante de um vício de origem, em razão do tipo de colonização a que fomos sujeitos, a chamada herança do patrimonialismo ibérico, cujas estruturas teriam sido ainda mais reforçadas com o transplante, no começo do século XIX, do Estado português no solo americano. Desse legado, continuamente reiterado ao longo do tempo, adviria a marca de uma certa forma de Estado duramente autônomo em relação à sociedade civil, que, ao abafar o mundo dos interesses privados e inibir a livre iniciativa, teria comprometido a história das instituições com concepções organicistas da vida social e levado à afirmação da racionalidade burocrática em detrimento da racional-legal. Ainda segundo essa versão, a ausência do feudalismo na experiência ibérica, inclusive no Brasil, aproximaria a forma patrimonial do nosso Estado à tradição política do Oriente, onde não se observariam fronteiras nítidas a demarcar as atividades das esferas pública e privada. Raimundo Faoro, no seu clássico Os donos do poder, além de avizinhar o iberismo do despotismo oriental, retomando o argumento de Tavares Bastos e Sarmiento, liberais ibero-americanos do século XIX, sugere a necessidade, motivado pelo seu estudo de caso, de se proceder à revisão da tese de Weber, que vincula a emergência do espírito capitalista à ética calvinista, em favor da que sustenta que "somente os países revolvidos pelo feudalismo" teriam chegado a adotar o sistema capitalista, integrando nele a sociedade e o Estado" (Faoro, 1975, vol. 1:22).
Não seríamos propriamente um caso ocidental, uma vez que, aqui, o Estado, por anteceder aos grupos de interesses, mais do que autônomo em face da sociedade civil, estaria empenhado na realização de objetivos próprios aos seus dirigentes, enquanto a administração pública, vista como um bem em si mesmo, é convertida em um patrimônio a ser explorado por eles. Inscritos no Oriente político — Simon Schwartzman, ao conceituar patrimonialismo, categoria central do seu influente Bases do autoritarismo brasileiro, não somente cita o Marx do modo de produção asiático, como também o clássico de K. Wittfogel sobre as sociedades hidráulicas do despotismo oriental (Schwartzman, 1982:43) —, conheceríamos um sistema político de cooptação sobreposto ao de representação, uma sociedade estamental igualmente sobreposta à estrutura de classes, o primado do Direito Administrativo sobre o Direito Civil, a forma de domínio patrimonial-burocrática e o indivíduo como um ser desprovido de iniciativa e sem direitos diante do Estado.
Tal versão, hegemônica na controvérsia sobre a explicação do Brasil, procura contrapor a dimensão da física dos interesses à metafísica brasileira, historicamente centrada na idéia de uma comunhão entre o Estado e a nação, investido aquele da representação em geral da sociedade e do papel de intérprete das suas expectativas de realização, e sobretudo na noção de que o interesse do particular, para ter a sua legitimidade plenamente reconhecida, deva se mostrar compatível com o da comunidade nacional. O capitalismo brasileiro, originário dessa metafísica, seria, pois, politicamente orientado, uma modalidade patológica de acesso ao moderno, implicando uma modernização sem prévia ruptura com o passado patrimonial, o qual, ademais, continuamente se reproduziria, na medida em que as elites identificadas com ele deteriam o controle político do processo de mudança social. O Estado neopatrimonial, ao restringir a livre manifestação dos interesses, e ao dificultar, com suas práticas de cooptação, a sua agregação em termos sindicais e, principalmente políticos, favoreceria, assim, a preservação das desigualdades sociais crônicas ao país.
Romper com esse Oriente político significaria, de um lado, uma reforma política que abrisse o Estado à diversidade dos interesses manifestos na sociedade civil, impondo a prevalência do sistema de representação, e, de outro, a emancipação desses interesses de qualquer razão de tipo tutelar. A identificação do caráter quase asiático do Estado brasileiro como obstáculo à liberdade e a padrões igualitários de convivência social, argumento que tem como ponto de partida a sua radical autonomia diante da sociedade civil e o que seria a separação dramática entre seus fins políticos e a esfera dos interesses privados, leva, então, à sugestão de que a reforma do Estado deve estar dirigida à sua abertura a essa esfera, realizando o seu papel democrático na administração e composição dos diferentes e contraditórios interesses socialmente explicitados. Somente a física dos interesses pode remover a velha tradição metafísica brasileira, que estaria comprometida com a noção de uma sociedade hierárquica e desigual.
A ruptura, pois, como em Tavares Bastos no século passado, deveria se aplicar no plano da institucionalidade política, especialmente no que diz respeito à forma do Estado, uma vez que, ao se conceder plena liberdade aos interesses, eles tendem a produzir uma dinâmica benfazeja que traz consigo maior igualdade social. O patrimonialismo é marca do Estado, e não da sociedade, e, por isso mesmo, nessa versão interpretativa, ela não comparece como dimensão analítica, em particular na sua questão agrária: o argumento cinge-se ao institucional, a reforma na política contém em germe a possibilidade da boa sociedade. A leitura do tema do patrimonialismo em Weber, à medida que se volta para o paradigma do Oriente clássico, onde não se conheceu o direito à propriedade individual, direito que, desde os gregos, nasce com o Ocidente, é, então, prisioneira do ângulo das instituições políticas, crucialmente do Estado, e é daí que provém a sua ênfase na reforma política e não na reforma social. Desse eixo explicativo deriva uma das principais controvérsias da literatura, opondo, de um lado, os que advogam, desde Tavares Bastos aos constituintes de 1891 e aos adeptos de hoje da reforma política como base prévia para a modernização do país, que o país legal deva mudar o país real, e, de outro, os que invertem o sentido dessa proposição.
Na interpretação que privilegia o fenômeno do patrimonialismo pela forma do Estado, contudo, o que haveria de oriental na política tenderia a ser deslocado pela afirmação dos interesses, o estado de São Paulo, com a expansão da agroexportação cafeeira, um primeiro esboço do Ocidente sobre o qual deveria se assentar a arquitetura institucional da democracia representativa, removendo-se a pesada carga de um Estado parasitário a fim de dar passagem aos interesses e à sua livre agregação. Nesse sentido, conta-se a saga de infortúnios da democracia brasileira a partir das derrotas políticas de São Paulo, que o teriam privado de universalizar o seu paradigma ocidental. Nessa versão, portanto, a chamada revolução de 1930 teria retomado o velho fio ibérico de precedência do Estado sobre a sociedade civil, a era Vargas entendida como contínua ao ciclo dominado pelo eixo Pombal—D. Pedro II, uma projeção do Império, uma vez que expressaria as mesmas "vigas mestras da estrutura" ao traduzirem a realidade patrimonialista na ordem estatal centralizada (Faoro, 1975, vol. 2:725). Afora o interregno de hegemonia de São Paulo — 1889-1930 — ou mesmo de influência deste Estado — 1934-1937 —, a força da tradição e o peso das estruturas do Estado induzem a uma determinação, a "todos superior, condutora e não passivamente moldada", que leva o quadro administrativo a dominar a cúpula. E, assim, "em 1945, o ditador já não temia mais a hegemonia paulista, só possível na base de núcleos econômicos não dependentes, como fora a lavoura cafeeira", trazendo os seus interesses para a malha do Estado, lugar patrimonial de extração de riqueza e de distribuição de prebendas, a esta altura vinculando, cartorialmente, o parque industrial paulista à sua administração (idem).
A revolução de 1930 consistiria, pois, em um retorno às raízes patrimoniais, obedecendo ao movimento oculto das estruturas, e não em uma invenção com que os dirigentes da ordem burguesa, diante da crise de legitimidade da Primeira República, teriam ampliado o alcance da universalização do Estado, impondo-lhe maior autonomia quanto à esfera dos interesses — no caso, os dominantes em São Paulo —, a fim de permitir a incorporação ao sistema da ordem dos personagens emergentes da vida urbana, como militares, empresários, operários e intelectuais. O que teria sido o feliz interregno 1889-1930, quando os interesses encontraram representação na política e conformaram o Estado, no contexto institucional da Carta americana de 1891 e do sistema de dominação formalmente racional-legal dela derivado, foi, como sabido, o momento republicano em que a esfera pública foi apropriada pela esfera privada e em que se solidarizou aquele sistema de dominação com a ordem patrimonial pela via do sistema político do coronelismo.
O interesse, como instância isolada — como já fora percebido nas lições clássicas do radicalismo filosófico inglês, em Hegel, Tocqueville, para não falar de Marx —, conduzia ao particularismo na forma do Estado, e, nas condições retardatárias da sociedade brasileira, onde predominava o estatuto da dependência pessoal, tendia a se combinar com as formas de mando oligárquicas e a sociabilidade de tipo hierárquico que prevaleciam no país. O primado do interesse, na Primeira República, assim, não se confronta com as formas de dominação tradicionais, antes as subordina, convertendo o atraso, tal como na exemplar demonstração de Victor Nunes Leal em seus estudos sobre o coronelismo, em uma vantagem para o moderno que estaria representado pela economia dominante em São Paulo, sob a direção de um patriciado com origem na propriedade fundiária e orientado por valores de mercado — a Prússia paulista será uma invenção da Primeira República.
Pelo ângulo do Oriente, isto é, considerando o patrimonialismo como um fenômeno de Estado, essa versão weberiana sobre a interpretação do Brasil, mais do que identificar o atraso como próprio à instância do político, tenderá a ocultar as relações patrimoniais que instituem o tecido da sociabilidade, perdendo de vista, na linguagem da controvérsia do pensamento social brasileiro, "o país real", especialmente o mundo agrário, as relações de dependência pessoal que aí se estabelecem e de como o seu paradigma paulista, longe de representar uma linha de oposição entre atraso e moderno, representação e cooptação, ordem racional-legal e patrimonialismo, na verdade, aponta para uma composição ambígua dessas polaridades, imprimindo à matriz do interesse a marca de um particularismo privatista antípoda à formação da cultura cívica.
Na outra ponta da recepção de Weber, transita-se da perspectiva das instituições políticas para a da sociologia, com centralidade na questão agrária e no patrimonialismo de base societal, e, principalmente, do Oriente para o Ocidente, de cuja história e processo de desenvolvimento o Brasil seria um resultado e parte integrante, embora incluído nele como um caso retardatário e ambíguo, uma vez que combinaria em si a forma moderna do Estado de arquitetura liberal com o instituto da escravidão e com a organização social de tipo patrimonial. Weber, nessa chave, deixa de ser mobilizado como uma referência que se contraponha a Marx na questão da autonomia do Estado e do político em geral, recolhendo-se dele a marcação teórica para a análise da sociedade "senhorial escravocrata" e a sua organização estamental, enquanto em Marx se vão procurar os conceitos que permitam explicar a inscrição do país no sistema do capitalismo mundial e a transição para uma "ordem social competitiva" fundada em uma estrutura de classes moderna.
Daí se vê, por conseguinte, a heterogeneidade na recepção brasileira de Weber, que estaria presente tanto na versão interpretativa dos que identificam os elementos quase asiáticos que teriam presidido a formação do Estado nacional, em razão do transplante do patrimonialismo de Estado português, como a raiz dos nossos males, como na dos que, como Florestan Fernandes, Maria Silvia de Carvalho Franco e José Murilo de Carvalho, à medida que entendem, nas palavras do primeiro, "o Estado [...] como a única entidade que podia ser manipulável desde o início [...] com vistas à sua progressiva adaptação à filosofia política do liberalismo" (Fernandes, 1975:35), ou, nas da segunda, para quem a "organização administrativa desse período [década de 1830] fundava-se formalmente no princípio burocrático de obediência a um poder público abstratamente definido, legitimado e expresso por normas racionalmente criadas e legalmente estatuídas" (Franco, 1969:116), ou, ainda, nas do último, ao sustentar que a burocracia imperial não teria se constituído em um estamento (Carvalho, 1980:129), provocando, com isso, o deslocamento da inquirição sobre a causa do nosso atraso para o terreno das relações sociais e do impacto da natureza patrimonial delas sobre um Estado, em sua concepção original, de extração moderna.
Nessa interpretação, cujo eixo se encontra na caracterização do compromisso que se estabeleceu, a partir da Independência, entre a ordem racional-legal e a patrimonial, entre o liberalismo da forma do político e as estruturas econômicas herdadas da Colônia, entre o atraso e o moderno, compreendido o primeiro como racional ao capitalismo, entre a representação e a cooptação, o problema da ruptura não deveria estar referido ao Estado, mas sim às relações sociais de padrão patrimonial, fazendo com que "toda a conduta dos personagens [venha] entrelaçada com a concessão de mercês, expondo a vigência do princípio de dominação pessoal, base pouco propícia para a orientação racional da ação" (Franco, 1969:27). Sob esse ângulo, a ruptura põe-se no registro da longa duração, sendo o resultado de transformações moleculares nas relações tradicionais, historicamente responsáveis pela contenção da afirmação da sociedade de classes entre nós, caracterizando a revolução burguesa no país como dominada pelo andamento passivo, e, como tal, melhor representada conceitualmente pelo tema da transição, no caso, o da transição da ordem senhorial escravocrata para a ordem social competitiva.
O processo de diferenciação dos interesses entre colônia e metrópole, de onde surgira o espírito nativista e a adesão ao liberalismo dos homens que realizaram a Independência, teria importado uma forma particular de internalização da ideologia liberal, em que ela viria a expressar mais os anseios "de emancipação dos estamentos senhoriais da 'tutela colonial'" do que os de "emancipação nacional" (Fernandes, 1975:36). Concretizada, porém, a Independência, na análise de Florestan Fernandes, esse movimento se inverte, com a conversão do liberalismo em uma força dinamizadora da sociedade civil nascida da Independência, "uma esfera na qual se afirma e dentro da qual preenche sua função típica de transcender e negar a ordem existente" (idem:39). Transcendência e negação que, na passagem da sociedade colonial à sociedade nacional, iriam exigir processos históricos de longa duração, no curso dos quais se produziriam, pelo papel da ideologia e das instituições liberais na "revolução encapuzada" da Independência, contínuas transformações moleculares em que se opera, na expressão daquele autor, o sepultamento do passado (idem:46). A intensa floração mercantil que se segue à ruptura com o pacto colonial, a nacionalização do comércio exportador, alterando as funções econômicas do senhor rural, assim como a própria diferenciação social daí resultante, com a criação de novas ocupações qualificadas e o estímulo às profissões liberais, teriam induzido, então, que uma "parte da sociedade global" viesse a se destacar "das estruturas tradicionais preexistentes", passando a constituir o seu "setor livre", "única esfera na qual a livre competição podia alcançar alguma vigência". Sob essa lógica, tem início, apesar das condições "socioeconômicas adversas (por causa da persistência da escravidão e do patrimonialismo), uma área na qual o 'sistema competitivo' pode coexistir e chocar-se com o 'sistema estamental'" (idem:48, ênfases no original).
A transição, pois, da ordem senhorial-escravocrata para a ordem social competitiva cumpre o andamento das revoluções passivas, lida na chave weberiana dos tipos de dominação e das modalidades expressivas de ação que cada um deles comporta, implicando um processo progressivo de realização do moderno em que, por meio da diferenciação societal — basicamente, pela aparição e afirmação de novos papéis sociais de desempenho incompatível com a ordem tradicional —, o sistema de orientação racional da ação tende a se generalizar, tornando-se, por fim, hegemônico. No entanto, em razão da natureza passiva do caminho que o viabiliza como dominante, o sistema de orientação racional da ação pode coexistir com a ordem patrimonial, criando para a burguesia a possibilidade de extrair vantagem tanto do moderno como do atraso: "[a burguesia] se compromete, por igual, com tudo que lhe fosse vantajoso: e, para ela, era vantajoso tirar proveito dos tempos desiguais e da heterogeneidade da sociedade brasileira, mobilizando as vantagens que decorriam tanto do atraso quanto do adiantamento das populações" (idem:204, ênfases no original). Assim, se o Estado nacional nasce "bastante moderno", apto à "modernização ulterior de suas funções econômicas, sociais e culturais", matriz efetiva da expansão do liberalismo no país (idem:38), desde a sua origem ele mantém a marca de uma convivência com uma ordem antitética à sua, que, longe de ser impeditiva de sua afirmação, torna-a possível, sobretudo por consistir na base econômica a partir da qual ele vai poder operar a sua forma de inscrição no capitalismo mundial.
A trajetória de São Paulo, especialmente a partir do momento em que a agroexportação do café veio a se basear no trabalho livre, seria paradigmática de como a afirmação da esfera dos interesses e o sistema de orientação racional do homo œconomicus não teriam sido suficientes para a imposição da ordem social competitiva, importando, pois, em um novo cenário, a reiteração da ambigüidade constitutiva à formação brasileira: de um lado, o "cálculo exato" do homo œconomicus da cultura capitalista do café e dos tipos sociais emergentes com a expansão dos negócios e da industrialização; de outro, no plano da política, a preservação do estilo senhorial, a extração do consentimento e o exercício da coerção por métodos e formas patrimoniais. A ordem competitiva, se prevalece na economia, não irá produzir os agentes sociais vocacionados para uma racionalização do seu mundo, distantes "de uma filosofia política [...] que possa conduzir ao capitalismo como estilo de vida". Como instância isolada, o interesse e os agentes sociais que melhor o representam, mesmo na sua forte manifestação paulista, ficam confinados ao horizonte da esfera privada, "convertendo-se ao liberalismo das elites tradicionais, [incorporando-se], de fato, aos círculos conservadores e [passando] a compartilhar formas de liderança e de dominação políticas variavelmente conflitantes ou inconsistentes com a consolidação da ordem social competitiva [...]" (idem:146, ênfases no original). O interesse moderno, em sua forma já especificamente capitalista, ao abdicar do programa de radicalização do liberalismo, nasce, além de comprometido com as práticas de extrair vantagens do atraso — como realizar, no mundo agrário, a produção de excedente a partir de relações de dependência pessoal —, associado a técnicas de controle social que dissimulem a existência da estrutura de classes e impeçam a sua livre explicitação.
O fracasso das elites econômicas de São Paulo, no momento da transição para o trabalho livre e quando se firma o primado das relações especificamente capitalistas, em realizar "por cima" a universalização da agenda da ordem social competitiva, em nome do cumprimento do programa liberal-radical de difundir o capitalismo como estilo de vida, teria como conseqüência destiná-la a uma construção "por baixo", cuja orientação estivesse voltada a derruir o padrão de heteronomia social prevalecente na sociedade brasileira, suposto da organização patrimonial. Tal construção, por isso mesmo, deveria ter como ponto de partida a afirmação dos interesses dos indivíduos expostos ao estatuto da dependência pessoal ou de cidadania precária do ponto de vista político e social. O nó górdio a ser cortado, a fim de se encontrar passagem para a ordem social competitiva, não estaria, então, no Estado nem no interesse em geral, mas sim em um certo tipo de interesse, que, ao ser livremente manifestado, fosse dotado da propriedade de conformar identidades autônomas, instância nova sem a qual não se poderia romper efetivamente com o legado da herança patrimonial.
Nesse novo caminho para a inquirição do caráter do patrimonialismo brasileiro, do qual resulta a troca de foco do Estado para a sociedade, a percepção da política e do Estado deveria ter o exclusivo agrário como ponto de partida, dado que somente aí se poderia surpreender, no contexto puro da dominação senhorial, a trama da sociabilidade que envolveria os indivíduos submetidos à situação de dependência pessoal, condição para se desvendar o modo particular de articulação entre a dimensão do público e a do privado e a do Estado com a sociedade, pondo-se a nu as conexões internas, vigentes na modelagem da ordem burguesa no país, entre o plano do racional-legal e o do patrimonial. Com essa perspectiva sociológica, que procura combinar analiticamente os micro e os macrofundamentos responsáveis pela formação do Estado, se joga uma nova luz sobre a dimensão do interesse, que deixa de ser percebido como o lugar da inovação e de resistência ao patrimonialismo, e sim da conservação do status quo.
Maria Silvia de Carvalho Franco, no seu clássico Homens livres na ordem escravocrata, ao utilizar o argumento de Weber sobre a singularidade da organização burocrática estatal no Ocidente moderno, demonstra empiricamente como, aqui, nas condições de escassez de recursos que pudesse suportar a ação do Estado, o processo de expropriação do servidor público dos meios materiais da administração teria sido apenas formal, na medida em que, na realidade, boa parte desses meios era financiada com recursos privados. Foi a pobreza da agência estatal, e não a sua natureza pretensamente quase oriental, que teria dado como resultado não desejado a fusão entre o público e o privado, permitindo, assim, que o exercício do poder originário do cargo público pudesse ser traduzido na busca de fins estritamente particulares (Franco, 1969:cap. III). Investigando as condições de funcionamento, no século passado, das Câmaras Municipais do Vale do Paraíba, a autora exprime, de modo exemplar, a versão weberiana que inscreve o patrimonialismo brasileiro como de caráter societal e de raiz agrária:
[...] na base do desenvolvimento da burocracia na administração pública, está um caráter essencial: o processo de expropriação do servidor público dos meios materiais da administração, separando-se com nitidez os recursos oficiais dos bens privados dos funcionários. Pelo que já ficou exposto, vê-se como esse processo de expropriação, no Brasil do século XIX, foi sustado pelo insuperável estado de penúria a que estavam sujeitos os órgãos públicos. Embora mantidos os gastos sempre dentro do imprescindível à preservação dos bens e à continuidade dos serviços do Estado, mesmo para esse mínimo, os recursos oficiais eram escassos, compensando-se essa falta pelas incursões aos bolsos dos cidadãos e das autoridades. E o resultado disto foi que, em lugar do funcionário público tornar-se cada vez mais um executivo que apenas gere os meios da administração, manteve-se preservada a situação em que ele detinha sua propriedade. Isto significa, evidentemente, que ele os podia controlar autonomamente, pois ele os possuía. Seu era o dinheiro com que pagava as obras; seu, o escravo cujos serviços cedia; sua, a casa onde exercia as funções públicas (idem:126, ênfases no original).
Distante, pois, da interpretação que caracteriza o Estado como uma instância radicalmente autônoma da sociedade, como na literatura que o compreende como patrimonial e responsável pelo atraso, a versão que identifica o patrimonialismo brasileiro como fenômeno societal, o percebe, em chave oposta: a imagem do Estado tutelar não passaria de uma simples aparência a dissimular a sua natureza efetiva de Estado instrumento. Embora moderno, na medida em que sua burocracia administrativa estaria referida aos princípios da ordem racional-legal, as suas ações seriam "corrigidas" no plano da vida local — os "pequenos reinos" dos senhores de terras —, sendo permanentemente "negado enquanto entidade autônoma e dotada de competência para agir segundo seus próprios fins", a vida privada prolongando-se para dentro da vida pública, "mantendo, também nesta, a dominação pessoal" (idem:135, 138 e 230).
O elemento retardatário teria a sua origem na sociedade civil, a partir da estruturação do modo de propriedade e das relações de trabalho nela prevalecentes, e não no Estado, impondo a este uma fórmula bifronte, combinando ambiguamente a dominação racional-legal com a tradicional, e àquela um amorfismo que lhe teria impedido de conhecer, quando da passagem para o trabalho livre, uma estrutura de classes de tipo capitalista, o poder pessoal interditando ao seu objeto — o "homem pobre" — a percepção de si como detentor de direitos e interesses próprios, e ao seu sujeito — os grupos dominantes — a identificação dos seus objetivos econômicos comuns a fim de agirem com unidade (idem:231). Dessa forma, para que a matriz do interesse viesse a produzir seres sociais dotados de autonomia e de identidade social definida, importaria, de um lado, erradicar as formas de patrimonialismo societal preservadas no processo de modernização da sociedade brasileira, e, de outro, por um fim na tradicional capacidade da esfera privada de invadir a esfera pública, convertendo-a em um instrumento seu.
O diagnóstico formulado por essa interpretação se fazia singularizar, entre outros motivos, pela compreensão de que atraso e moderno não se achavam, devido à forma de desenvolvimento desigual do capitalismo brasileiro, em contraposição agonística, mas combinados, levando à acomodação princípios antitéticos que se fundiriam de modo heteróclito no Estado, como acima se procurou explicar. Com esse argumento de fundo, o processo de modernização capitalista, com base em uma industrialização politicamente induzida, tal como teve curso a partir de 1930, intensificando-se nas duas décadas seguintes, vai ser entendido como uma confirmação, já em um contexto especificamente capitalista, do compósito em termos de princípios e de sistema da ordem que teria presidido a nossa formação, uma vez que ele se cumpriria sem liberar a manifestação da estrutura de classes e sem deslocar as elites tradicionais do interior do Estado.
O nacional-desenvolvimentismo consistiria na nova práxis burguesa por meio da qual se garantiria continuidade a essa velha solução brasileira, compatibilizando os ideais de modernização econômica das novas elites com a preservação do domínio das oligarquias tradicionais — que ainda reteriam grande parte da população do campo sob o estatuto da dependência pessoal. Por definição, de sustentação pluriclassista, o regime nacional-desenvolvimentista consistiria em uma inovação no sistema da ordem ao admitir, pela via da estrutura corporativa sindical e da outorga da legislação protetora do trabalho, a incorporação dos trabalhadores do mercado formal urbano às instituições e à ideologia de Estado, impondo a eles, em contrapartida, uma situação de heteronomia, com o que se esperava reforçar a sua legitimidade e conferir ao seu projeto o simulacro de uma representação dos interesses da coletividade como um todo (Fernandes, 1976).
É sobre esse assentamento conceitual que a chamada teoria do populismo, com uma influência weberiana mais velada do que explícita — também inspirada, em seus inícios, pela obra do importante sociólogo ítalo-argentino, Gino Germani [1] —, vai encontrar a sua base para a explicação do Brasil, na qual, ao contrário do eixo analítico que a inspira, além de se perder a fina conexão entre atraso e moderno, presente em Fernandes e Franco, a ênfase no macroestrutural vai ceder lugar ao tema da subjetividade, dimensão estratégica onde se radicaria a vontade do ator moderno, sem cuja vigorosa manifestação não se afastariam os constrangimentos estruturais que impediriam a construção de uma identidade autônoma de classe do operariado brasileiro moderno [2].
A teoria do populismo vai se tornar, a partir dos anos 60, particularmente depois do golpe militar de 1964, a linguagem comum dos que entendiam que a miséria brasileira se devia ao fato de a racionalidade ocidental estar, aqui, submersa e condicionada à ordem privada de estilo patrimonial, que se faria preservar nas coalizões pluriclassistas entre elites modernas e tradicionais e o sindicalismo jurisdicionado pela estrutura corporativa. O sindicalismo, como lugar de identificação e de agregação de interesses dos trabalhadores, seria a instância privilegiada de onde se poderia impor a ruptura com a forma heteróclita de Estado, cuja função manifesta consistiria em resguardar, no curso do processo de modernização, a conservação da tradição e os modos de controle social de caráter extra-econômico sobre a força de trabalho, isto é, não especificamente capitalistas.
O populismo resultaria da manipulação das massas trabalhadoras, em sua maioria com origem no mundo rural, mediatizada pela ação carismática de um líder, as quais seriam incorporadas ao sistema da ordem pelo duplo caminho de acesso aos direitos sociais e pelo uso de cursos simbólicos de integração, com o que se procurava levá-las à abdicação da autonomia enquanto classe e à perda de distinção dos seus interesses em favor dos interesses da coalizão de elites à testa do Estado. O carisma, no caso, não se comportaria como uma ação propiciatória ao encantamento do mundo e como um fiat do novo, cumprindo o seu papel em um processo de conservação com mudança controlada, pondo o interesse — e não apenas dos trabalhadores — sob a tutela da racionalização burocrática do Estado. O apelo ao carisma seria, então, um recurso do atraso, e contra ele se deveria insurgir o interesse do trabalhador, cuja racionalização nos sindicatos reclamaria o mercado como direção principal — e não o Estado, que negaria a construção da sua autonomia —, onde o moderno que lhe seria intrinsecamente constitutivo encontraria campo livre para estabelecer as raízes, ao longo do tempo e a partir "de baixo", de uma nova forma de Estado.
Como interpretação do Brasil e como ideologia orientada para a ação, a teoria do populismo nasce sob o registro do interesse moderno dos trabalhadores industriais e da necessidade da sua emancipação dos mecanismos de cooptação por parte do Estado. Nesse sentido, o seu paradigma é o mercado de São Paulo e a sua unidade estratégica de análise é o sindicalismo daquele estado da Federação. Centrada nos problemas da representação sindical e política dos trabalhadores industriais, essa teoria relega ao abandono o veio analítico da sociologia agrária e do movimento dos personagens sociais originários do campo, com o que induz a percepção do atraso como uma região social a ser colonizada por aqueles. Não à toa, muitas das correntes de opinião da esquerda, que, nos anos 70, acolheram a explicação da teoria do populismo, se voltaram, anacronicamente, para a experiência dos Conselhos Operários da época da juventude de Gramsci em Turim, na expectativa de mudar a sociedade e o Estado a partir das fábricas. Nesse particular, a teoria do populismo, inesperadamente, vinha reforçar o campo explicativo da versão weberiana de patrimonialismo de Estado, na medida em que, como ela, se limitava a contrapor à coalizão moderno-atraso, tradicionalmente prevalecente no sistema da ordem, a explicitação social do moderno, sem política e sem alianças com as classes retardatárias dos setores subalternos: o "operário" que emerge da teoria do populismo não está vocacionado, por definição, a se aliar ao camponês.
Essas versões weberianas na interpretação do Brasil, distantes entre si, como se tem procurado demonstrar, guardam, no entanto, algumas afinidades, sobretudo o paradigma paulista e a valorização da matriz do interesse como estratégicos para a democratização do país. Mais substantivamente, o diagnóstico da modernização operada em chave neopatrimonial, conforme a primeira versão aqui sumariada, e o da realizada, na segunda versão, sob o pacto nacional-populista, ambos indicando a necessidade de uma ruptura histórica com a tradição, apresentam elementos comuns, principalmente na indicação do papel negativo do Estado na formação da sociedade brasileira contemporânea. Entre tantas, a maior diferença que as distingue está na compreensão do tema estratégico do interesse, emancipatório em geral para uma, e, em particular, para a outra, e somente na medida em que está associado à questão da autonomia e da identidade de classe.
Essas versões fizeram fortuna — embora nem sempre estivesse visível, em especial em fins da década de 80 e no começo da de 90, o que as singularizava irredutivelmente —, e consistiram no suporte ideal das forças políticas que, após a promulgação da Constituição de 1988, se fizeram dominantes na opinião pública e nos segmentos organizados da sociedade, vindo, mais tarde, a assumir configuração partidária no PSDB e no PT, não por acaso originários do Estado de São Paulo (Barboza, 1995), o primeiro deles, como notório, ocupando a Presidência da República, e, o segundo, o lugar de maior partido de oposição do país. Contudo, a emancipação dos interesses da política dos do Estado não o tem feito virtuoso, assim como a desqualificação da idéia de República em favor da de mercado não tem produzido indivíduos dotados de direitos e gozando de iguais oportunidades na vida. O moderno interesse das elites econômicas de São Paulo, agora como antes, na Primeira República, somente se faz hegemônico no campo da política ao se coligar com as oligarquias — exemplar a aliança governamental entre o PSDB e o PFL —, as quais se utilizam do Estado e dos seus recursos a fim de reciclar e atualizar o seu domínio e identidade de classe. De outra parte, o moderno interesse dos trabalhadores industriais, apesar do vigor demonstrado nas grandes movimentações sociais dos anos 80 e da relativa força eleitoral do partido a que deu nascimento, ao dar as costas ao tema republicano e se tornar prisioneiro do seu interesse particular, não se vem revestindo de capacidade de universalização.
Sob o império do interesse, uma década depois de promulgada a mais democrática Carta constitucional que o país já conheceu, pode-se constatar, contra os melhores votos formulados pelas interpretações dominantes sobre o Brasil, que a ordem racional-legal não se faz acompanhar necessariamente de mais justiça — ademais, com o Executivo ultrapassando o Legislativo em matéria de legislação pelo uso das Medidas Provisórias, nem previsibilidade ela pode garantir —, assim como uma estrutura de classes sociologicamente "limpa" não erige automaticamente sobre si uma representação política que favoreça as maiorias. O moderno, pois, não veio a encantar o mundo dos brasileiros, pondo-os em um faroeste idílico propício à livre iniciativa e à realização de trajetórias individuais venturosas, mas a racionalizar a sua vida a partir de valores de mercado, como, aliás, seria de esperar de uma previsão weberiana.
As linhas principais dessas interpretações do Brasil se tornaram idéias-força e se encontraram com os atores que as conduziram à concretização — e, nisso, comprovaram o seu caráter não arbitrário —, mas o seu êxito intelectual e político está muito distante dos resultados práticos previstos nos seus diagnósticos: a malaise, se muda o cenário, é a mesma e se aprofunda nos níveis de exclusão e fragmentação social. Mais do que isso, o movimento novo que reanima a sociedade vem de um lugar insuspeitado: do atraso e da ralé de quatro séculos, onde o interesse é como se fosse virtual, uma expectativa e não um fato tangível, fora do mercado e do mundo dos direitos constituídos, dos trabalhadores sem terra. Esse movimento é, por natureza, republicano, na medida em que se dirige necessariamente ao Estado e à arena pública a fim de converter à cidadania indivíduos destituídos de direitos e até de interesses — salvo o natural de conservar a própria vida, uma vez que sequer fazem parte da força de trabalho, constituindo-se em "sobra" consolidada da população. Além disso, como o seu interesse não se reveste de materialidade, ao contrário do que ocorre com o campesinato clássico, para que ele venha à luz é indispensável a organização prévia e a concepção de uma adequada rede social que viabilize sua resistência nas invasões de terra e nos acampamentos. Dessa forma, ao menos para nascer, o seu interesse requer a virtude, intrínseca à sua manifestação a fórmula tocquevilliana do "interesse bem compreendido".
Nessa hora em que se esgotam as perspectivas de boa sociedade contidas nas promessas feitas pelas interpretações hegemônicas sobre o Brasil, em que cabia ao moderno, no "mercado" político e no mercado propriamente dito, dar passagem à liberdade e à igualdade, a relação entre atraso e República pode apontar para um recomeço. Em primeiro lugar, porque os seus temas de fundo são o da ampliação da cidadania e o da defesa da sociabilidade contra o que seria a naturalidade dos mecanismos de mercado em um mundo globalizado; e, em segundo, porque importa uma reabertura da avaliação da nossa história, e, com ela, do que foi a nossa Ibéria, certamente uma república de poucos, embora tenha se mostrado apta à incorporação dos setores emergentes na sociedade brasileira, como se verificava no imediato pré-64. Decerto que ela ficou para trás, como também ficou a idéia do Estado nacional como uma comunidade superposta aos interesses dos indivíduos que o compunham.
O interesse sem República, não importa quem seja o seu portador, vive a lógica do mercado, e a questão reside, então, na possibilidade de ela ser construída a partir de uma nova sociabilidade que se credencie a resolver a velha dissociação entre as esferas do público e do privado, para o que ainda são referências importantes as obras de Tocqueville e Gramsci, assim como o esforço da teoria contemporânea no sentido de fundamentar uma democracia deliberativa, com todas as suas implicações sobre uma reforma ético-moral — como a queria Gramsci, por exemplo — que venha a deslocar a questão da eticidade do plano do Estado para o da sociedade civil. A República é um espaço comunitário, em que os interesses também expressam valores e uma certa história comum; o grande desafio para uma nova interpretação do Brasil está em abrir o campo de indagações e possibilidades a fim de que a física moderna dos interesses "bem compreendidos" — vale dizer, do interesse dotado de capacidade de universalização na medida em que também venha a expressar valores públicos — se encontre com a metafísica brasileira [3], pondo-a sob a sua direção, e traduzindo para o plano da sociabilidade a tradição de valorização do público que a Ibéria praticou no interior do seu Estado, cumprindo assim o programa republicano de formar uma comunidade de cidadãos com iguais direitos à vida e à realização pessoal e que tenha a sua história como um dos sistemas de orientação que a projetem para a frente.
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Luiz Werneck Vianna é professor do Iuperj e autor, entre outros, de Liberalismo e sindicato no Brasil.
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Notas
[1] Particularmente influente foi a sua Sociología de la modernización (Germani, 1969).
[2] Sobre o ponto, ver, de F. Weffort, Sindicatos e política, obra de ampla recepção entre os cientistas sociais brasileiros dos anos 70 e 80 (Weffort, s/d).
[3] Sobre a metafísica brasileira e suas relações com o mundo dos interesses, ver A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Werneck Vianna, 1997) e O quinto século — André Rebouças e a construção do Brasil (Rezende de Carvalho, 1997).
Referências bibliográficas
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FAORO, Raimundo. (1975). Os donos do poder. Porto Alegre/São Paulo: Ed. Globo/Ed. da Universidade de São Paulo.
FERNANDES, Florestan. (1975). A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar.
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FRANCO, Maria Silvia de Carvalho. (1969). Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros-USP.
GERMANI, Gino. (1969). Sociologia de la modernización. Buenos Aires:
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MELO, Manoel Palácios Cunha. (1997). As ciências sociais no Brasil. Tese de Doutorado, IUPERJ.
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WEFFORT, Francisco C. (s/d). Sindicatos e política. Tese de Livre-Docência, USP.
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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.