quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Correio Popular de Campinas

Publicada em 6/10/2010


Ética médica e tirania política


bnrRomano


A semana passada trouxe notícia estarrecedora, embora antiga, sobre ética médica e atos contrários à democracia. Você, leitor, deve se perguntar: num país onde o voto deriva da suposta “ventura” popular (insuflada por persuasores nada ocultos) como garantir o poder da sociedade sobre as corporações e vigiar o Estado com seus burocratas? Só com a transparência democrática. Sempre que pessoas públicas atacam a imprensa é preciso saber o que está sendo retirado da vista coletiva. Volto à notícia: os EUA pediram desculpas à Guatemala pelas experiências realizadas em prostitutas e doentes mentais naquele país por volta de 1940. Tais agressões aos corpos alheios, cometidas pelos aventais brancos, foram efetuadas sem consentimento e consciência das vítimas. Rescaldo do Holocausto? Talvez, não olvidemos o quanto os nazistas médicos (a expressão deveria ser um oxímoro e não é) usaram doentes, judeus e outras presas para efetivar seus alvos “científicos”. Rescaldo da eugenia? Talvez, a suposta ciência foi gerada nos campi norte-americanos, sendo exportada para a Europa e Alemanha totalitária. É impossível aos sofistas negar as informações trazidas por Edwin Black, no seu tremendo livro A guerra contra os fracos. Rescaldo da morte algida talvez fosse a melhor expressão.

Em 1940, médicos que deveriam cuidar dos seres humanos os destruíram. “Usarei meu poder para socorro do adoecido, segundo o melhor da minha habilidade e juízo; evitarei, com ele, ferir ou enganar todo e qualquer homem”, diz o juramento de Hipócrates. Na boca de pervertidos, tais palavras constituem um juramento... de hipócritas. Eles infectaram de propósito, com gonorréia e sífilis, 1.500 pessoas na Guatemala. “Estamos escandalizadas por saber que essa pesquisa ocorreu sob o disfarce de ação de saúde pública”, dizem agora as secretárias de Estado dos EUA, Hillary Clinton, e a da Saúde, Kathleen Sebelius. “Sentimos muito e pedimos desculpas a todos os infectados na pesquisa”. Barack Obama pediu perdão ao presidente da Guatemala, Alvaro Colom. “Regulamentos sobre pesquisas médicas em humanos nos EUA hoje proíbem esse tipo de violação terrível”, disseram Hillary e Sebelius. Elas afirmaram que será feita uma investigação sobre o caso, especialistas internacionais farão um relatório sobre padrões éticos nas pesquisas médicas.

Na mesma época, pouco mais tarde, no próprio território norte-americano “pesquisas” eram feitas em humanos por médicos com olhar - diz a pensadora Elizabeth de Fontenay - frio como o escalpelo. No caderno de horrores intitulado Risco Indevido, um especialista na bioética, respeitado hoje nos EUA por organismos do governo e da sociedade, inclui mesmo oftalmologistas encarregados de verificar o que ocorreria com os olhos de soldados expostos à radiação atômica. A data? 1950 em diante. (Cf. Moreno, Jonathan, Undue Risk, Secret State Experiments on Humans, London, Routledge, 2001). Moreno recompõe, rumo ao pior, os círculos dantescos do Inferno. Notemos que todos os crimes indicados têm um denominador comum: falta de alma dos pesquisadores e segredo.

Tais fatos me levam à luta pela imprensa livre. No ano de 1940 a Guatemala era dilacerada por ditadura militar, substituída (1944) pelo regime liberal derrubado em 1954 com impulso da CIA. As proezas médicas americanas existiram porque liberdades foram negadas aos guatemaltecos. Entre elas, a de imprensa. Os EUA, país admirável, possui em sua face mundial atentados graves aos direitos humanos e à ordem democratica. Seu apoio aos regimes que infestaram a América do Sul na Guerra Fria é justificado pela razão estatal, mas aquela razão é loucura e paranóia. Pensem no caso os petistas que exigem censura da imprensa: eles destilam, com seu ódio, o controle secreto de corpos e almas. Talvez seus filhos sejam as primeiras vítimas do cego dogmatismo pregado pelo atual presidente do Brasil. A imprensa, sob o nazismo, estava controlada social e politicamente. Nas ditaduras sul americanas, idem. Lutemos para que nunca mais prospere o liberticídio.