domingo, 10 de outubro de 2010

Correio Popular de Campinas


Publicada em 10/10/2010

Cidades
Eleições 2010 Eleições mostraram que não existe mais cabresto

Para Roberto Romano, o processo eleitoral é revelador de uma série de mazelas que permeiam não só a escolha nas urnas, mas todo o cenário político nacional. Ele, que compara políticos a cartolas do futebol, acredita, no entanto, que o resultado mostra uma reação de parte significativa do eleitorado brasileiro

“O segundo turno permite ao eleitor analisar em profundidade o real valor das propostas trazidas pelos candidatos. A maioria tem a chance de cobrar dos candidatos e partidos maior realidade nas propostas, pois a propaganda é mais do que enganosa: em certos casos ela chega à pura mentira, elaborada com técnica sofística.”

Camila Ancona
DA AGÊNCIA ANHANGUERA
camila.ancona@rac.com.br

Qual a associação entre partidos políticos e o futebol brasileiro? Para o filósofo e professor titular de ética e filosofia política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a semelhança é total. Ambos são dirigidos por “cartolas” que jamais escutam a torcida. Essa e outras questões políticas são debatidas pelo colunista do Correio nesta entrevista em que analisa, entre outras questões, os debates do primeiro turno, a reforma política e a atuação do governo petista do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O também escritor lembra que, assim como Lula e outros antecessores, o mundo da política acaba sendo “alucinógeno” devido ao uso exacerbado da propaganda.

Correio Popular - Qual a avaliação do senhor em relação às eleições deste ano? Houve um debate produtivo no primeiro turno?
Roberto Romano - As eleições mostraram para os políticos, dentre eles, o presidente Luiz Inácio da Silva, que não mais existe cabresto a ser usado em todos os eleitores. Parte considerável dos cidadãos recebe milhões de informações e as digere, refletindo sobre o que enxerga, ouve e percebe no pensamento. Elas também serviram de lição para muitos especialistas em política que se deixaram embalar de maneira acrítica pelas pesquisas de opinião. Boa parte deles aderiu à propaganda nada disfarçada de uma candidatura. Objetividade científica e prudência ética foram afastadas em artigos, entrevistas e debates por pessoas que deveriam buscar a objetividade e o rigor analítico. Científico, nas pesquisas de opinião, é o método, o aparato estatístico, as perguntas quando corretamente feita. O objeto das pesquisas é algo fluido, instável, muda conforme as informações veiculadas. E elas são inúmeras, das verdadeiras às falsas. No primeiro turno, não houve debate profundo, salvo nos programas destinados a tal fim, nas cadeias de rádio e televisão. Ao contrário de muitas pessoas, penso que os debates tiveram padrão mais sério do que os pretéritos. Claro, no tempo disponível e com as intervenções dos assessores das campanhas, poucos assuntos foram aprofundados. Uma ausência indesculpável foi a coleta das opiniões dos candidatos sobre ciência e tecnologia. Diante do evidente processo de desindustrialização brasileira e da ameaça de regressarmos ao que sempre fomos desde 1500 — exportadores de matéria-prima — seria urgente verificar o que as candidaturas têm a dizer sobre inovação tecnológica, empregos qualificados de alta tecnologia, valor agregado, desafio chinês e indiano, entre outros. Nada foi dito no tocante ao problema. E assim por diante.

Quanto ao segundo turno, o senhor acredita que há algum benefício desta nova etapa das eleições para o processo democrático? Por quê?
O segundo turno permite ao eleitor analisar em profundidade o real valor das propostas trazidas pelos candidatos. A maioria tem a chance de cobrar dos candidatos e partidos maior realidade nas propostas, pois a propaganda é mais do que enganosa: em certos casos ela chega à pura mentira, elaborada com técnica sofística.

No seu texto Ética Médica e Tirania Política, o senhor escreve que o leitor deve se perguntar: “Num país onde o voto deriva da suposta ventura popular (insuflada por persuasores nada ocultos) como garantir o poder da sociedade sobre as corporações e vigiar o Estado com seus burocratas?”. A sua resposta: “Só com a transparência democrática”. A minha pergunta é: como uma sociedade consegue esta transparência democrática? De que forma?
Muitos propagandistas e mesmo analistas acadêmicos insistiram no “efeito felicidade” trazido pelo consumo da “nova classe média”. E daí, extrapolaram para o terreno eleitoral. Quem fica feliz com produtos chineses de baixa qualidade e baratos vota na candidatura do governo. Em língua lógica, tal procedimento analógico chama-se ignoratio elenchi. O efeito “felicidade” é subjetivo e passageiro. Ele não mede o grau de democracia de um país. Recordo: na Inglaterra bombardeada pelos alemães nazistas só existia, como disse (Winston) Churchill, “sangue, suor e lágrimas”. Mas a democracia era patente. Ela ajudou a Inglaterra a vencer os “felizes” alemães, contentes com o progresso econômico trazido por Hitler. Por outro lado, em regimes ditatoriais, como no Brasil da era Garrastazu Médici, as massas estavam felizes, ufanistas e aplaudiam os dirigentes. Não existiu democracia. Naqueles tempos, a imprensa censurada não pode sequer noticiar a epidemia de meningite que matou muitos cidadãos. Era o tempo do segredo. Valorizo a imprensa e a transparência democrática, por mais que elas desagradem os políticos corruptos ou autoritários. Uma sociedade consegue tal transparência exigindo que os operadores do Estado respeitem as leis, prestem contas de seus atos e dos recursos postos a sua disposição. A lei da ficha limpa foi um passo gigante para a referida ordem democrática.

Em outro artigo denominado Trapaças e Jogo Político, o senhor diz que, no Brasil, ganham os espertos, até o advento de ditaduras, nas quais todos perdem. Vencem os trapaceiros no jogo político e perdem os que os elegem. Utilizando essa ideia, podemos associá-la à eleição do deputado federal Tiririca (PR), que recebeu mais de 1 milhão de votos? O senhor acredita que houve uma trapaça do partido para a eleição do palhaço que, ao mesmo tempo, levou outros deputados?
Sim, perdem os eleitores que, levados pelo desencanto com o sistema democrático, ou por irresponsabilidade, votaram naquele artefato ideado por um partido. Cada eleitor que votou em Tiririca deve recordar seu voto na hora em que seu filho ou filha, mãe ou pai, mulher ou parente não tiver vagas em hospitais públicos, não encontrar vagas de trabalho, for assaltado por marginais etc. Os políticos brasileiros têm privilégio de foro, eles possuem licença para delinquir, visto que estão longe da lei aplicada pelo juiz da primeira instância. Boa parte dos operadores impunes do Estado se abriga sob o privilégio de foro. E segue-se a impotência para afastá-los. Tiririca não foi um protesto: foi um passa-moleque aplicado em pessoas gaiatas que não pensam em si mesmas e nas suas famílias.

A reforma política seria uma saída para que houvesse maior transparência e igualdade no processo democrático?
O essencial, no primeiro momento, é democratizar internamente os partidos políticos. Eles são propriedade de pequenos grupos oligárquicos, algo descrito com exatidão por Robert Michels no começo do século 20. Aqueles donos de partidos, no comando há décadas, controlam tudo — alianças, fundo partidário, escolha de candidatos etc. — sem consulta ao eleitor de base. Sempre digo que nada é mais igual ao futebol brasileiro do que os partidos políticos. Eles são dirigidos por cartolas que jamais escutam a torcida. Veja o caso norte-americano e europeu: nos Estados Unidos, a candidata certa, pensavam os donos do Partido Democrata, seria a senhora Clinton. Ouvidos os eleitores nas primárias, o candidato foi Obama. Nada semelhante ocorre no Brasil. Seria preciso coibir diretores de partidos de ficar no cargo mais do que quatro anos. E seria essencial obrigar os mesmos diretores a ouvir, em primárias, os eleitores dos partidos. Sem tal democratização interna, todos os atos e ditos da reforma política são apenas engodos. Algo similar à luta pela ficha limpa poderia ser feito, em tal rumo. Ficha limpa, fim do privilégio de foro para políticos e democratização interna dos partidos trariam uma forte renovação de pessoas, entre os operadores do Estado. É tempo de dizer adeus aos oligarcas senis que devoram os cofres públicos. Outra providência é aprovar o projeto de lei que regulamenta os lobbies em todos os setores públicos. Na verdade, hoje os nossos deputados e senadores nada mais são do que lobistas pouco disfarçados. Se a atividade fosse regulamentada, muitos atentados aos recursos públicos, muitos escândalos partidários, como no caso dos Correios, seriam evitados.

Qual a avaliação do senhor em relação às recentes críticas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva contra a imprensa?
Elas são desastrosas e prenunciam desastres nas ordens estatal e social brasileiras.

Podemos dizer que são atitudes como essa que mostram que o País ainda está em pleno desenvolvimento da democracia, na exata expressão da palavra?
Sim, a nossa república democrática ainda dá seus primeiros e cambaleantes passos.

Em outro texto do senhor há um frase: “O governo Lula será lembrado pela felicidade opiácea que injetou na população”. O senhor acredita que, caso a candidata do governo seja eleita, essa mesma sensação alucinógena será mantida?
Com certeza. Não se trata de um problema apenas do governo atual e de sua possível sucessora. O mundo da política, desde o século 17, gira a poder de propaganda, leia-se o livro de Peter Burke, editado em nossa língua com o título de A Fabricação do Rei, que mostra o quanto Luis 14, o Rei Sol, foi gerado por uma hábil propaganda. Mas, nos séculos 20 e 21, chegamos ao máximo, no que diz respeito à manipulação das massas ou de seu “estupro” pela propaganda, como diz Serge Tchakotine, num clássico de 1930 sobre a propaganda política que merecia ser atualizado. Me refiro ao livro A Mistificação das Massas pela Propaganda política", traduzido para nosso idioma por Miguel Arraes em 1967.

O que senhor acredita que a filosofia, investigação crítica e racional dos princípios fundamentais relacionados ao mundo e ao homem, está ausente da política brasileira? Se sim, como reverter este quadro na sociedade atual e qual a importância que ela teria no processo democrático?
A filosofia tem nos políticos os seus mais inclementes inimigos, desde os pré-socráticos, Sócrates, Platão e outros. Vale a pena ler o livro do professor Luciano Canfora, especialista no estudo da filosofia e do regime democrático, cujo título é claro: Um Ofício Perigoso, no Brasil, editado pela Editora Perspectiva. O regime absolutista foi inimigo da filosofia, bem como todos os totalitarismos e ditaduras da modernidade. Spinoza, filósofo democrático por excelência, dizia não conhecer limites a sua liberdade de pensar. Na sociedade de hoje, pensar é proibido de muitos modos, tanto pela censura quanto pelo excesso de propaganda que leva ao fanatismo. E uma sociedade fanática não será, jamais, marcada pela democracia porque esta última exige livre exame no ético e livre escolha. A filosofia pode se tornar um instrumento valioso a serviço da cidadania, desde que a mesma cidadania tenha acesso às ciências, às artes, às matemáticas, ao pensamento autônomo, enfim.


“Sempre digo que nada é mais igual ao futebol brasileiro do que os partidos políticos. Eles são dirigidos por cartolas que jamais escutam a torcida.”

“Tiririca não foi um protesto: foi um passa-moleque aplicado em pessoas gaiatas que não pensam em si mesmas e nas suas famílias.”