ROBERTO ROMANO
Em primeiro lugar, um dado essencial: a comunidade acadêmica não é composta por seres angélicos. Por isto, é preciso definir regras de comportamento ético e moral no seu interior. Heidegger, apesar da quebra de valores que efetivou, aderindo ao nazismo, em "Ser e Tempo" tem analises corretas sobre o problema fundamental do relacionamento entre pares, nos campi, e os encarregados da administração das verbas publicas. No § 37 de “Ser e Tempo”, ele descreve o fenômeno do equívoco, não apenas entre cientistas e publico, mas no interior da própria "comunidade acadêmica".
Primeiro, vem a constatação banal: o saber, na era da máxima divulgação, tonou-se dificilmente distinto das suas varias expressões vulgares. Com a imprensa, diz ele, "tudo assume a aparência de ter sido o verdadeiro captado, colhido, expresso, mas no fundo nada o foi". Num mundo onde a informação se acelerou ao máximo, a parolagem dogmática dos acadêmicos e jornalistas é a norma: "cada um, não só conhece e discute o que se passou e o que está vindo, mas cada um sabe também falar sobre o que deveria ocorrer, sobre o que ainda não ocorreu, mas deveria `evidentemente` ser feito. Cada um sempre farejou e pressentiu de antemão o que os demais farejaram e pressentiram. Este modo de seguir traços e pelo ouvir dizer...é insidioso o bastante, para que o equívoco faça entrever ao indivíduo existente possibilidades que, ao mesmo tempo, ele abafa no germe".
Na sociedade de informação, os termos científicos e técnicos circulam de modo imediato. Assim, "todos" sentem-se em condições de falar sobre a pesquisa, dar seu parecer sobre ela, enunciar suas dificuldades, etc. porque "todos" ouviram falar ou seguiram os traços nas revistas, nos manuais, no radio.
Deixa de haver distinção entre conceitos rigorosos e palavras, e os que só "conhecem" estas ultimas, imaginam ser fácil a tarefa de quem se dedica à produção dos primeiros. Frente a um trabalho cientifico, apresentado em sua facilidade enganosa, o publico curioso e o burocrata, ambos podem dizer, sem muitas contestações: "Isto? Nos também poderíamos fazer!". Se "qualquer um" pode realizar o trabalho do cientista e do intelectual, porque se gasta tanto dinheiro em seu labor? Desperdício...
Em data não muito distante, o prestigioso jornal "Le Monde" publicou um extenso artigo sobre as descobertas de Francois Jacob. O jornalista, para dar conta do trabalho, achou bom usar metáforas conhecidas pelo publico (diversificado em profissões) e pelos políticos. Assim, a célula foi comparada à uma fabrica, uma empresa, etc., com a linguagem da administração, da economia, e outras pérolas. Pode-se dizer que foi escasso, por esta via, o conhecimento do labor que deu notoriedade cientifica a Francois Jacob... Este caso é analisado por J. Schlanger, no livro "Les Metaphores de L´Organisme”.
Mas, continuemos com Heidegger, o tempo é essencial no trabalho da pesquisa. No intervalo entre o tempo lento das investigações, e a rapidez geral dos que "já sabem", dá-se o choque: os cientistas AINDA ESTÃO procurando, e os "informados" JÁ se colocam a falar do que é "mais recente", valorizando, inclusive para fins de financiamento, a ultima "novidade". Deste modo, os investigadores, para um público e poderosos mediaticos (isto é formados na media... da mídia.) "chegam sempre muito tarde". Termina Heidegger escrevendo, com razão, que a "a parolice e a curiosidade entretém seu equivoco, para que a obra autêntica e nova pareça, quando surge na opinião pública, já ultrapassada".
O equivoco, pois, é algo que se imiscui na mais íntima relação dos cientistas com a opinião publica e com os poderes. Estes últimos, como dependem da opinião comum, ao se relacionarem com os investigadores, já "sabem" o que esperar, e já sabem o que irão favorecer. Dai, políticas governamentais em permanente conflito com os que produzem saberes em todos os níveis, da física às formas culturais mais amplas. A lógica do mando político não é a dos laboratórios, e vice versa. Estamos longe do projeto baconiano, que anunciou para o mundo moderno o sonho ilustrado : "knowledge and power meet in one".
Nos campi, para ultrapassar os vetos trazidos pelo equivoco e pela opinião, mantida e reiterada pela mídia, muitos cientistas curvam-se aos ditames dos poderosos da hora. E isto constitui o atentado fundamental contra a Ética. Grave é quando o tempo da pesquisa é diminuído para atender as regras burocráticas, sem que se atente para as conseqüências disto para a reprodução do aparelho institucional cientifico na sua totalidade. Desde que M. Tatcher e seus partidários impuseram às Universidades inglesas a "produtividade" como base da avaliação acadêmica, valorizando o tempo rápido da mídia e do mercado, o mundo cientifico passou a se atemorizar, se amesquinhando eticamente, pelas investidas burocráticas.
No Brasil, quarenta anos de pós-graduação foram engessados por formas de avaliação que expressam mais os ditames do Ministério da Fazenda do que os alvos de uma política de ciências em sentido estrito. O tempo dos doutoramentos e mestrados foi diminuído, e os assessores ad hoc são obrigados a tomar este parâmetro abstrato, e de fácil entendimento pela mídia (rápida e cada vez mais celere) enquanto metro do labor cientifico. Como, por outro lado, são escassos os recursos, aumenta o número de casos de uso absolutamente anti ético do sigilo, para afastar concorrentes às verbas, adversários políticos, religiosos, etc.
No atual debate, veiculado pelo “JC E-Mail”, sobre o parecer canhestro de um assessor ad hoc da Capes, que chegou a confundir "médico" e "físico", vejo uma ocasião para meditarmos sobre o sigilo. Enquanto vigorar como norma geral, ele deve ser obedecido por todos.
Logo, não me solidarizo com o colega que, "por seus conhecimentos internos na Capes", ficou sabendo quem lhe deu parecer desfavorável. Mas este mesmo caso é uma fonte de reflexões : quantos, de modo semelhante, não têm acesso à mesma informação? E quem está protegido dos e contra os assessores de má fé ou incompetentes?
Quantas pesquisas originais e rigorosas foram inviabilizadas, sem que os proponentes tivessem defesa efetiva? Se fosse abolido o sigilo, para todos os casos, salvo aqueles que, segundo a comunidade científica, o exigiriam (os próprios Tribunais, diante de casos mais difíceis e graves, decreta o "segredo de Justiça" para proteger as partes e o Estado), ninguém ficaria sabendo, por meios ilícitos, quem foi o responsável por um parecer: o nome de cada um estaria nos processos, de modo responsável, insofismável.
Se todos nós participamos de bancas, de comitês, etc., e isto de modo público, qual o óbice para se definir nossa responsabilidade em casos de atribuição de verbas para a pesquisa?
De qualquer modo, meu sentimento é seguir a norma comum : se existe sigilo para todos, ninguém está autorizado (mesmo que seja amigo do Rei...) a manipular o anonimato para perseguir desafetos ou colegas que pensam diferente (em termos metodológicos inclusive).
E ninguém está autorizado a usar relações pessoais para saber quem lhe atribuiu um parecer positivo ou negativo. Só é licita a regra universal. Fora dela, retroagimos ao "reino animal do espirito", saborosa expressão usada por Hegel para designar o mundo acadêmico.
"Avaliar"(analisar cientificamente, mas também com valores éticos) o trabalho dos pares deveria ser um ato de supremo respeito. Esta regra de ouro tem sido muito descuidada no Brasil e no mundo.
Até hoje, neste prisma, considero uma boa fonte de ensinamentos o artigo de McCutchen, Charles W.: "Peer Review : treacherous servant, disastrous master" (Technology Review, october 1991).
O debate pode seguir para vias construtivas, ou desandar em mais uma onda de críticas ácidas, que irão corroer ainda mais nossa vida Ética e científica. Como seres pensantes, a primeira senda, embora mais árdua, é a recomendável.
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Primeiro, vem a constatação banal: o saber, na era da máxima divulgação, tonou-se dificilmente distinto das suas varias expressões vulgares. Com a imprensa, diz ele, "tudo assume a aparência de ter sido o verdadeiro captado, colhido, expresso, mas no fundo nada o foi". Num mundo onde a informação se acelerou ao máximo, a parolagem dogmática dos acadêmicos e jornalistas é a norma: "cada um, não só conhece e discute o que se passou e o que está vindo, mas cada um sabe também falar sobre o que deveria ocorrer, sobre o que ainda não ocorreu, mas deveria `evidentemente` ser feito. Cada um sempre farejou e pressentiu de antemão o que os demais farejaram e pressentiram. Este modo de seguir traços e pelo ouvir dizer...é insidioso o bastante, para que o equívoco faça entrever ao indivíduo existente possibilidades que, ao mesmo tempo, ele abafa no germe".
Na sociedade de informação, os termos científicos e técnicos circulam de modo imediato. Assim, "todos" sentem-se em condições de falar sobre a pesquisa, dar seu parecer sobre ela, enunciar suas dificuldades, etc. porque "todos" ouviram falar ou seguiram os traços nas revistas, nos manuais, no radio.
Deixa de haver distinção entre conceitos rigorosos e palavras, e os que só "conhecem" estas ultimas, imaginam ser fácil a tarefa de quem se dedica à produção dos primeiros. Frente a um trabalho cientifico, apresentado em sua facilidade enganosa, o publico curioso e o burocrata, ambos podem dizer, sem muitas contestações: "Isto? Nos também poderíamos fazer!". Se "qualquer um" pode realizar o trabalho do cientista e do intelectual, porque se gasta tanto dinheiro em seu labor? Desperdício...
Em data não muito distante, o prestigioso jornal "Le Monde" publicou um extenso artigo sobre as descobertas de Francois Jacob. O jornalista, para dar conta do trabalho, achou bom usar metáforas conhecidas pelo publico (diversificado em profissões) e pelos políticos. Assim, a célula foi comparada à uma fabrica, uma empresa, etc., com a linguagem da administração, da economia, e outras pérolas. Pode-se dizer que foi escasso, por esta via, o conhecimento do labor que deu notoriedade cientifica a Francois Jacob... Este caso é analisado por J. Schlanger, no livro "Les Metaphores de L´Organisme”.
Mas, continuemos com Heidegger, o tempo é essencial no trabalho da pesquisa. No intervalo entre o tempo lento das investigações, e a rapidez geral dos que "já sabem", dá-se o choque: os cientistas AINDA ESTÃO procurando, e os "informados" JÁ se colocam a falar do que é "mais recente", valorizando, inclusive para fins de financiamento, a ultima "novidade". Deste modo, os investigadores, para um público e poderosos mediaticos (isto é formados na media... da mídia.) "chegam sempre muito tarde". Termina Heidegger escrevendo, com razão, que a "a parolice e a curiosidade entretém seu equivoco, para que a obra autêntica e nova pareça, quando surge na opinião pública, já ultrapassada".
O equivoco, pois, é algo que se imiscui na mais íntima relação dos cientistas com a opinião publica e com os poderes. Estes últimos, como dependem da opinião comum, ao se relacionarem com os investigadores, já "sabem" o que esperar, e já sabem o que irão favorecer. Dai, políticas governamentais em permanente conflito com os que produzem saberes em todos os níveis, da física às formas culturais mais amplas. A lógica do mando político não é a dos laboratórios, e vice versa. Estamos longe do projeto baconiano, que anunciou para o mundo moderno o sonho ilustrado : "knowledge and power meet in one".
Nos campi, para ultrapassar os vetos trazidos pelo equivoco e pela opinião, mantida e reiterada pela mídia, muitos cientistas curvam-se aos ditames dos poderosos da hora. E isto constitui o atentado fundamental contra a Ética. Grave é quando o tempo da pesquisa é diminuído para atender as regras burocráticas, sem que se atente para as conseqüências disto para a reprodução do aparelho institucional cientifico na sua totalidade. Desde que M. Tatcher e seus partidários impuseram às Universidades inglesas a "produtividade" como base da avaliação acadêmica, valorizando o tempo rápido da mídia e do mercado, o mundo cientifico passou a se atemorizar, se amesquinhando eticamente, pelas investidas burocráticas.
No Brasil, quarenta anos de pós-graduação foram engessados por formas de avaliação que expressam mais os ditames do Ministério da Fazenda do que os alvos de uma política de ciências em sentido estrito. O tempo dos doutoramentos e mestrados foi diminuído, e os assessores ad hoc são obrigados a tomar este parâmetro abstrato, e de fácil entendimento pela mídia (rápida e cada vez mais celere) enquanto metro do labor cientifico. Como, por outro lado, são escassos os recursos, aumenta o número de casos de uso absolutamente anti ético do sigilo, para afastar concorrentes às verbas, adversários políticos, religiosos, etc.
No atual debate, veiculado pelo “JC E-Mail”, sobre o parecer canhestro de um assessor ad hoc da Capes, que chegou a confundir "médico" e "físico", vejo uma ocasião para meditarmos sobre o sigilo. Enquanto vigorar como norma geral, ele deve ser obedecido por todos.
Logo, não me solidarizo com o colega que, "por seus conhecimentos internos na Capes", ficou sabendo quem lhe deu parecer desfavorável. Mas este mesmo caso é uma fonte de reflexões : quantos, de modo semelhante, não têm acesso à mesma informação? E quem está protegido dos e contra os assessores de má fé ou incompetentes?
Quantas pesquisas originais e rigorosas foram inviabilizadas, sem que os proponentes tivessem defesa efetiva? Se fosse abolido o sigilo, para todos os casos, salvo aqueles que, segundo a comunidade científica, o exigiriam (os próprios Tribunais, diante de casos mais difíceis e graves, decreta o "segredo de Justiça" para proteger as partes e o Estado), ninguém ficaria sabendo, por meios ilícitos, quem foi o responsável por um parecer: o nome de cada um estaria nos processos, de modo responsável, insofismável.
Se todos nós participamos de bancas, de comitês, etc., e isto de modo público, qual o óbice para se definir nossa responsabilidade em casos de atribuição de verbas para a pesquisa?
De qualquer modo, meu sentimento é seguir a norma comum : se existe sigilo para todos, ninguém está autorizado (mesmo que seja amigo do Rei...) a manipular o anonimato para perseguir desafetos ou colegas que pensam diferente (em termos metodológicos inclusive).
E ninguém está autorizado a usar relações pessoais para saber quem lhe atribuiu um parecer positivo ou negativo. Só é licita a regra universal. Fora dela, retroagimos ao "reino animal do espirito", saborosa expressão usada por Hegel para designar o mundo acadêmico.
"Avaliar"(analisar cientificamente, mas também com valores éticos) o trabalho dos pares deveria ser um ato de supremo respeito. Esta regra de ouro tem sido muito descuidada no Brasil e no mundo.
Até hoje, neste prisma, considero uma boa fonte de ensinamentos o artigo de McCutchen, Charles W.: "Peer Review : treacherous servant, disastrous master" (Technology Review, october 1991).
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Nota do Editor: Roberto Romano é professor da Unicamp e membro do Conselho Editorial do “Jornal da Ciência”. Este artigo foi publicado primeiramente no JC E-Mail 1376, de 14/9/99
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Secretaria Geral SBQ
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Contribuicoes devem ser enviadas para: paulosbq@dq.ufscar.br
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