Entrevista
Ideal fascista está sendo retomado, alerta filósofo
Roberto Romano, professor de Ética e Ciência Política da Unicamp
Publicado em 21/11/2010 | Rogerio Waldrigues Galindo
Um velho espectro político volta a rondar o mundo ocidental, com
riscos inclusive ao Brasil. E seu nome é fascismo. O alerta é do
filósofo e professor de Ética e Ciência Política Roberto Romano, da
Unicamp. Ele vê na atualidade o renascer de uma preocupante onda de
interesse acadêmico por obras de intelectuais que ajudaram a construir a
base teórica dos Estados totalitários surgidos na Alemanha e na Itália
no período entre as duas Guerras Mundiais.
O ponto principal de
preocupação de Romano é o interesse renovado pela obra do jurista e
filósofo Carl Schmitt. Autor “maldito” durante muito tempo por defender a
ditadura como melhor forma de governo, o teórico alemão começa a ser
revisto em universidades. A intenção seria aproveitar algumas ideias
dele, jogando “a parte podre fora”. Para Roberto Romano, porém, isso é
inviável.
Glossário
Confira alguns termos-chave no pensamento do filósofo Roberto Romano:Nazismo
Surgiu na Alemanha depois da I Guerra Mundial, da qual o país saiu arrasado. Numa crise financeira sem precedentes, o líder do partido nazista, Adolf Hitler, foi visto por muitos alemães como uma solução radical para o caos. No poder, Hitler implantou uma ditadura, que pregava a superioridade racial dos arianos e a morte dos inimigos.
Fascismo
Regime totalitário surgido na Itália, entre a I e a II Guerra, que defende a subordinação do povo a um líder, a disciplina como comportamento e a ditadura. O termo fascismo serve hoje para designar hoje uma série de governos com o mesmo perfil.
Liberalismo
Sistema político baseado na defesa das garantias individuais e na existência de um Estado de Direito, em que a lei é igual para todos, com destaque para a ideia de Constituição, que limita o poder do soberano e do próprio povo.
Marxismo
Ideário baseado nos escritos de Karl Marx, filósofo e economista alemão que, no século 19, defendeu a criação de um Estado forte que fosse capaz de impedir a desigualdade entre os homens.
Pressupunha a instalação de uma ditadura do proletariado, da proibição da propriedade privada e da distribuição de renda por meio da intervenção estatal. Resultou no comunismo.
Carl Schmitt
Jurista e filósofo alemão (1888-1985), autor de obras que deram base ao governo nazista na Alemanha. A teoria de Schmitt previa um governo forte, ditatorial, em que o líder fosse capaz de, a todo momento, optar por caminhos não previstos pela lei. Para ele, a política estava acima do Direito, e o chefe de Estado não poderia, para ser eficiente, ser limitado por uma Constituição.
Segundo ele, em boa parte dos casos, os defensores de Schmitt
surgem de “órfãos de Marx e do stalinismo” – ainda interessados em
derrotar o liberalismo.
Romano diz ainda que o temor com o renascimento dessas ideias é ainda
maior diante do clima de irracionalismo criado por alguns fanáticos
religiosos, da alta taxa de desemprego, do enfraquecimento dos Estados
nacionais e da violência social do mundo atual. Ele afirma também que a
visão do adversário político como inimigo a ser derrotado, perigosamente
inserida na campanha presidencial brasileira deste ano, é uma amostra
do risco do renascimento de radicalismos totalitários no país.
O senhor afirma que há um renascimento do interesse pelo pensamento nazista no mundo. De onde vem esse interesse?
Da perda dos paradigmas éticos e políticos que nortearam os séculos
19 e 20. Com o enfraquecimento do liberalismo no início do século 20,
surgiram propostas de ordenamento da sociedade com maior ênfase nos
coletivos, e não tanto nos indivíduos e grupos. A sociologia romântica
acentuou os laços comunitários contra a vida urbana e industrial, com
seu “Estado máquina” [nazifascista]. Essa sociologia é um dos muitos
pontos que ajudaram a edificar, nos estratos mais reacionários, uma
ideia de coesão e disciplina vertical. E, nesta ideia, a vontade seria a
diretriz, não a racionalidade.
De modo geral, [György] Lukacs [pensador marxista húngaro] descreveu a
mudança de modelos, do racional para o irracional. Ele mesmo, como
discípulo de [Max] Weber [alemão, considerado o pai da sociologia],
havia procurado uma saída para a ordem mecânica e burocrática do mundo
moderno. Encontrou na revolução proletária internacional. Na outra ala
dos seguidores de Weber, na sua direita, encontravam-se sociólogos e
juristas reacionários como Carl Schmitt. Schmitt, que também criticava
as formas mecânicas e liberais, serviu momentaneamente aos nazistas.
Nos anos 70 do século 20, pensadores que, na esteira da crítica à
União Soviética deixaram de aceitar pressupostos do pensamento marxista,
passaram a ver nos escritos de Carl Schmitt um instrumento para
continuar a recusa do liberalismo. Órfãos de Marx e do stalinismo, eles
acentuam a resistência às formas liberais do Estado, sem no entanto
acreditar mais numa “revolução proletária internacional”.
Esses
escritores ajudam a estabelecer o relativismo, a corrosão dos padrões
éticos e se colocam como geradores do éter de ideias que paira sobre os
movimentos nazifascistas. É preciso lembrar que esses movimentos jamais
deixaram de existir na Alemanha, na Europa, no mundo. Os demais, não
saídos do campo marxista, partilham os mais variados matizes do
pensamento conservador ou francamente reacionário, não aceitam as luzes,
a democracia, etc. Estes últimos são os que mais gasolina injetam nos
movimentos irracionalistas e fascistas que hoje se apresentam na cena
mundial.
Quais são os indícios desse novo interesse por esse pensamento?
Obras de autores como Schmitt são editadas na Europa, na Ásia, nos
EUA, na América do Sul. Seminários, publicações jurídicas ou
supostamente filosóficas se espalham, sempre com o mote de,
inicialmente, livrar Schmitt e seus pares da “pecha” de nazistas. Teses
universitárias surgem, e tomam como dados inquestionáveis os dogmas do
decisionismo político e jurídico; as teses sobre a política como
exercício da inimizade; os “desvios” da modernidade no pensamento
liberal e socialista democrático, etc.
O que pregam esses intelectuais?
Pregam o afastamento imediato das mediações jurídicas e políticas
liberais e o reforço do poder decisório dos líderes que movem o
Executivo. Em suma, pregam a ditadura do Poder Executivo nas matérias
estratégicas dos países, em detrimento do Legislativo e do Judiciário.
O senhor afirma que os intelectuais que tentam fazer um
“renascimento” da obra de Carl Schmitt tentam separar o resto de sua
obra, evitando a defesa da ditadura, por exemplo. Isso é possível?
Não. Mesmo autores irracionalistas escrevem textos que se
caracterizam como um todo. Impossível arrancar do decisionismo
schmittiano a sua atribuição ao chefe de Estado de poderes ditatoriais.
Qual o risco real de um grupo de intelectuais defenderem ideais como os que levaram à ditadura de Hitler na sociedade atual?
Embora a conjuntura seja outra, e não exista mais a bipolaridade
geopolítica entre comunismo e nazifascismo, a crise que gerou naquela
época os movimentos totalitários se apresenta agora, em outra face, mas
tão corrosiva quanto nos anos 20 do século passado, no campo dos
valores, das instituições, das ciências. Massas sem emprego,
desindustrialização comandada e em proveito do capital financeiro,
corrosão dos Estados, violência social, preconceitos, fanatismos,
irracionalismo religioso sectário, todos elementos são férteis
sementeiras de ódio. E permitem pensar e agir na política como se ela
fosse uma guerra civil, não como uma instância de diálogo e cooperação
entre cidadãos que discordam mas buscam o bem coletivo. No fascismo, o
“bom coletivo” é o meu. Os demais devem ser derrotados e expulsos da
cena pública e, mesmo, da vida.
Esse interesse existe também no Brasil? Onde?
Em nossas universidades existem muitos pesquisadores e professores
que apresentam o pensamento de Schmitt como algo “neutro”, que não
traria nenhum perigo para a ordem democrática. Sou contra escritores
como Yves-Charles Zarka, um mestre do pensamento filosófico e político
atualmente, que recomenda retirar os textos de Schmitt das prateleiras,
em livrarias e bibliotecas. Creio ser preciso ler aquele autor, e todos
os autores relevantes na história de nosso tempo. Mas uma coisa é ler;
outra é aceitar e espalhar as doutrinas genocidas.
Agora, pensemos um pouco sobre a última campanha eleitoral para a
Presidência – com os insultos, os ataques de lado a lado, a redução dos
concorrentes a inimigos – para perceber os possíveis frutos da corrosão
nos movimentos políticos, se eles aceitarem a tese de que o outro deve
ser aniquilado. É bom recordar que, em nosso caso, todos os partidos que
lideraram as campanhas saíram da esquerda, sendo notával a ausência,
nelas, de elementos conservadores. Neste vácuo, a pregação fascista
(intolerante, racista a pretexto de ser regionalista) toma fôlego, à
espera de seu momento certo.
A tensão étnica e religiosa que ressurge na Europa, especialmente com o crescimento do Islã, tem a ver com esse pensamento?
Sim. O Islã é visto como o inimigo, na ausência do comunismo. Mas o
inimigo pode ser qualquer religião, ideologia, partido político. A
redução da política à dimensão de uma guerra gera apenas a fratura no
social e no Estado.
Como combater esse tipo de ideal que vem ressurgindo?
A única forma de combater eficazmente o fortalecimento fascista é
viver a democracia, mesmo com todos os seus defeitos. Qualquer apelo ao
voluntarismo, à radicalização das próprias teses em detrimento da voz
alheia, da redução dos que pensam diferente ao estatuto de inimigo,
resultam em favor dos que consideram impossível o convívio democrático
respeitoso, nos parâmetros dos direitos humanos. A única fórmula para
combater o fascismo, em pensamento e atos, é viver e valorizar a
democracia.