Brasil de hoje01/02/2014 | 08h31
Como novas manifestações devem interferir no jogo eleitoral de 2014
Especialistas avaliam qual será o impacto do atual cenário pós-2013 no tabuleiro da política nacional no ano de uma nova eleição
Manifestação contra a Copa no centro de Porto Alegre, em 2013
Foto:
Carlos Macedo / Agencia RBS
Nilson Mariano
O tabuleiro sobre o qual se travará a próxima eleição está incompleto
– e isso é absolutamente normal faltando oito meses para a realização
do primeiro turno. Mas algumas peças já se posicionam no espaço
quadriculado, tanto sobre o branco quanto sobre o preto, antecipando-se
como possíveis protagonistas no jogo eleitoral.
Cientistas sociais se acautelam nas análises, por agora.
Compreende-se: palpitar sobre eleições pode ser tão incerto como
arriscar a previsão do tempo, ainda mais no instável cenário brasileiro,
sujeito a guinadas políticas bruscas. No entanto, o filósofo Roberto
Romano, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz que já se
pode identificar as peças mais salientes.
De um lado, perfilam-se as peças da insatisfação popular, como as que
voltaram a eclodir nos últimos dias, notadamente em São Paulo, contra a
realização da Copa. Sobram queixas para o transporte público
desconfortável, caro e ineficiente, enquanto o governo torra dinheiro em
estádios de utilidade duvidosa. O mesmo descontentamento abrange os
serviços de educação, saúde, segurança e logística.
Na outra parte, alinham-se as peças de matiz econômico e político. O
dragão da inflação debochou da caderneta de poupança, ano passado, e
mordisca os salários. A indústria brasileira não deslancha, esbarrou na
precariedade dos portos e das rodovias e no atraso tecnológico. Atitudes
como a do senador Renan Calheiros (PMDB), que usou a frota da Força
Aérea Brasileira (FAB) como táxi aéreo duas vezes, uma para implantar
fios de cabelo na pronunciada careca, amplificam o desagrado.
– O tabuleiro está montado. Vai depender de quem jogar e qual peça
será movida – observa Roberto Romano, doutor pela École des Hautes
Études en Sciences Sociales.
Ativistas de junho são uma incógnita
Seria precipitado supor como agirão os movimentos sociais nas
eleições. O vendaval popular que sacudiu o país em junho de 2013 parece
ter refluído, voltado ao leito das águas calmas – os últimos espasmos
são autoria dos radicais Black Blocs. Romano percebe grupos autônomos de
oposição, enquanto outros estão vinculados ou foram cooptados pela
máquina governista do Partido dos Trabalhadores. São os
neo-chapa-brancas, os assumidos e constrangidos, na última categoria
aqueles que trocaram o passado de lutas por cargos, salários e verbas.
– Não vejo, por parte dos movimentos sociais e mesmo entre os
partidos, uma estratégia capaz de levar o povo para as ruas e influir
nas eleições – ressalta o professor da Unicamp.
Se acontecer uma nova onda de contestação em massa, como a de junho,
não será por iniciativa de líderes, mas pelo rebentar de alguma situação
imponderável. Romano exemplifica que o governo de São Paulo está às
voltas com os sem-teto há décadas. Quanto mais a polícia reprime, mais o
movimento cresce. É como um ioiô, que desce mas sempre torna a se
elevar na direção de quem aciona o cordel.
– Chega-se a um limite em que não se pode controlar as massas, o
estouro torna-se irreversível – alerta Romano, citando um dos seus
pensadores preferidos, o escritor búlgaro Elias Canetti.
O cientista político André Marenco não acredita que as multidões de
junho possam direcionar as eleições. Se voltarem às praças, deverão
provocar um “impacto residual”, sem desequilibrar a balança para um dos
lados. Professor de pós-graduação na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), Marenco diz que a tempestade democrática do inverno de
2013 resultou de uma contradição. Nos últimos 10 anos de PT, houve
avanços inegáveis: maior renda e consumo, menos desemprego, redução da
desigualdade, ascensão de classes desfavorecidas.
Em contrapartida, o governo não conseguiu lançar uma agenda de
reformas política, econômica e administrativa. As instituições continuam
funcionando do mesmo jeito – obsoletas e ineficazes. Marenco lamenta
que o PT, para se manter no poder, precise fazer alianças com setores
atrasados e oportunistas, o que significa conviver com o clientelismo e a
corrupção.
– O resultado é que temos uma máquina pública pouco responsiva, pouco sensível à população – avalia.
Junho foi intenso como um furacão, mas de duração limitada. Derrubou a
popularidade da presidente Dilma Rousseff, conforme as pesquisas de
opinião da época, mas os índices tornaram a subir depois. O próprio
movimento, ao ser envolvido pela tática de vandalismo e violência dos
Black Blocs, recuou .
– Houve um momento em que catalisou o sentimento latente de
inconformidade, mas não tinha uma agenda para se manter – diz Marenco.
As eleições tendem a ser chochas. O professor da UFRGS não quer fazer
apologia, mas lembra que a rotina de votar pode diminuir o apetite da
população. É o fastio da democracia, como ocorreu no Chile, em dezembro,
quando a socialista Michelle Bachelet foi eleita pela segunda vez à
presidência, mas sob uma abstenção de quase 60%. Como o voto não é mais
obrigatório no Chile, os eleitores desertaram.
No Brasil, o que incomoda Roberto Romano é a peculiaridade das
campanhas eleitorais. Os políticos, do Executivo e do Legislativo, estão
à caça de votos mesmo no exercício dos mandatos. A reeleição parece ser
o objetivo maior. O que era para ser uma vocação temporária virou
profissão – e das mais atraentes. Gordas aposentadorias vitalícias, como
as que são pagas a ex-governadores gaúchos por terem ficado quatro anos
no Palácio Piratini por vontade própria, garantem um futuro que é
negado à totalidade dos trabalhadores.
Fator Lula, o “condottiero”
A peça mais decisiva do tabuleiro eleitoral, para Marenco, será a
economia. Em 2010, foi valiosa para que Luiz Inácio Lula da Silva
emplacasse a sucessora no Planalto. A situação não se deteriorou, o
Brasil resistiu às reverberações da crise internacional, mas um deslize
financeiro poderia afetar a reeleição de Dilma. Seriam os percentuais de
emprego e renda, e não o clamor das ruas, que balizariam os votos. O
sociólogo Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira, o Chico de Oliveira,
tem uma interpretação um pouco diferente. Acha que o fator preponderante
será o ex-presidente Lula, a quem define como um “condottiero
autoritário”, em referência aos chefes de milícias mercenárias com
poderes ilimitados nas guerras antigas. Na condição de um dos fundadores
do PT,critica:
– Infelizmente, ele tem o poder. Já tirou dois coelhos da cartola, a
Dilma e o Hadadd (Fernando Haddad, eleito prefeito de São Paulo pelas
mãos de Lula).
Professor da Universidade de São Paulo (USP), Chico de Oliveira
acredita que Lula neutralizou e continuará subjugando a oposição,
porque, entre outras estratégias, adotou um programa de governo
neoliberal, nos moldes propostos pelo arquirrival PSDB. Não atribui o
mérito exclusivamente a Lula, esclarece que a debilidade das oposições
facilitou a manobra.
– Ou os tucanos desmontam o Lula, ou terão de esperar um novo ciclo
político –destaca o sociólogo, pós-graduado na École des Hautes Études
en Sciences Sociales.
A exemplo de André Marenco, Chico de Oliveira espera uma eleição
“morna”. Diz que a sociedade “está satisfeita e acomodada”, porque a
inflação não é assustadora e o nível de emprego se mantém. Também não
detecta vigor nos movimentos sociais, mesmo os independentes, porque não
conseguiram imprimir sua marca.
– Não há muito o que esperar dessa eleição. A política não está processando os conflitos reais da sociedade – analisa.
Haverá um “efeito Copa”?
O que ocorrer fora dos gramados, na Copa do Mundo, poderá repercutir
nas urnas, não se sabe com que intensidade. Lembre-se que a Fifa
instalou um enclave, com regras próprias, no território brasileiro. Uma
das exigências, contrariando a legislação daqui, foi permitir a venda de
bebida alcoólica nos estádios durante os jogos. Para o filósofo Roberto
Romano, A Fifa se comporta com “arrogância e falta de respeito”. Não se
surpreenderia se alguma falha nos preparativos, como na venda de
ingressos, deflagrassem protestos.
O professor de comunicação digital Marcelo Träsel, da Pontifícia
Universidade Católica (PUCRS), lembra que as redes sociais devem
canalizar as manifestações. Também serão a plataforma para debates
políticos. Apesar de o brasileiro ter aprendido a usar a ferramenta
virtual, Träsel acha que as discussões poderão ser algo caóticas.
– Deve ter muita gente gritando para todo o lado, mas poucos
discutindo propostas com mais racionalidade. As pessoas reagem primeiro,
analisam depois – pondera.
Será o reinado do Facebook. Träsel diz que os blogs despontaram até
2010, oferecendo informação política, mas decaíram a partir de 2012. O
Facebook assumiu como porta-voz virtual, tem espaço ilimitado, mas não é
uma âncora visível como o blog. Os conteúdos podem se perder no oceano
de sucessivas postagens. Militantes organizados devem se fazer ouvir no
que Träsel chama de “algaravia geral” nas redes sociais. Multiplicarão
suas mensagens, terão poder de mobilização, como já demonstraram
nas jornadas de junho. Se resolverem, podem ser uma das peças mais
ativas do tabuleiro eleitoral.