Perfil - Roberto Romano, uma vida atravessada pela história
Roberto Romano nasceu na pequena cidade de Jaguapitã, no Norte do Paraná, próximo à divisa com São Paulo. Filho da comunhão de uma família paulista que ia em direção ao Sul e de uma família gaúcha que seguia em direção ao Norte, cresceu em uma região predominantemente rural. A aura de tranquilidade que cerca a vida no campo não se traduzia em realidade na pequena cidade na qual Romano nasceu e cresceu, onde desde a infância aprendeu a conviver com a violência. “A região onde vivia quando pequeno era muito violenta, com grilagem, bandidagem, etc., o que levou meus familiares a retornarem a São Paulo. Havia também muitas doenças, a principal delas chamada Moisés Lupion , que era governador do Paraná na época e que tratava muito mal os professores e muito bem as empreiteiras, como é o caso até hoje”, conta Romano, cuja mãe era professora.
Por: Márcia Junges e Ricardo Machado
De volta a São Paulo, Roberto Romano, juntamente com sua
família, foi morar na cidade de Marília, no sudoeste do Estado, onde fez
o ginásio, equivalente ao ensino médio, e entrou em contato com o
professor e filósofo católico Ubaldo Pupi , que liderava as pessoas
católicas de esquerda da região. “Entrei para a Juventude Estudantil
Católica – JEC com 16 ou 17 anos, quando ocorreu a tragédia do Golpe
Militar de 1964. Houve muita perseguição política na cidade, e o
professor Ubaldo foi preso e perdeu o emprego na faculdade”, explica.
Regime Militar
O militarismo no Brasil começava a espalhar sua forma de governo
sobre o país, e os efeitos de um dos períodos mais sombrios de nossa
história começavam a emergir. Em Marília, o Bispo Dom Bressane de Araújo
, apesar de conservador, nas palavras de Roberto Romano, era muito
culto e não aceitava a campanha de perseguição contra os religiosos
católicos de sua diocese. “Sempre que alguém ia delatar outrem na
Igreja, o bispo dizia: Meu filho, faça uma declaração no cartório e
depois me devolva”, relata Romano, e diz que depois de um tempo ninguém
mais apareceu para fazer denúncias.
Dominicanos
Quando Romano estava às vésperas de completar 20 anos, muito
identificado com a realidade dos dominicanos, considerou que tinha
vocação religiosa e foi para Juiz de Fora, em Minas Gerais, no Convento
dos Dominicanos, onde permaneceu até 1967. Depois disso retornou a São
Paulo, para se preparar ao noviciado, quando fez vestibular para o
Instituto de Filosofia e Teologia de São Paulo, iniciativa que tentou
reunir as ordens em um curso de Teologia e Filosofia. “Não fiquei muito
satisfeito com o curso de Filosofia. Havia dominicanos que faziam
Filosofia na Universidade de São Paulo – USP. Aí pedi autorização para
fazer vestibular lá”, esclarece.
Prisão e morte
O ano em que Romano fez vestibular para Filosofia na USP coincidiu
com o assassinato de Carlos Marighella , em 1969. Na época os
dominicanos eram muito próximos ao movimento Ação Popular , criado por
Betinho , que se pretendia socialista. No entanto, após uma série de
debates internos, parte do grupo decidiu-se por um tipo de postura
marxista, o que levou os dominicanos a se aproximarem da Ação
Libertadora Nacional - ALN, criada, justamente, por Marighella e que
aceitava os religiosos.
“O Ivo Lesbaupin foi preso. Quando ele disse que ia para o Rio de
Janeiro, o clima já estava pesado, pediu-me que caso ele não aparecesse
em tantos dias era para ligar para seus pais”, conta. “Passaram os dias e
ele não apareceu. Eu pedi ao superior do convento para ir até o Rio de
Janeiro para saber notícias dele. O telefone do convento estava
grampeado. Quando eu cheguei no Convento do Leme, chamei um colega para
irmos até a casa do pai do Ivo, e na porta mesmo fomos presos pelo
Centro de Informações da Marinha – Cenimar”, complementa.
Dias de escuridão
A relação de Romano com a ALN era muito tênue, como ele mesmo conta,
resumia-se a ajudar as pessoas a fugirem, mas não tinha nenhum vínculo
formal com o movimento. “Fui levado e interrogado, mas não tinha muito
que dizer, pois não tinha trato com a ALN. Fui transferido do Rio de
Janeiro para São Paulo, onde encontrei o Ivo na cela do Departamento de
Ordem Política e Social - DOPS com o rosto totalmente esfacelado. Só o
reconheci porque ele usava a mesma camisa xadrez canadense de quando
saiu do convento. Quando o vi, pensei — Eu conheço essa camisa”, recorda
Romano.
Repressão
Quando estava em São Paulo, Romano encontrou Frei Betto , que havia
sido preso no Rio Grande do Sul e foi encaminhado ao Dops paulista.
“Fiquei mais ou menos dois meses no Dops, depois fomos para o presídio
Tiradentes . Meses depois, Frei Tito , que havia sido muito torturado,
tentou suicídio. Até que houve uma greve de fome para diminuir o rigor
da repressão”, recorda.
Desespero
A conjugação entre inexperiência, desespero e dor levou Roberto
Romano a tentar suicídio. “A situação ficou de tal modo insuportável que
eu, inexperiente e tolo, tentei suicídio. Fui socorrido por Dom Paulo
Evaristo , a quem devo a vida”, relata. “Depois disso fomos ouvidos pela
segunda auditoria militar, e o Ivo, o Fernando e o Betto foram
transferidos para o presídio de Presidente Venceslau. E eu fui liberto
em um regime em que a pessoa é solta, mas tem que assinar um livro toda
semana. Aí voltei para a universidade e continuei o curso de Filosofia,
ainda como dominicano”, explica. Após o julgamento, Romano foi absolvido
por absoluta falta de provas, sendo que recentemente recebeu um
documento em que o Estado brasileiro informa que lhe concedeu anistia e
reconhece o regime de exceção praticado pelos governantes da época.
A Igreja e o Regime
Romano conta que ao final da ditadura militar passou-se a veicular
que a Igreja como um todo resistiu e defendeu os direitos humanos.
“Houve corajosíssimos cardeais, bispos, religiosos e leigos que agiram
quase profeticamente em defesa dos direitos humanos e da fé cristã no
sentido autêntico, Dom Paulo foi um deles, assim como Dom Tomás Balduíno
”, pondera.
Um dos exemplos lamentados por Romano foi um episódio ocorrido no
presídio de Tiradentes, em que Dom Vicente Scherer foi visitar os
dominicanos e junto com os religiosos havia um preso da ALN que tinha
sido alvejado nas pernas por tiros de metralhadora. “Esse detento estava
com a perna engessada e necrosando. Dom Scherer viu tudo. Quando ele
foi embora, Frei Betto escreveu-lhe uma carta pedindo que intercedesse
para que o preso fosse encaminhado ao hospital, e a resposta foi
dramática: ‘não podemos fazer quase nada porque ele é terrorista, pegou
em arma e tem que receber a punição necessária’. Esta é uma atitude que
não é de um cristão, é uma atitude pesada”, considera.
Visitas
Segundo Romano, Dom Paulo nunca assumiu uma posição política, mas
sempre esteve presente com os religiosos. Após a tentativa de suicídio,
Dom Paulo visitava Roberto Romano com alguma frequência no presídio, até
que um dia teve uma surpresa desagradável, quando outro monsenhor foi
visitá-lo. “Eu estranhei quando Dom Paulo não veio, pois ele sempre
vinha. Aí o monsenhor que veio me visitar disse: ‘nós decidimos que o
Dom Paulo não pode vir’. Mas nós quem? Não tive resposta”, recorda.
Após o episódio de tentativa de suicídio, Romano foi internado no
Hospital Militar. Dom Paulo o visitou várias vezes. “A ida de Dom Paulo
ao hospital era muito significativa, pois era um claro recado de que ele
sabia onde eu estava, com quem eu estava e como eu estava. Isso era um
aviso direto para qualquer tentativa mais truculenta que existia na
polícia naquela época.”
Insensibilidade eclesiástica
A instabilidade política e a falta de sensibilidade para entender a
complexidade do momento histórico que o Brasil vivia levaram
representantes da Igreja a posturas discutíveis. “Chegou a um ponto que
Dom Agnelo estava de tal modo insensível ao que estava acontecendo que
ele fazia campanha para desmentir a imagem do Brasil. Isso foi
acentuando de tal modo que o Papa Paulo VI percebeu o erro e tomou uma
posição; chamou o Cardeal para Roma e nomeou D. Paulo como arcebispo
metropolitano de São Paulo”, conta Romano. “Se o Estado precisa da
legitimidade para ser obedecido, a Igreja precisa muito mais para ser
aceita, sobretudo aquilo que é fundamental à Igreja, que é servir às
pessoas, o desejo de pacificar, consolar, proteger”, complementa.
Pena de morte
“Chamávamos o Frei Guilherme de Nery Pinto de ‘a revolução na cela’,
porque ele estava a par de tudo o que acontecia na teoria e no mundo,
sem mesmo sair do convento. Ficávamos horas conversando com ele e
trocando ideias sobre tudo. Quando saiu o catecismo com João Paulo II
ele dava margem à admissão de pena de morte, embora não fosse
exatamente como a imprensa publicou na época, mas mesmo assim era uma
coisa muito complicada do ponto de vista doutrinário”, relata Romano.
Na ocasião Frei Guilherme ficou muito bravo com o fato, pois em sua
avaliação a possibilidade de anuir à pena de morte era um retrocesso
muito significativo. Romano, então, sugeriu que ele escrevesse um texto
para publicar no jornal Folha de São Paulo. Durante cerca de cinco meses
Frei Guilherme e Roberto Romano escreveram o texto, que passou por
muita reflexão e edição até que chegasse na versão a ser publicada.
Romano levou, pessoalmente, o artigo ao editor do jornal, que preferiu
não publicar. “O editor perguntou se o texto era importante e se Frei
Guilherme era importante. Eu respondi que ele era um dos nomes mais
importantes do Brasil, e mesmo assim ele não publicou. O que demonstra
uma tolice jornalística”, descreve Romano, que depois acabou publicando o
artigo em um jornal da periferia de São Paulo. “As pessoas dizem que os
donos das grandes empresas jornalísticas são os piores, mas penso que a
coisa é um pouco mais que isso. Além dos donos, há essas pessoas que
decidem e que os donos nem sabem o que está acontecendo. Decidem sem o
menor critério e sem a menor tentativa de entender o que está
acontecendo. Quando se fala em liberdade de expressão, tem que saber
quem se está defendendo; às vezes, a pauta do editor é pior que a do
dono do jornal”, avalia.
Cotidiano
Os anos mais combativos contra o Estado na luta pelos direitos
humanos deram lugar a um período mais ameno na vida de Roberto Romano,
pelo menos no que tange às ações mais diretas. Nos últimos anos Roberto
Romano tem dedicado seu tempo às atividades acadêmicas de aula e
pesquisa. Atualmente vive em São Paulo, capital, no bairro Jardim
Paulistano, que como ele mesmo define “não é rico como o Jardim Europa,
nem pobre como os outros jardins”.
“Eu e minha mulher gostamos muito de ir ao cinema, ir ao teatro e
visitar as pessoas. Agora que me aposentei, estamos com plano de passar
um período em Boston, nos Estados Unidos”, conta. Casado com Maria
Sylvia de Carvalho Franco , socióloga, autora do livro Os homens livres
na ordem dos escravocratas (São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros,
Universidade de São Paulo, 1969) e egressa da turma de Florestan
Fernandes . “Por ocasião do regime militar, ela foi transferida para a
Filosofia na USP, onde ajudou a manter firme o Instituto”, destaca,
orgulhoso. Roberto Romano tem dois enteados, Luíza Moreira, que é
professora nos Estados Unidos, e Roberto Moreira, cineasta e professor
na USP. Duas netas, uma de vinte anos e outra de sete, completam o
núcleo familiar.
Por debaixo dos cabelos brancos de Romano há uma vida cheia de
histórias, de luta e de resignação resistente, de estudos e de esforço
compreensivo da realidade social, de passado e de presente. Aos 67 anos
de idade, Roberto Romano atravessou boa parte de sua vida lutando contra
violência, sem violência. Ele parece ser um daqueles exemplos vivos de
que o presente só faz sentido quando visto pelas lentes do passado.
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