Enviado por Grozny Arruda
O
jogo perigoso da desinformação
Por Luciano
Martins Costa em 15/02/2014 – Observatório da Imprensa
Os
três principais jornais de circulação nacional, que ainda definem a agenda
institucional no país, fecham a semana com uma proeza digna de figurar na longa
lista de trapalhadas da imprensa, cujo troféu mais lustroso é o caso da Escola
Base. Por uma dessas ironias da história, no dia 22 do mês que vem completam-se
vinte anos do noticiário que inventou um caso de pedofilia numa escola infantil
de São Paulo, e o roteiro se repete perversamente.
A
morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido na cabeça por um rojão de alta
potência durante manifestação no Rio de Janeiro, tem todos os ingredientes para
se tornar uma versão revista e ampliada desse que foi o marco do jornalismo
espetaculoso e irresponsável no Brasil.
Os
ingredientes para uma grande farsa estão reunidos: os dois jovens que foram
identificados como autores do homicídio são compulsoriamente representados por
um advogado que ganhou dinheiro com a defesa de milicianos e – colocados no
grande liquidificador da mídia –, produzem uma sucessão de declarações que, a
rigor, não poderiam ser incluídas num inquérito. E tudo que dizem – ou alguém
diz que disseram – vira manchete.
Na
sexta-feira (14/2), o alvo do noticiário é uma lista de doadores que
contribuíram para a realização de uma festa, no dia 23 de dezembro do ano
passado, intitulada “Celebração da Rua – Mais Amor, Menos Capital”. O evento
foi realizado na Cinelândia, no centro do Rio, com coleta de doações em
benefício de moradores de rua e vítimas das enchentes (ver aqui), juntando
militantes de todos os tipos, inclusive professores e ativistas contra a Copa
do Mundo. Os jornais citam vereadores, um delegado de polícia e até um juiz do
Tribunal de Justiça, insinuando que eles estavam apoiando o movimento chamado
Black Bloc.
Nessa
corrente de declarações, suposições e especulações, a imprensa já afirmou que
os atos de vandalismo que acompanham a onda de protestos no Rio de Janeiro têm
o dedo do deputado Marcelo Freixo, do PSOL; depois, o Globo citou uma
investigação que acusa o deputado e ex-governador do Rio Anthony Garotinho, do
PR, de incentivar a violência.
Um
exemplo desse jornalismo de fancaria: o título publicado no domingo (9/2) pelo
portal G1, do grupo Globo: “Estagiário de advogado diz que ativista afirmou que
homem que acendeu rojão era ligado ao deputado Marcelo Freixo”.
O
fundo do poço
Nas
edições de sexta-feira (14/2), os jornais fazem malabarismos para concentrar a
denúncia no PSOL, PSTU e numa organização pouco conhecida chamada Frente
Independente Popular.
A
citação dessas organizações foi tirada de uma frase do auxiliar de limpeza Caio
Silva de Souza, acusado de haver acendido o petardo que matou o cinegrafista.
Segundo os jornais, o jovem disse acreditar que os partidos que levam bandeiras
às manifestações são os mesmos que pagam a ativistas que se dedicam a
depredações e a enfrentamentos com a polícia. Nenhuma referência às
investigações sobre a participação de militantes ligados a Anthony Garotinho,
ainda que tais informações tenham como fonte um inquérito oficial em vez de
declarações fora de contexto.
Exatamente
como no caso da Escola Base, o julgamento apressado produz desinformação:
pinta-se um perfil bipolar dos dois jovens, ora como se fossem perigosos
terroristas, ora como se se tratasse de duas criaturas desamparadas que foram
aliciadas por forças políticas interessadas em uma espécie de “revolução
bolivariana”, para usar a expressão irônica da colunista Barbara Gancia, na
Folha de S. Paulo.
Nas
duas versões, o enredo vai compondo um painel cujo resultado parece a cada dia
mais claro: a demonização da política partidária, com foco muito claro em
agremiações de pouca expressão eleitoral, todas coincidentemente alinhadas à
esquerda do espectro político.
Pode-se
discordar de objetivos e estratégias de partidos, indivíduos e organizações que
se consideram artífices de uma revolução, pode-se acusá-los de tentar compensar
a falta de correligionários com bumbos e palavras de ordem, mas o jogo torna-se
muito perigoso quando a imprensa, hegemonicamente, atua no sentido de
criminalizar o direito à manifestação pública de opiniões sobre o que quer que
seja.
Nas
redes sociais, esse noticiário tendencioso e irresponsável alimenta o
extremismo reacionário ao ponto de inspirar chamamentos ao crime.
Se
não é o fundo do poço para a imprensa, estamos quase lá.